Lucas abraçado a Marilene

Cannabis medicinal: ‘por que a periferia tem acesso só à biqueira?’

Marilene Esperança viu seu filho voltar a andar após uso de óleo de cannabis medicinal e criou associação para ajudar outras famílias.

Por Beatriz de Oliveira

11|11|2022

Alterado em 16|11|2022

A primeira convulsão de Lucas Esperança veio aos quatro anos de idade. A mãe, Marilene Esperança, se assustou, nunca havia visto ninguém passar por essa crise. Mas, logo se tornaram parte do cotidiano. Mesmo passando em vários médicos pelo SUS (Sistema Único de Saúde) e tomando uma série de remédios, Lucas chegava a ter 50 convulsões num único dia.

Vivendo na periferia de Niterói, no Rio de Janeiro, com o marido e quatro filhos, Marilene teve que deixar de trabalhar e tirar Lucas da creche, por conta das sucessivas crises. Passou a viver com o BPC (Benefício de Prestação Continuada), benefício no valor de um salário mínimo pago pelo governo federal a pessoa com deficiência e de familia baixa renda. Quase o valor total do benefício era gasto em medicamentos.

Numa das crises, aos cinco anos de idade, Lucas bateu a cabeça ao cair e ficou desacordado por horas. Ao fazer uma tomografia, os médicos constataram uma lesão que não havia sido causada pela queda. Foi então direcionado a se consultar com um médico especialista em epilepsia, Eduardo Faveret. Vivendo com um salário mínimo, Marilene não tinha condições de pagar o profissional particular. Ele deu uma consulta de cortesia e constatou logo numa primeira conversa que o menino sofria da Síndrome de Rasmussen, doença inflamatória que acomete o cérebro e causa epilepsias.

Desde então, o filho de Marilene começou a ser tratado pelo médico de modo gratuito. “Ele me disse: ‘pode ficar tranquila que eu vou cuidar do seu filho como se fosse meu”’, lembra a mãe. Já aos 14 anos de idade, Lucas passou por uma crise que durou dias sem parar, os medicamentos que tomava só amenizam os sintomas, mas não cessavam a convulsão. Naquele ano de 2014, ele perdeu seus movimentos. Os médicos do hospital em que Lucas estava internado, disseram que “não tinha mais jeito”, o menino não voltaria a andar.

Desesperada, Marilene procurou pelo Eduardo Faveret e disse: “pelo amor de Deus me ajuda, eu preciso de algo que possa mudar a vida do meu filho, porque meu filho não vive e eu também não”. O médico contou de uma opção de tratamento alternativo, mas havia ao menos três obstáculos: era caro, de difícil acesso e ele não poderia prescrever. Tratava-se do óleo de cannabis medicinal.

Para conseguir o medicamento que começaria a ser regularizado naquele ano de 2014, Marilene conta que teria que desembolsar cerca de R$ 5 mil para importar o óleo. Além disso, precisaria de uma prescrição médica e autorização da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para importação.

Diante da impossibilidade de pagar esse valor, a carioca buscou outros caminhos para conseguir o medicamento que poderia ajudar no tratamento de seu filho. Nessa busca, conheceu a Abrace, associação que presta apoio às famílias que precisam de um tratamento com a Cannabis Medicinal. Na época, a organização localizada em João Pessoa (PB) começava a se estruturar e o óleo de cannabis era produzido na cozinha de um dos integrantes, ainda sem autorização da Anvisa, a qual veio em 2017.

A Abrace enviou de forma gratuita o óleo para Marilene. Tudo foi feito de maneira ilegal: a mão não tinha prescrição para o medicamento e a associação não tinha autorização para produzi-lo. “Era a única forma de eu conseguir o tratamento naquela época, porque um óleo importado era inacessível. Como que uma mãe que ganha um salário mínimo de benefício BPC vai comprar um óleo que custa R$ 5 mil para o filho?”, questiona.

Ao longo dos dias usando o óleo de cannabis as melhoras de Lucas foram rápidas. “Com um mês de uso, eu cheguei no quarto e vi meu filho de pé. Um mês!”.

