Um grande dia: escritoras negras marcam presença em foto histórica

Encontro que reuniu mais de 400 escritoras durante Feira do Livro em São Paulo revela ainda a menor presença de mulheres negras.

15|06|2022

- Alterado em 15|06|2022

Por Redação

O que faz um escritor? Quem decide se uma pessoa pode ser considerada ou não uma escritora? Essas sempre foram questões que me provocavam e que me levaram a fazer uma investigação acadêmica, que desenvolvi em meu mestrado sobre as trajetórias de escritores dos saraus das periferias de São Paulo. Mas também são questões que sempre fiz a mim mesma.

Um dia recebi uma notificação no Instagram de uma amiga me convidando para participar de um encontro. Era Jéssica Balbino, jornalista, pesquisadora, produtora cultural – assim como eu, convocando muitas mulheres a participar de uma sessão de fotos que aconteceria em ocasião da Feira do Livro de São Paulo.

O evento, organizado pela Revista Quatro Cinco Um, aconteceu entre os dias 8 e 12 de junho na Praça Charles Miller, em frente ao estádio do Pacaembu, em São Paulo. A foto estava combinada para o último dia do evento, nas escadarias da praça, que homenageia a escritora Pagu (eu nem sabia que as escadas de lá tinham nomes. Escadão na quebrada geralmente não tem nome nenhum), e faziam referência a uma foto histórica intitulada “Um grande dia no Harlem”, tirada em 1958 pelo fotógrafo Art Kane que registrou 58 músicos de jazz da época.

Quando vi a notificação, achei muito importante a iniciativa – liderada pelas escritoras Giovana Madalosso e Natália Timerman, mas, ao mesmo tempo, refleti se cabia a mim estar nessa foto. Seria eu escritora? A questão me ressoa a provocação da ativista norte-americana Sojourner Truth, ao reivindicar os direitos das mulheres negras nos Estados Unidos: “e eu não sou uma mulher?”

Por que eu, jornalista, com diversas reportagens, entrevistas, crônicas e artigos publicados, textos em coletâneas e antologias, uma dissertação de mestrado disponível nas prateleiras das bibliotecas da USP (Universidade de São Paulo), não posso afirmar que sou sim uma escritora? Quais são as barreiras, visíveis e invisíveis que me impedem disso? E por quê?

Durante o mestrado, me deparei com os estudos do Grupo de Pesquisa de Literatura Contemporânea da UnB (Universidade de Brasília), liderada pela professora Regina Dalcastagne. Seu trabalho indicava que, dentre os autores brasileiros que tiveram livros publicados entre 1990 e 2004, cerca de 73% eram homens, 94% eram brancos, e a maioria viviam em São Paulo e Rio de Janeiro, polo do mercado editorial do país e eixo privilegiado do circuito cultural no Brasil.

O perfil do escritor no Brasil, a imagem estereotipada que se faz é a de um homem branco intelectualizado.

Por que é tão difícil legitimar a voz e a escrita de mulheres negras?

Maria Firmina dos Reis, uma mulher negra maranhense, foi a primeira mulher a publicar um romance no Brasil, em 1859. Esta informação foi reforçada em cartazes que escritoras negras levaram para protestar no dia da foto histórica, o último dia 12 de junho. 

Nosso grupo era proporcionalmente menor no dia da sessão, mas ao nos reconhecermos e nos aproximarmos, nossa presença e coletividade se fez marcante e impossível de não ser notada. Nossas corpas, peles, cabelos, turbantes, se fizeram notar, antes mesmos de nossas vozes e palavras. Imagina se parassem mais para nos escutar, nos ler.

Dentre as escritoras presentes, Esmeralda Ribeiro, uma das nossas mais velhas, que abriu tantos caminhos e ainda hoje é uma das lideranças dos Cadernos Negros, publicação que há 44 anos divulga a literatura negra. Lenny Blue, escritora e ativista do movimento negro há mais de 30 anos, autora em mais de quatro publicações. 

Também presentes estavam Lubi Prates, com seu  filho no colo, finalista do Prêmio Rio de Literatura e do Prêmio Jabuti por seu livro “Um corpo negro”, já traduzido para mais de quatro idiomas; Luz Ribeiro, poeta e slammer, primeira mulher vencedora do Slam BR, em 2016, e que representou o Brasil na Copa do Mundo de Slam na França no ano seguinte. E tantas outras mais, todas igualmente valiosas, independente de prêmios, editoras, livros. 

Eu também estava lá! Como Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Ana Maria Gonçalves, Tula Pilar, Bianca Santana, Eliane Alves Cruz, Elizandra Souza, Jenyffer Nascimento e tantas e tantas outras, seguimos fazendo história!

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Mais de 400 escritoras se reúnem no Pacaembu para tirar fotografia histórica.

©Armando Prado é o autor da primeira foto e Mariana Vieira da segunda

Depoimentos de escritoras presentes

  • Lenny Blue

“Aos poucos fomos chegando. Como espelho, nossos olhares se encontraram e não mais que de repente o mulherio negro se aquilombou. E devagar, alegres e coloridas, orgulhosas, ninando nossos livros no colo da escrevivência, ocupamos nosso espaço, felizes em mostrar ao mundo que somos escritoras. 

