Brasil justo precisa colocar crianças e mulheres negras no centro

Para a professora Lucimar Dias, "a hora não é de omissão" neste momento pós-eleições. A especialista em relações étnico-raciais discute o futuro das crianças e mães negras com o novo presidente da república.

13|12|2022

- Alterado em 13|12|2022

Por Redação

Este artigo integra a série “Eleições 2022: escolha pelas mulheres e pelas crianças“. Uma ação do Nós, mulheres da periferia, Alma Preta Jornalismo, Amazônia Real e Marco Zero Conteúdo, apoiada pela Fundação Maria Cecília Souto Vidigal

Eleitos/as, o presidente da república, senadores/as, governadores/as e deputados/as federais e estaduais começaremos 2023 com a oportunidade de revisitar acordos civilizatórios em torno da justiça social. Nosso país passa por um momento delicado no qual princípios éticos e democráticos precisam ser urgentemente reafirmados, um deles é o direito das crianças se desenvolverem plenamente.

Neste contexto, crianças e mulheres, de modo geral, negras, indígenas e do campo, em particular, são o lado mais vulnerável dessa sociedade desigual. Há que se construir um pacto social para superar tal situação, senão o presente e o futuro do nosso país estará totalmente comprometido.

Infelizmente a faceta da desigualdade que afeta a vida das crianças negras brasileiras tem muitas caras, pois qualquer área que escolhermos analisar constataremos a presença das mesmas infâncias. Por exemplo, quem mais morre por armas de fogo no Brasil? De acordo com estudos do ISP (Instituto Sou da Paz) a partir de dados do Ministério da Saúde (2019) são crianças e adolescentes negras de até 14 anos. É 3,6 vezes mais do que crianças não negras. O trabalho infantil, o abuso e a exploração sexual, a situação de acolhimento institucional e a maioria em cumprimento de medida socioeducativa tem como presença principal as crianças negras.

Não podemos normalizar a desigualdade social e a necropolítica que mata, as vezes de fome, milhares de pessoas no Brasil. No aumento da fome e da insegurança alimentar que assola o Brasil a desnutrição entre meninos negros (pretos e pardos) tem dois pontos percentuais a mais quando comparada com meninos brancos e o ápice foi observado em 2019 de acordo com o Panorama da Obesidade de Crianças e Adolescentes e divulgado pelo Instituto Desiderata.

Dados de outros estudos, como a edição 2021 da Síntese de Indicadores Sociais, mostram que cerca de um terço das mulheres pretas ou pardas vivia em situação de pobreza ou extrema pobreza no Brasil em 2020 e sabemos que as condições de vida das mães incidem diretamente no desenvolvimento saudável das crianças.

É um ciclo perverso, por isso, o conceito de racismo estrutural é importante para orientar nossas reflexões. Não adianta focar em políticas aqui e acolá, sem alterar as condições que mantém e reproduz a situação de desigualdade racial, quero frisar bem essa dimensão, já que muitas instituições que se preocupam com aspectos da desigualdade têm ignorado sistematicamente o componente racial nesse processo.

Mães negras (pretas e pardas) sofrem para manter as condições básicas de vida. Elas lutam todos os dias para dar comida aos seus filhos/as, isso quando conseguem elas mesmas manterem-se vivas. De acordo com pesquisa realizada em 2021 e publicada em nota técnica organizada pela Rede de Pesquisa Solidária formada por diferentes pesquisadores/as Universidade de São Paulo, a maior mortalidade por Covid-19 foi entre mulheres negras considerando qualquer grupo na base do mercado de trabalho. Não é mera coincidência que a primeira pessoa que morreu no Brasil foi a trabalhadora doméstica Rosana Aparecida Urbano, de 57 anos, negra. Do mesmo modo poderíamos dizer que Miguel Otávio Santana da Silva de cinco anos que morreu ao cair do 9º andar quando sua mãe Mirtes Renata Santana – que não teve a garantia do isolamento – saiu para passear com o cachorro da patroa enquanto Miguel ficava sem cuidados é vítima do racismo e da ausência de políticas públicas com esse recorte.

Esses casos dentre tantos demonstram a urgência em estabelecermos políticas de equidade racial considerando o gênero a condição geracional, pois instituições da sociedade brasileira em sua grande maioria têm sido absurdamente negligentes em relação a essa situação.