Hoje, Lucas toma cinco gotas de óleo rico em THC (substância química encontrada na maconha) pela manhã, mais cinco após o almoço e outras cinco gotas de óleo rico em CBD (outra substância química da maconha) antes de dormir. Marilene conta que o medicamento não causa efeito colateral significativo como outros remédios que o filho tomou, que poderiam causar infecções, por exemplo.

“Ela [cannabis medicinal] não mudou só a vida do Lucas, mudou a vida de toda nossa família. Um menino que tinha 50 crises por dia, hoje passa meses sem ter crises”, afirma Marilene.

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Lucas teve sua primeira convulsão aos quatro anos de idade © arquivo pessoal

Marilene Esperança trilha luta pelo acesso à cannabis medicinal

Lucas foi diagnosticado com Síndrome de Rasmussen © arquivo pessoal

Marilene conta que cannabis medicinal mudou a vida de Lucas © arquivo pessoal

Através de sua associação Marilene ajuda outras famílias periféricas a acessarem a cannabis medicinal © arquivo pessoal

Acesso restrito à populações negras periféricas

Em 2014, grupos de mães de filhos com doenças graves que poderiam ser tratadas com cannabis medicinal se mobilizaram para reivindicar o reconhecimento do medicamento. Elas lutaram pela liberação da importação e também pela autorização judicial para cultivar em suas casas.

O movimento, protagonizado por mulheres brancas de classe média, “ajudou a pressionar a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) a criar resoluções (RDCs) para regulamentar a prescrição e a produção de medicamentos à base de Cannabis em território nacional”, explica Monique Prado, Assessora Parlamentar na área de Política de Drogas na ALERJ, mestre em Sociologia e em Direito e doutoranda em Ciências Sociais.

Apesar das resoluções dispondo sobre fabricação e importação de medicamentos a base de maconha, ainda é burocrático e caro o processo para se acessar um produto do tipo.
“Um frasco pequeno pode chegar a custar mais de R$ 2 mil”, afirma Monique.

A assessora parlamentar destaca que há diferença do acesso à cannabis medicinal por populações negras e periféricas em comparação a população de classe média. “A população pertencente a classe média possui maior facilidade para realizar o tratamento, tanto por conseguirem custear o valor da medicação importada ou a vendida no Brasil, quanto por possuírem meios para obter a autorização judicial e cultivar em suas residências.”

Marilene, que viveu na pele a luta pelo acesso à cannabis medicinal sendo uma mulher negra e periférica, destaca que para as mães que moram nas comunidades, o acesso ainda é muito restrito. “E não é difícil somente por conta do custo do óleo, é difícil desde o momento em que ela precisa de um laudo e de uma receita, porque pelo SUS ela não consegue, precisa ir em um médico particular. Um psiquiatra, um neurologista hoje, você dificilmente vai encontrar por menos de R$ 600”.

O preconceito é mais um entrave para a ampliação do acesso à cannabis medicinal. Monique afirma que entre pessoas contrárias à regulamentação do uso da cannabis medicinal há um discurso de que ela poderia impulsionar a venda ilegal promovida pelo tráfico de drogas. Entendendo que esse tráfico é associado a população negra e moradora de favelas, é uma “visão preconceituosa e racista, mas que é mobilizada por defensores de uma ideologia mais conservadora e proibicionista em relação à política de drogas”

Essa visão é construída a partir de uma série de políticas inseridas na chamada Guerra às Drogas, narrativa exportada dos Estados Unidos. “A partir delas, a figura do traficante passou a ser a do inimigo interno a ser combatido. O que justifica o gasto com instrumentos bélicos como o caveirão, por exemplo, e a intervenção violenta em favelas e
periferias por parte de agentes de segurança pública.”

Para Aline Vitória, biomédica e doutoranda com pesquisa acerca do uso da maconha para a saúde da mulher, com a ampliação da disponibilização da cannabis medicinal, as periferias passarão a ter maior acesso, visto que hoje a elite já o tem. Mas com isso, não haverá mais um pretexto de criminalizar pessoas negras por uso de maconha. Pretexto esse que é o que mais encarcera. Segundo levantamento de 2014 do Instituto Sou da Paz, 67,7% dos encarcerados por tráfico de maconha nas prisões do país foram flagrados com posse de menos de 100 gramas.

“Os ricos já usam, tem acesso. Porque a periferia tem acesso apenas à biqueira?”, questiona Aline.

