Francia Márquez, o atentado frustrado e o ódio contra os de baixo

Tentativa de atentado a bomba contra vice-presidente colombiana é mais um exemplo de violência política na América Latina

26|01|2023

- Alterado em 26|01|2023

Por Redação

No dia 10 de janeiro, a vice-presidente da Colômbia, Francia Márquez, denunciou ter encontrado uma bomba no caminho de entrada de sua residência particular. Mais um grave caso de ódio contra os de baixo, visto no período mais recente da história em toda América Latina.

Francia Márquez, no entanto, incomoda muito mais. Afinal, sendo mulher, negra e pobre, representa, na direção do país, o povo mais oprimido.

Pedi que um companheiro da Colômbia, Pedro Londoño, da Coordenação de Solidariedade de Cartagena, relatasse um pouco sobre como repercutiu o caso no país e que compartilhasse também sua própria avaliação deste caso de violência.

Eu o conheci em algumas atividades internacionais sindicais, e esse camarada tem uma visão à esquerda muito independente e combativa. Pensei nele como um contato bom a ser feito para tratar do atentado frustrado contra a vida da vice-presidente colombiana.

Conforme seu relato, a eleição de Petro/Francia se deu porque “a maioria dos trabalhadores e dos pobres quis expressar nas urnas o desejo de mudança, e apesar das campanhas de mentiras contra Petro, a tendência majoritária não foi destruída”.

Segundo ele conta, a maioria da população tem altas expectativas no governo, porque consideram que as mudanças não acontecerão de um dia para o outro e que é preciso esperar mais tempo.

Além disso, parte das promessas de governo vai de encontro com outro apelo popular que é a negociação do desmantelamento de todos os grupos armados do país, tais como a guerrilha ELN, os dois dissidentes das FARC e os grupos paramilitares. “Supostamente, a fim de criar um regime político mais democrático”, ele explica.

Governo pós levantes populares

Gustavo Petro ganhou as eleições após intensa convulsão social no país, que começou no final de 2019 e que, em abril de 2021, culminou em uma importante jornada nacional de lutas. 

Essa foi a maior expressão de resistência dos trabalhadores e dos setores populares na história do país. “O governo Duque não caiu, porque as lideranças políticas e sindicais do movimento não o propuseram, e desde o início só queriam que as pessoas saíssem para protestar como parte da campanha eleitoral”.

Mas, o que essas lideranças não esperavam é que o povo se mantivesse nas ruas por mais do que o planejado. “Era como se alguém tivesse aberto a torneira de água e não conseguisse fechá-la”, elucidou o dirigente.

Como fruto dessa rebelião, a vitória de Petro e sua vice, mulher negra, acaba por ser de importante representação simbólica para a classe trabalhadora.

Francia Márquez iniciou sua militância contra a extração predatória em sua região de morada, em Suárez, parte de La Toma.

Essa mulher que foi mãe ainda muito jovem, aos 17 anos, é um exemplo de figura militante que superou as dificuldades impostas pela pobreza – também imposta pelo capitalismo – e alcançou espaços de poder tão restritos aos homens brancos do topo da pirâmide social.

É um caso raro. E irrita a muitos. Os mais intolerantes, para não dizer racistas, misóginos e fascistas, levam a cabo as ações de ódio em nível grave, como este atentado, felizmente frustrado, contra a vida de Márquez.

Violência política na América Latina

Londoño explica que Francia Márquez “retoma o sentimento dos ‘sin nadie’ [os sem nada – ou melhor, os de baixo], aqueles que a burguesia colombiana sempre considerou que não têm direito a nada, apenas a serem humilhados e explorados por seus senhores capitalistas e latifundiários”. 

E, me parece, que tal como na Colômbia, muitos países na América Latina têm enfrentado manifestações da ultradireita e de grupos intolerantes violentos.

Na Argentina, a tentativa de asssassinato contra a vice-presidente Cristina Kirchner é outro exemplo de crime de violência política. O criminoso, o brasileiro Fernando Andrés Sabag Montiel, possuia símbolos nazistas tatuados no braço. e seguia, nas redes sociais, páginas de grupos de ódio.

Apesar de a Argentina ser um país que rememora a ditadura em todo o canto do país, como um alerta para que o passado não se repita, há ações de grupos de ultradireita, armamentistas e de conspiracionistas contra o “marxismo cultural” e outras teorias no pior estilo QAnon.

No Brasil, vivenciamos, no período eleitoral, diversos casos de violência política. O assassinato do policial Marcelo Arruda, em Foz do Iguaçu, é o exemplo mais crítico de uma expressão da política intolerante que foi, ao longo dos anos, estimulada pelo governo Bolsonaro. O ex-presidente falou em seu discurso de posse que as minorias deveriam se curvar à maioria. Em toda sua trajetória política foi misógino, racista, LGBTfóbico. Defendeu metralhar “petralhas” e homenageou torturadores da ditadura civil-militar no Brasil.