Nosso encontro foi pura magia, veloz e denso na troca. Estávamos no quilombo da escrevivência que dá luz a nossa vida e nos cura.  Nossa vida negra está nas letras. Com ela bordamos a resiliência. Na escrita debruçamos a “dor e a delícia” de ser mulher preta. E o que é melhor: na magia das letras eternizamos nossas Ancestrais, potencializando a magia das lembranças. Gratidão pelo encontro curativo e frutífero de amor e pelo quilombo da escrevivência! Estamos no mundo! Axé Muntu!”

  • Maria Vitória

“Lembro de ter chegado na feira e ter me sentido deslocada por não encontrar outras mulheres negras como eu que também escreviam. Ainda bem que pouco tempo depois @floresdebaobaescritoras e coletivo feminista Marielle Vive, me puxaram e fizeram eu me sentir pertencente por ser uma mulher negra e escritora que estava ali fazendo parte da história, mesmo em meio a grande maioria das mulheres brancas ali presentes.

A literatura no Brasil sempre foi elitista e protagonizada por pessoas brancas, mas ontem também foi o dia de todas lembrarem que “o primeiro romance publicado no Brasil em 1859 por uma mulher foi escrito por uma mulher negra: Maria Firmina dos Reis”. Assim como Firmina, o mundo ainda conhecerá nossa história e gritará bem alto nossos nomes!”

  • Mari Vieira

“Olho a foto lembro de mim mesma antes do estrear no Cadernos Negros 40,  antes de estar no coletivo Flores de Baobá.  Eu tinha um grande desejo de escrever, mas simultaneamente a esse desejo um estranhamento, um incômodo em me ver como escritora. Levei bom tempo depois de ser publicada para poder dizer com tranquilidade “sou escritora”. A ausência de representatividade quase impediu meu sonho! 

A complexidade que é ser escritora negra no Brasil se revela para além da foto. Lá, enquanto aguardávamos o momento da foto, escutei de algumas manas pretas como elas quase se sabotaram para não estar lá, da sensação de estranhamento, e da alegria de estar se aquilombando. Só quem é mulher negra vai entender o misto de sentimento em situações como essas, por isso é tão importante estar junto. 

O segredo para termos mais mulheres negras escritoras talvez seja este: se aquilombar! Que esse aquilombamento comece agora! Assim, daqui algumas décadas ou séculos, quando acontecer a próxima foto histórica, o percentual de escritoras negras terá chance de ser proporcional à população negra do Brasil.”

  • Samira Calais


“A grandeza desse dia nunca será esquecida: um mar de mulheres com seus livros, orgulhosas e empolgadas. Muitos sorrisos, fotos, livros, abraços. Definitivamente somos muitas que escrevemos. Mas quem somos nós que escrevemos? Em meio às “mais de 400 escritoras” que se reuniram, não tinham nem 30 mulheres negras. Nem 10% de mulheres negras. E mulheres essas que fomos pescando na fila de entrada, às vezes só com o olhar e sempre com alívio de encontrar outras de nós.

O fato é que precisamos nos apoiar enquanto mulheres, mas também precisamos que essas diferenças fiquem sempre bem evidentes. Num país em que mais de 50% da população é negra, é inadmissível num lugar desse não sermos nem 10%.

A foto é histórica. Mas histórico mesmo vai ser o dia em que mulheres brancas, negras e indígenas irão ocupar lugares igualitários, inclusive na literatura.”

  • Jéssica Moreira

“Os cartazes trazidos pelas manas do @floresdebaobaescritoras davam o tom de nossa presença: mulheres negras importam. Vejam só, antes de escrever, precisamos ainda reafirmar: importamos. Existimos.

Mas entre a representação e a representatividade existe um hiato, uma ponte ainda muito sólida que impede, diariamente, milhares de mulheres que escrevem de se sentar na arquibancada da História. 

Essa História, sabemos, é toda recheada de seus cortes e edições. Até essa que eu conto pra vocês é só um trecho do tamanho desse dia, que tivemos a honra de estar ao lado de mais velhas como @escritoraesmeralda e gritar o nome de Firmina. 

Por isso, a representatividade sozinha não é a solução. É preciso revirar as estruturas. Não em um único dia, mas todo dia, a vida toda. Como fazer isso? Vamos ter que descobrir juntes.

Uma pista: nas salas de aula de professoras pretas, nos saraus das periferias, nessa literatura que acontece diariamente na vida de muitas de nós: a vírgula que bate no tanque; o silêncio entre uma varrida e outra; a corrida pra não perder o ônibus; as triplas jornadas entre o bom dia da mãe e o beijo de boa noite na filha. Somos, sim, escritoras.”

Lívia Lima é jornalista e produtora cultural, graduada em Jornalismo (Mackenzie) e em Letras (USP), e é mestre em Estudos Culturais também pela Universidade de São Paulo. É cofundadora do Nós, mulheres da periferia.

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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