quarto em más condições

Trabalho escravo: os escravocratas de hoje continuam impunes

Procuradora do MPT explica como estrutura racista do país favorece ocorrências de trabalho escravo

Por Beatriz de Oliveira

28|03|2023

Alterado em 29|03|2023

Neste fim de semana, cinco trabalhadores que prestavam serviço para o Lollapalooza, um dos maiores festivais de música do mundo, foram resgatados por estarem em condição análoga à escravidão. Não é o primeiro relato de trabalho escravo do festival que movimenta milhões de reais a cada edição.

Apenas no primeiro trimestre de 2023, o Brasil resgatou 918 trabalhadores em contexto de trabalho escravo contemporâneo. É uma alta de 124% em relação ao ano passado e o maior número em 15 anos. Ainda no mês de março, mais de 200 homens que atuavam na colheita de uva foram resgatados em Bento Gonçalves (RS).

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Elisiane dos Santos é procuradora do Ministério Público do Trabalho do Rio de Janeiro (MPT-RJ)

©arquivo pessoal

Apesar disso, os responsáveis pelos crimes não costumam receber as devidas punições. “São pouquíssimas as condenações na esfera penal pela caracterização desse crime. Isso fala muito sobre o racismo institucional que nós enfrentamos ainda no Brasil e no sistema de justiça, porque os escravistas contemporâneos continuam realizando essas práticas e sem maiores consequências”, afirma Elisiane dos Santos, procuradora do Ministério Público do Trabalho do Rio de Janeiro (MPT-RJ), doutoranda em Sociologia e Direito.

Em entrevista ao Nós, mulheres da periferia, Elisiane explicou o que é o trabalho análogo à escravidão, o que diz a legislação brasileira, como identificar e denunciar uma situação como essa e qual é o perfil das vítimas.

Nós, mulheres da periferia – O Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) resgatou 918 trabalhadores em condições análogas à escravidão no primeiro trimestre de 2023. É um recorde em 15 anos. A que isso se deve?

Elisiane Santos – Eu considero que em parte isso decorre da informação que tem chegado mais às pessoas nesses lugares, não necessariamente de forma institucional, mas pelo trabalho das organizações de combate ao trabalho escravo. Do ponto de vista do governo, isso ficou muito prejudicado, porque nos últimos anos houve uma desmobilização das instâncias governamentais no enfrentamento ao trabalho escravo. Mesmo num período de praticamente retirada desta pauta como uma pauta governamental, as instituições que atuam no enfrentamento ao trabalho escravo historicamente desde a década 1990 conseguiram resistir a isso e seguir nessa política. Então, em parte eu acho que vem dessa insistência das instituições e das organizações sociais.

A outra parte é o agravamento das condições gerais de trabalho do povo brasileiro. Sofremos vários retrocessos nesses últimos seis anos. Do ponto de vista da legislação trabalhista, com as reformas trabalhistas, ampliação da terceirização e uma naturalização dessas formas de trabalho sem vínculos como, por exemplo, os entregadores de aplicativos. São vários cenários num contexto de vulnerabilidade maior de trabalhadores, de famílias que estão lutando pela sua sobrevivência sem proteção social, que estão na informalidade.

Não ter direitos trabalhistas assegurados faz com que essas pessoas se tornem possíveis vítimas, são pessoas que estão mais vulneráveis a serem violentadas nessa condição de escravidão contemporânea.

Podemos pensar também na falta de investimento na fiscalização, nós temos um quadro de servidores na fiscalização do trabalho que corresponde a 50% do que deveria ser o quadro mínimo de servidores. Isso contribui para um alargamento dessas situações de escravidão em muitos locais onde a fiscalização não chega.

Nós – O que dizem as leis brasileiras sobre o trabalho escravo?

Elisiane Santos – Temos uma previsão no Código Penal que considera trabalho escravo um crime. Traz também o conceito do trabalho escravo contemporâneo: ele ocorre em razão de condições degradantes de trabalho, de limitação da liberdade da pessoa, de servidão por dívida ou de jornadas extenuantes. O conjunto dessas práticas ou qualquer uma delas de forma isolada caracteriza trabalho escravo. Isso significa dizer que hoje a violação da dignidade humana é o bem maior protegido quando a gente fala de trabalho escravo. Estamos falando de uma situação de perversidade, em que onde as pessoas são tratadas como coisa e destituídas da sua humanidade. É uma reprodução de toda perversidade que vivenciamos no período colonial, mas de forma atualizada.

Na esfera penal terá a apuração de responsabilidade criminal pela prática do crime de trabalho análogo à escravidão.

É importante dizer que a legislação brasileira embora tenha essa previsão de mais de década, são pouquíssimas as condenações na esfera penal pela caracterização desse crime. Isso fala muito sobre o racismo institucional que nós enfrentamos ainda no Brasil e no sistema de justiça, porque os escravistas contemporâneos continuam realizando essas práticas e sem maiores consequências em relação à responsabilização criminal.

Na esfera trabalhista, além de exigir a correção da conduta com a proibição da exploração de trabalho escravo, também exigimos o pagamento de indenização por dano moral coletivo, porque essa é uma violência que para além de se dirigir a pessoa do trabalhador também traz um dano social. Porque desrespeita os nossos valores fundamentais, aqueles que estão na Constituição Federal.

É importante dizer que não é só a empresa que contratou diretamente que vai responder pela prática da violência. Porque nessas situações geralmente temos uma cadeia produtiva, em que uma empresa que é a beneficiária final do trabalho terceirizou uma parte da sua produção. Então, tem toda essa essa intermediação de mão de obra que vai passando de uma empresa para outra e que atende o interesse de uma grande empresa. Essa grande empresa é responsável por tudo isso que acontece no seu processo de produção, e responde diretamente porque não adotou as providências necessárias para que esse tipo de situação não acontecesse.