Mesmo após a posse de Lula, continuamos a enfrentar ações violentas dos golpistas. O ápice dos atos antidemocráticos aconteceu em Brasília no dia 8 de janeiro, com a invasão e depredação dos prédios dos Três Poderes. Ali, a violência não se dava no campo material apenas. Essas pessoas violavam o símbolo de uma democracia – frágil e burguesa, sabemos – conquistada com muita luta, não sem gente brava ter sofrido com perseguições, torturas, desaparecimentos e assassinatos. 


Sem perdão


A Colômbia de Francia Márquez vive um sério problema com facções paramilitares, resquício histórico vivo que ameaça direitos democráticos no país.

Londoño explica que esses grupos foram criados pelo próprio Estado. “[Álvaro] Uribe, desde que era governador de Antioquia, os patrocinou e os colocou em ação sob os cuidados do exército. Todas as instituições, desde a polícia, a Procuradoria Geral e as Forças Armadas estão impregnadas até a medula de paramilitares. O atual Procurador Geral da Nação, nomeado no governo anterior de [Iván] Duque, assumiu o cargo para que todas as investigações contra Uribe, mais de 200, fossem arquivadas. Hoje ele ainda é o promotor, apesar de todas as alegações que surgiram contra ele. E o governo de Gustavo Petro não fez nada para remover funcionários do Estado que foram denunciados por suas ligações com os paramilitares. O máximo que tem feito é oferecer-lhes uma boa aposentadoria”.

Na Colômbia, de 2020 a março de 2022, 1327 pessoas foram assassinadas, incluindo ativistas sociais e signatários dos acordos de paz entre o governo e as FARC.  Hoje todas estas investigações continuam a ser realizadas “exaustivamente”, de acordo com os números da INDEPAZ, uma ONG independente.

E embora não tenham vivido uma ditadura militar, Londoño destaca que a Colômbia sempre teve um regime político muito antidemocrático. “No século passado, nos anos 70 e 80, na maioria dos países da América Latina havia ditaduras militares e, na Colômbia, supostamente havia eleições a cada quatro anos, mas o número de desaparecidos e assassinados, que hoje continuam na mais absurda impunidade, é maior do que em todas as ditaduras”, apontou.

Dadas as diferenças, o processo histórico nos revela algo em comum: que a impunidade e a não resolução das graves violações de direitos humanos contra os povos na América Latina é o que nos assombra até hoje, neste grande salão com cadáveres escondidos debaixo do tapete e torturadores anistiados.

Por isso, penso que a palavra de ordem “Sem Anistia”, ecoada em todo o Brasil nos últimos atos realizados contra a ultradireita golpista, é uma demanda internacional.

O autor de “República de Segurança Nacional – Militares e Política no Brasil”, Rodrigo Lentz, em seu livro defende que existe uma presença permanente de militares na política, baseada em um perfil de Estado autoritário, escravocrata e colonial. 

Segundo o autor, a “Nova República”, pós golpe de 1964, já nasceu tutelada militarmente. “A disputa pelo poder político, incluído os conflitos entre as classes sociais de uma sociedade profundamente desigual, ocorreriam nas fronteiras alargadas da Ordem de Segurança Nacional, agora em outras condições conjunturais, muito mais favoráveis depois da reforma do regime de dominação política”, cita no livro.

Este livro está disponível gratuitamente em PDF . A versão física está à venda no link da Editora Expressão Popular.

E por isso, por termos vivido no Brasil uma transição pactuada, sem ruptura com as estruturas autoritárias, sem prestação de contas dos agentes e instituições do Estado, continuamos a manter militares com ideologias politizadas em posições estratégicas no poder, contribuindo para a manutenção de uma ideologia de 1964.

Tudo isso, penso, fez com que o “fantasma comunista” continuasse a ser utilizado contra os setores políticos mais populares. Como contra Luiz Inácio Lula da Silva, o metalúrgico do ABC, que trazia desde 1989 uma aura de ameaça aos privilégios da classe mais abastada.

Não sei você, mas eu vi muita gente próxima acreditando – apavorada – nesse espectro comunista nas últimas eleições.

Mesmo sabendo que, sim, Lula, em algum nível – dentro dos limites do sistema e da democracia desse sistema -, atua a favor da população mais pobre, sabemos que o que tivemos em seus outros dois mandatos, e o que teremos neste atual, não tem nada de comunismo. Pelo contrário. Foram governos que atenderam aos interesses dos ricos e do mercado.

Mas do ponto de vista simbólico, pensando naquele seu familiar, vizinho ou conhecido, que não é pobre, que não é preto, que não bate cartão, como vamos esperar que essas pessoas se sintam representadas na figura de um metalúrgico como Lula? E como vamos esperar que grupos intolerantes e racistas se reconheçam em Francia Márquez, ex-empregada doméstica?

