Mulher negra sorrindo

‘A memória é um importante instrumento de combate ao racismo’

Entrevistamos Fernanda Thomaz, historiadora à frente da Coordenação-Geral de Memória e Verdade sobre a Escravidão e o Tráfico Transatlântico.

Por Beatriz de Oliveira

09|03|2023

Alterado em 09|03|2023

Preservar a memória é uma forma de lutar contra as injustiças do presente. É assim que pensa a historiadora e professora de História da África Fernanda Thomaz. Nascida na periferia do Rio de Janeiro, na Baixada Fluminense, Fernanda assume a nova Coordenação-Geral de Memória e Verdade sobre a Escravidão e o Tráfico Transatlântico. A pasta faz parte do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania e tem o objetivo de colaborar com a justiça racial a partir da preservação do histórico de contribuição dos povos africanos no Brasil.

“A ideia é também ressignificar o sentido de escravidão. Por um lado, temos que falar da violência que foi sofrida e o quanto ela permanece hoje na sociedade, mas também é necessário olhar para os escravizados enquanto sujeitos históricos, que resistiram, produziram e trouxeram conhecimento”, resume a historiadora.

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Fernanda Thomaz é historiadora e professora de História da África

©arquivo pessoal

Mulheres negras e o movimento negro tiveram ampla contribuição na luta pela preservação da memória da escravidão. “O papel dessas mulheres é na luta por direito, espaço e voz. É a possibilidade de contar a história a partir do seu ponto de vista, de um outro lugar que não o do dominador”, diz. Mas, apesar desses esforços, a sociedade brasileira como um todo ainda tem pouco conhecimento sobre a sua história.

Entre os projetos previstos na Coordenação-Geral de Memória e Verdade sobre a Escravidão e o Tráfico Transatlântico está a preservação do Cais do Valongo, que atualmente está abandonado. O cais está localizado no Rio de Janeiro e foi reconhecido como Patrimônio Mundial pela Organização das Nações Unidas (UNESCO) em 2017, foi porta de entrada de milhares de africanos escravizados no Brasil.

Confira a entrevista!

Nós, mulheres da periferia – Qual o objetivo da Coordenação-Geral de Memória e Verdade sobre a Escravidão e o Tráfico Transatlântico?

Fernanda Thomaz – É uma coordenação nova para pensar em memória. O Brasil é um país que precisa trabalhar memória e sobretudo memórias de injustiças históricas. Eu vejo essa coordenação como importante papel político, pensando em atrocidades e violências, que elas não podem ser repetidas, mas também sirvam como busca por caminho de igualdade social. É fundamental pensar a escravidão e o tráfico transatlântico como uma injustiça histórica. Reconhecer essa memória de violência faz parte de um processo de reparação.

A ideia é também ressignificar o sentido de escravidão.

A gente está acostumado com aquele sentido clássico dos livros didáticos de que escravo é objeto. Temos que pensar essas pessoas como sujeitos históricos, é pensar na valorização da vida.

Então, por um lado, temos que falar da violência que foi sofrida e o quanto ela permanece hoje na sociedade, o quanto o racismo está impregnado nesse processo histórico.

Mas também, é necessário olhar para os escravizados enquanto sujeitos históricos, que resistiram, produziram e trouxeram conhecimento.

Nós – Por que é importante preservar memória sobre a escravidão?

Fernanda Thomaz – A preservação da memória faz com que essa história permaneça viva. Faz com que a gente repare nesse presente que recebeu de herança um passado tão violento. E faz com que possamos pensar em caminhos de transformação social.

A memória se relaciona muito com o presente. A gente olha para o passado, mas a partir do presente nós buscamos reparação. A memória é um importante instrumento de combate ao racismo.

Nós – Como o Brasil lida hoje com as memórias da escravidão?

Fernanda Thomaz – Há uma ausência gigante em pensar a memória da escravidão. A gente conhece muito pouco sobre nossa história. Mas a gente ainda vive o impacto do apagamento instrumentalizado ao longo da história brasileira acerca da memória negra. Por que num país em que a maior parte da população é negra, num país que mais recebeu africanos, foi preciso uma lei para ter obrigatoriedade de ensino da cultura afro-brasileira? Precisamos, inclusive, desconstruir algumas memórias que já foram engessadas e que não valorizaram as experiências de pessoas negras do passado.

Nós – Como coletivos e movimentos negros tem pautado ao longo dos anos a preservação da memoria da escravidão?

Fernanda Thomaz – São os movimentos negros que tem brigado pela preservação da memória. Se hoje a maior parte das universidades brasileiras têm a disciplina de História da África, esse legado é do movimento negro. Se hoje tem uma lei que obriga o ensino da história afro-brasileira nas escolas, é por causa do movimento negro. Muitos sujeitos, seja no individual ou no coletivo, têm lutado pela preservação da memória. Podemos pensar também em todas as lutas travadas por escravos, todos os movimentos que surgiram desde a escravidão. Estão em disputa pela memória e por melhores condições de existência.

No movimento negro a pauta da memória da escravidão sempre esteve presente de diversas formas e espaços, não só no espaço institucional, mas no das práticas sociais cotidianas. Então, pra mim o movimento negro é um dos atores principais nessa causa.

Nós – Qual o papel das mulheres negras na preservação da memória sobre escravidão?

Fernanda Thomaz – A memória é um fenômeno histórico, é construída e é dinâmica. Se pensarmos no nosso processo histórico, entendemos o quanto a memória foi construída por sujeitos que estavam num lugar de privilégio e dominação, geralmente homens brancos.

Sabemos que as mulheres negras têm vivido situações de piores condições de vida. O papel dessas mulheres é na luta por direito, espaço e voz. É a possibilidade de contar a história a partir do seu ponto de vista, de um outro lugar que não o do dominador. É um caminho contra-hegemônico, de olhar para o passado por um outro prisma e transformar a sociedade.