Nós – Qual o perfil mais predominante entre as vítimas de trabalho analogo à escravidão?

Elisiane Santos – Os levantamentos mostram que as vítimas são jovens negros e de baixa de escolaridade. As pesquisas também apontam que em grande parte foram trabalhadores infantis. Então existe um ciclo de violências e uma relação direta entre trabalho infantil e escravo.

Quando olhamos as mulheres, vemos que muda o tipo de situação e se mantém o marcador racial. Vamos encontrar as mulheres vítimas de trabalho escravo doméstico, em sua maioria negras. O homem geralmente no trabalho braçal ou rural, na construção civil. Os homens negros e as mulheres negras são os mais afetados. Precisamos falar de racismo estrutural, porque nosso país vem desse processo de quase quatro séculos de escravização da população negra, de naturalização desta condição de desumanidade. Essa dinâmica se perpetua também quando alguém se sente autorizado a realizar essa prática.

Isso gera na sociedade um imaginário de naturalização dessa condição. A categoria de trabalhadoras domésticas no país que hoje é a maior categoria de mulheres trabalhadoras no Brasil é a maior do mundo. Mesmo tendo conquistado apenas em 2015 a igualdade plena em direito com os trabalhadores, ainda sim não tem os seus direitos assegurados porque somente 25% estão registrados. Isso significa dizer que a sociedade brasileira continua reproduzindo o racismo no que diz respeito ao trabalho e tratando como natural algo que é uma violência.

Nós – Quais características levam a suspeita que uma situação se trata de trabalho escravo contemporâneo?

Elisiane Santos –

Crianças e adolescentes num determinado lugar trabalhando; isso não pode ser naturalizado, as pessoas precisam denunciar. Inclusive, se for o caso, se dirigir ao estabelecimento e questionar. Situações simples do dia a dia: restaurante, barraca de praia, comércio, estacionamento. Aí você vai me dizer, ‘ah, mas isso não é trabalho escravo’, não sei, mas é uma situação de trabalho que não é permitida, porque aquela criança ou adolescente não deveria estar ali.

A sociedade precisa ter esse olhar atento também. Você não precisa esperar chegar na situação máxima para fazer a denúncia. Um exemplo comum é a exploração de funcionários que trabalham em condomínios, são várias situações no dia a dia. Não espere acontecer uma tragédia, já faça uma denúncia informando os fatos.

Para além dessas situações que acontecem no dia a dia, vale olhar para trabalhadores que estão comendo na rua, comendo no chão, sem um espaço adequado para alimentação. Ou quando você entrar num lugar que não tem nenhuma ventilação, que vê que as pessoas estão numa condição desumana.

Eu, pessoalmente, imagino que muitas das situações que chegam nessa condição mais perversa e violenta poderiam ter sido evitadas. Você vê o caso da Madalena Gordiano, que foi resgatada depois de quase 40 anos trabalhando na mesma casa. Como é que em 40 anos ninguém nunca parou pra pensar em denunciar? É a naturalização da violência contra as pessoas negras e pobres.

Nós – Como são feitos os resgates de trabalhadores em condições análogas a escravidão?

Elisiane Santos – Geralmente são feitas operações chamadas de operações de trabalho escravo. Auditores fiscais fazem a autuação e anotam todos os dados do trabalhador para fazer o cálculo das parcelas devidas, das verbas rescisórias, e aplicam as multas para os empregadores. Nós, do Ministério Público do Trabalho, atuamos em face desses empregadores para que assinem um termo de conduta que os impeçam de seguir nessas práticas ou de repetir essas práticas. Quando não há possibilidade de firmar o termo a gente entra com uma ação civil pública e faz esses pedidos todos judicialmente.

O nosso papel primordial é a responsabilização e a tutela coletiva, a tutela dos direitos coletivos dos trabalhadores. Preferencialmente os trabalhadores são retirados na mesma hora e a gente tem que encontrar parcerias de serviços de acolhimento para eles, às vezes a gente na hora da operação já consegue, os responsáveis pela empresa assumem, por exemplo, hospedagem dos trabalhadores em local compatível. Então, a gente consegue que eles sejam direcionados a uma hospedagem digna com alimentação, até concluir todo o processo.

Nós – Quais os direitos do trabalhador após ser resgatado?

Elisiane Santos – Nós temos uma legislação que assegura e garante todos os direitos que são decorrentes de uma de uma condição de trabalho, de um vínculo de emprego. Então, uma vez identificada essa situação o trabalhador vai ter direito ao registro do contrato de trabalho e todos os direitos decorrentes, a rescisão daquele contrato, se faz todo o cálculo desses valores e além disso o trabalhador vai ter direito a receber também uma indenização por dano moral individual. Se for um trabalhador de outra região vai ter todos os direitos também assegurados para retornar ao seu estado de origem ou ao seu país de origem.

Nós – Como denunciar uma situação de trabalho análogo à escravidão?

Elisiane Santos – Denúncias podem ser feitas pelo site do MPT ou através do aplicativo de celular chamado Pardal MPT. Também pode ser feita pelo Disque 100 e por outros órgãos que tenham na cidade, como Defensoria Pública, Polícia Federal e Ministério do Trabalho; e até para organizações sociais que atuam no enfrentamento ao trabalho escravo.

A denúncia pode ser anônima, mas também pode ser uma denúncia sigilosa, a pessoa informa o seu nome, seus dados, e pede para ficar sob sigilo. Quanto mais dados tiver na denúncia, melhor. Porque a gente consegue chegar no local. Às vezes, com a denúncia anônima a gente precisa de algum esclarecimento e não consegue falar com o denunciante. Então, se o denunciante puder deixar o seu nome é melhor, e ele fica sob sigilo.