Eles não só não nos reconhecem como semelhantes, como nos odeiam, não nos suportam. Não admitirão, jamais, que os mais marginalizados assumam os lugares de poder. Mesmo que estes estejam a serviço da manutenção do sistema tal como ele é, porque a luta de classes é a mais real e desafiadora das lutas.

Francia, que é de uma região litorânea, mais ao sul do principal ponto que recebeu escravos africanos naquele país, carrega no tom de sua pele a origem de resistência. É a ferida que não fecha e incomoda a sociedade de perfil escravocrata e colonial, que sangra não só na Colômbia como por todas as Américas.

“Embora hoje Francia seja conivente e, na prática, endosse todas as ações do governo [leia mais abaixo as ações impopulares do governo], durante a campanha eleitoral ela expressou os sentimentos de todo um setor dos negros e dos oprimidos, que foram discriminados durante toda sua vida neste país e que estão concentrados principalmente nas regiões do Pacífico colombiano e em Cartagena e seus arredores”, conta Londoño. 

O governo de Petro nomeou pessoas nos principais ministérios que são de total confiança da burguesia e do imperialismo. Petro fala em defender a Amazônia, mas não combate aqueles que estão destruindo a floresta para criar empresas agroindustriais ou mineradoras, ou para colocar essas extensões de terra para criar gado. Ele acaba de aprovar uma reforma fiscal onde supostamente aumenta os impostos sobre os mais ricos, mas a burguesia nunca paga impostos, porque se eles aumentam os impostos sobre as empresas, eles aumentam os impostos sobre o produto final que nós, os trabalhadores, consumimos.

É preciso manter a guarda e ir além

Na Colômbia, no Brasil e no mundo inteiro, o que temos visto é uma verdadeira batalha para mantermos o que conquistamos, a muito custo, nas últimas décadas.

É exaustivo, eu sei. Na Colômbia, o processo de lutas nas ruas durou anos. Somente em 2022, último ano do governo de Iván Duque, foram mortas mais de 230 pessoas entre civis, ativistas e signatários do pacto de paz, ex-integrantes das Farc.

No Brasil, muita gente adoeceu, tendo de suportar nos últimos quatro anos cerca de 700 mil mortes por Covid-19, sendo em torno de 400 mil evitáveis, e um cenário de barbárie e degradação humana.

Retrocedemos a tal ponto que tivemos de defender o mínimo de direito democrático em detrimento de nossas preferências de programa político. 

Gente de todos os setores, da direita, do centro e de esquerda, empreenderam esforços para derrotar o projeto de fechamento de regime de Bolsonaro. 

Festejamos, com todos os motivos, emocionados com uma cerimônia de posse de lavar a alma, tão carente por qualquer pingo de humanidade. Uma subida de rampa diversa, com oprimidos e invisibilizados da sociedade. Foi uma vitória importante, mas não representou nem de longe o fim dessa ameaça. É, não nos dão um pingo de paz.

Teremos que, ao mesmo tempo, lutar para defender governos que, mesmo que apenas simbolicamente, nos representam enquanto classe trabalhadora e garantem o Estado Democrático de Direito, e avançarmos para que possamos passar do “sobreviver” para o “viver”. E essa tarefa é urgente.

Lula afirmou que esse é o mandato de sua vida. Apesar de ter, nos ministérios, nove partidos representando a direita, o centro e a esquerda, é importante que ele tenha punho firme contra o avanço da ultradireita golpista e fascista. Lula deve desmontar o Partido Militar e minar a influência desse setor dentro do governo.

O mesmo deve ser feito por Gustavo Petro e Francia Márquez. Não podemos mais aceitar tutelas militares ou paramilitares em governos civis. 

Como Londoño avaliou, “o único impedimento do triunfo dos trabalhadores é que a maioria de nossas lideranças políticas e sindicais está a serviço dos capitalistas”, e que somente lutando poderemos construir uma liderança verdadeiramente revolucionária.

Portanto, precisamos vigiar, punir [a quem agride a liberdade e a democracia – sem anistia!] e ousar ir além.

Quando Londoño fala que Francia acendeu a força dos setores marginalizados na Colômbia, os chamados “los nadies”, eu logo penso na poesia de Eduardo Galeano. Mas diferente das palavras deste poeta que tanto gosto, desejo que a vida dos de baixo não custe “menos do que a bala que os mata”. 

Francia é nossa pele negra. Lula é nosso metalúrgico operário. As narrativas estão em disputas, ganharemos essa também, e mais: seguiremos além, para o pavor dos de cima que nos odeiam.

Sâmia Teixeira Sâmia Gabriela Teixeira é mãe de gêmeas e jornalista. Foi assessora da União Nacional Islâmica, onde criou o jornal Iqra. Atualmente integra a comunicação da CSP-Conlutas, escreve sobre movimentos sociais e mundo sindical internacional.

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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