Muitas organizações do chamado terceiro setor ao atuar em defesa da infância sem o recorte racial, aprofunda o fosso da desigualdade.

Por isso, é necessário que deem o próximo passo em relação ao compromisso com uma infância protegida, qual seja, usar o capital político, social e econômico que possuem para exigir dos/as novos/as legisladores/as e dos executivos um compromisso ético e social com essa parte da população brasileira mais vulnerável: crianças e mulheres negras.

Como já cunhou o Movimento Negro: “enquanto houver racismo, não há democracia”, isso quer dizer que a expressão mais dura desse fenômeno não está nos conflitos interpessoais, nos xingamentos e injúrias que grande parte das pessoas negras vivencia cotidianamente nomeado como estresse tóxico podem causar várias enfermidades ao longo da vida. O racismo se revela em cada criança negra que não tem assegurado o pleno desenvolvimento e a garantia dos direitos fundamentais.

Essa realidade há muito expressa por movimentos sociais, mostram que a disputa na arena social precisa que as organizações comprometidas com a infância, com a democracia, incluam a equidade racial no centro de seus debates.

O pós-eleição eliminou a possibilidade de nos mantermos apáticos/as ou assumindo falsas posturas isentas.

A hora não é de omissão e de deixarmos apenas para uns poucos setores a luta por dignidade. Há pessoas morrendo faz tempo, há crianças famintas aos montes. Elas têm raça/cor e sabemos que são negras e indígenas. Esse não é um problema exclusivamente de pessoas negras, mas de todos e todas que acreditam na humanidade. Estamos vivendo um momento crucial da sociedade brasileira que nos coloca entre a barbárie e a vida e por isso o silêncio não tem mais lugar.

No campo da educação as informações dão conta de que sem o recorte racial nas políticas educacionais não há condições de superação das desigualdades. Em 2022 participamos de uma campanha importante, organizada pela Coalizão Negra por Direitos, professores/as universitários: o Fundeb também é Raça. A proposta foi incluir na discussão sobre o Valor Aluno Ano por Resultados (VAAR) durante a garantia do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) por meio constitucional, discutimos a necessidade de incluir como condicionalidade a equidade da racial.

Nessa batalha fomos parcialmente vitoriosos/as, pois apesar de não ter sido contemplada a proposta do modo como queríamos conseguimos que na Lei nº 14.113/20 que regulamenta o Fundo fosse incluído no art.14 que trata da complementação- VAAR a seguinte redação: “III – redução das desigualdades educacionais socioeconômicas e raciais medidas nos exames nacionais do sistema nacional de avaliação da educação básica, respeitadas as especificidades da educação escolar indígena e suas realidades”.

Foi uma vitória para quem atua na promoção da equidade racial, porém ainda temos outra luta a ser travada para que de fato essa conquista incida de modo permanente e direto na vida das crianças negras. Trata-se da aprovação da Lei que instituirá o Sistema Nacional de Educação, assim como ocorreu na discussão do Fundeb, é imprescindível que o texto da lei tenha como princípio a equidade racial. O SNE será um fórum interfederativo de diálogo e articulação para a construção das políticas educacionais em nível nacional e se não estiver explicitamente garantido o recorte racial corremos o risco de organizarmos políticas que mantenha o racismo estrutural.

Assim, defender uma educação equânime para crianças e mulheres é criar mecanismos institucionais que alterem a sistemática exclusão racial. Não podemos ignorar que os marcadores de classe, gênero e raça devem fazer parte das políticas públicas. Nesse sentido, como projeção para o futuro que se avista reafirmo as propostas presentes no manifesto publicado durante a campanha citada e Working Paper Estudo n.07 do Núcleo Ciência para a Infância que podem compor importante pauta para a construção de políticas educacionais de municípios, estados e governo federal. São elas:

  • Aumento o fator de ponderação para a educação escolar indígena, quilombola e do campo;
  • Inclusão acréscimos aos fatores de ponderação em territórios constituídos majoritariamente por população negra, indígena e pobre;
  • Estabelecer consórcios de educação escolar quilombola e territórios etnoeducacionais indígenas para acessarem diretamente recursos do Fundeb;
  • Estabelecer a previsão do Adicional Custo Aluno Qualidade, para escolas localizadas em territórios urbanos e do campo com predomínio de população negra e indígena;
  • Controle da distribuição dos recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), especialmente em relação aos 50% do Valor Anual Total por Aluno (VAAT) a ser destinado à educação infantil, de modo que se considerem as desigualdades raciais e sociais, conforme disposto na lei do novo Fundeb;
  • Ter previsão de mecanismo de controle social da execução do gasto público no Fundeb por modalidades educacionais;
  • Controle da distribuição dos recursos complementares previstos no novo Fundeb às redes públicas que demonstrarem evolução em termos de redução das desigualdades raciais;
  • Criação de um Fundo Público Municipal para a eliminação das desigualdades raciais, mantido por recursos provenientes do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) progressivo e do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR) – no caso do IPTU, penalizando gestores municipais que ofereçam renúncia desse imposto à população;
  • Estabelecer critérios para apreciação e aprovação de contas, considerando as ações desenvolvidas com vistas à consecução dos artigos 26-A e 79-B, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB 9394/96) alterada pelas Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, que tornaram obrigatório o ensino da história e da cultura africana, afro-brasileira e indígenas em toda a educação básica (pública e privada);
  • Criação de um programa federal que incentive as escolas de educação infantil a adotar práticas que promovam a equidade racial, conforme disposto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e nas publicações já produzidas pelo Ministério da Educação (MEC);
  • Formulação de políticas afirmativas de combate à desigualdade racial, conforme determina o Estatuto da Igualdade Racial e o compromisso internacional assumido pelo Brasil na Conferência de Durban, dando atenção prioritária à garantia dos direitos da criança negra, em especial ao acesso desta população à educação infantil gratuita de qualidade;
  • Elaboração de propostas curriculares que explicitem o Art. 8º, inciso IX, das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI), visando assegurar “o reconhecimento, a valorização, o respeito e a interação das crianças com as histórias e as culturas africanas e afro-brasileiras, bem como o combate ao racismo e à discriminação”; incorporação do conteúdo dessas propostas curriculares aos programas de formação de professores, projetos pedagógicos, planos de trabalho das instituições educacionais e dos professores, bem como em outros instrumentos que norteiam os sistemas de ensino e as unidades educacionais;
  • Implementação, pelas secretarias de Educação, da Lei no 11.738/2008, que regulamenta o piso salarial dos profissionais do magistério público da educação básica, orientando a reserva de um terço da jornada do professor para atividades extraclasse de educação antirracista;
  • Implementação, pelas secretarias de Educação, de um programa de monitoramento das ações de formação realizadas nas escolas de educação infantil, instituindo dinâmicas de autoavaliação, tendo como referência também as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana;
  • Oferta regular de formação continuada contemplando a educação das relações étnico-raciais;
  • Oferta de cursos, para a equipe gestora das escolas e as secretarias de Educação, sobre a coleta de dados relativos à cor/raça da criança na educação infantil, em articulação com instituições que dominem o tema. A incompreensão da importância deste tipo de mapeamento e o desconhecimento de como fazê-lo levam à falta de qualidade do dado apurado, bem como à ausência desse dado.

As propostas elencadas são inspiradas em proposições que já vem sendo realizadas em pequena escala, às vezes, uma escola ou experiências de sistema municipais de ensino, mas a infância negra tem urgência e requer um amplo e intenso acordo civilizatório para o bem não apenas delas, mas de todos/as que acreditam que existe uma possibilidade concreta de construir um novo amanhã e como diz a canção de Guilherme Arantes, Amanhã…

Amanhã está toda a esperança/ Por menor que pareça/ O que existe é pra festejar/ Amanhã, apesar de hoje/ Ser a estrada que surge/ Pra se trilhar/ Amanhã, mesmo que uns não queiram/Será de outros que esperam/Ver o dia raiar/Amanhã ódios aplacados/ Temores abrandados/Será pleno, será pleno…”


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Doutora em educação pela USP, professora da Universidade Federal do Paraná, coordenadora do ErêIá - grupo de estudos em educação para as relações étnico-raciais e membra do NCPI – Núcleo Ciência pela Infância.

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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