Cannabis medicinal no SUS

“Hoje eu sou a única mulher negra presidente de uma associação cannábica no Brasil”, afirma Marilene.

Com o objetivo de ajudar mães que passam por situações semelhantes às dela, a carioca criou a há dois anos a AbraRio, associação voltada para pessoas que utilizam cannabis como tratamento terapêutico para diversas condições de saúde. A organização trabalha com o cultivo e produção do óleo da maconha, e também com apoio jurídico e orientação médica.

A AbraRio conta com dois laboratórios, um de extração da flor da cannabis e outro de diluição do extrato. Os associados, cerca de mil pessoas, pagam entre R$ 135 a R$ 220 pelo frasco de óleo de cannabis medicinal. Há ainda aqueles que recebem o produto com desconto ou gratuitamente, em razão da condição financeira.

Através da associação que comanda, Marilene também atua na formulação de projetos de lei para distribuição de cannabis medicinal pelo SUS em cidades do Rio de Janeiro. Búzios (RJ), por exemplo, é a primeira cidade do país a regulamentar o fornecimento custeado pelo município para a população. No momento a cidade está em processo de análise da licitação para aquisição dos medicamentos Ela conta que também trabalharam em um projeto para Niterói, que foi vetado pelo prefeito.

Sobre o caso de Búzios, Monique Prado salienta que “essa iniciativa será restrita à população de Búzios, por isso a importância da aprovação de uma lei nacional que regulamente o fornecimento pelo SUS para toda a população brasileira”.

Segundo ela, o melhor caminho para a cannabis medicinal se tornar acessível para as populações periféricas é através do SUS. Nesse sentido, existe o PL (Projeto de Lei) 399/2015, que regulamenta o plantio de maconha para fins medicinais, libera a comercialização de medicamentos que contenham a planta e o fornecimento pelo SUS. Em 2021, o PL foi aprovado por comissão na Câmara dos Deputados, e atualmente segue em tramitação para o Senado.

“É necessário lutarmos por uma regulamentação mais ampla, o que pode ser alcançada por meio da regulamentação do cultivo doméstico. É o que ativistas demandam, tanto para uso medicinal quanto para uso adulto, o que defendem ser uma estratégia para
enfraquecer o tráfico de drogas”, completa.

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Lucas toma cinco gotas de óleo rico em THC pela manhã e após o almoço

©arquivo pessoal

Entre retrocessos e avanços

Entre as patologias que podem ser tratadas ou ter seus sintomas amenizados com a cannabis medicinal, estão a ansiedade, depressão, Alzheimer, esclerose múltipla e glaucoma. A biomédica Aline Vitória mapeou 164 patologias em que a cannabis pode ser usada como tratamento, todas com comprovação científica.

Além de pesquisar o assunto, Aline faz uso da maconha. Ela sofre de neuropatia periférica rara, que causa compressão da raiz nervosa da medula óssea. Por conta da doença ficou dois anos sem andar, e após o início do tratamento com cannabis conseguiu retornar a sua rotina de vida.

A biomédica explica ainda que a planta pode ser usada de diferentes formas. Além do óleo, formato mais comum, existe bala de goma, a vaporização da flor da maconha, creme, aerosol e solução líquida.

Mesmo diante das comprovações de eficácia da cannabis medicinal, o CFM (Conselho Federal de Medicina) publicou no dia 14 de outubro uma resolução restringindo as possibilidades a sua prescrição. O documento altera a norma emitida em 2014 e dispõe que medicamento só pode ser prescrito em casos de epilepsia.

Para Aline, a atitude do CFM foi conservadora e ignorou a literatura científica. No dia 25 do mesmo mês, após pressão da sociedade civil e associações cannabicas, o conselho suspendeu a resolução.

“Reforço que esse caso demonstra que mesmo em meio a avanços na regulamentação da cannabis, é necessário haver resistência e mobilização dos movimentos sociais”, pontua Monique.

A assessora parlamentar considera que apesar da resistência de grupos de interesse contrários, a regulamentação da cannabis medicinal é uma questão de tempo. Mas aponta uma preocupação: ativistas temem que na construção de uma regulamentação “movimentos sociais sejam desamparados em benefício de grandes empresas e sem a implementação de uma reparação histórica para a população mais atingida pela guerra às drogas”.