Foto mostra policiais durante ato terrorista em Brasília

Atos antidemocráticos: “A omissão foi construída”, afirma especialista

Conversamos com Jacqueline Muniz, especialista em Segurança Pública, sobre os atos terroristas que aconteceram no Distrito Federal no último domingo (8)

Por Amanda Stabile

11|01|2023

Alterado em 11|01|2023

“No policiamento de eventos, o controle da multidão é uma espécie de arroz com feijão que toda a polícia sabe fazer, sobretudo no Brasil”, é o que aponta Jacqueline Muniz, pós-doutora em Estudos Estratégicos e professora do Departamento de Segurança Pública, do Instituto de Estudos Comparados de Administração de Conflitos (INEAC/UFF). 

Mas, então, se a gestão de eventos em larga escala não é uma novidade no país, o que pode ter dado errado para que atos tão violentos, como os ataques aos prédios do Congresso Nacional, Palácio do Planalto e Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília (DF), acontecessem no último domingo (8)?

A especialista, que também é sócia fundadora da Rede de Policiais e Sociedade Civil da América Latina e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, explica que se tratava de uma tragédia anunciada. “Primeiro porque os acampamentos que foram tolerados e permitidos são criadouros de práticas antidemocráticas. Segundo porque já tivemos um ensaio geral na posse presidencial e, antes dela, com os tumultos provocados na porta da Polícia Federal”, aponta.

Para entender melhor o que pode ter contribuído para que os manifestantes, que querem reverter à força a escolha do povo brasileiro nas urnas, tivessem acesso fácil e prolongado aos prédios dos Três Poderes, conversamos com Jacqueline Muniz. Confira:

Nós, mulheres da periferia: O que deveria ter sido feito para conter a manifestação?

Jacqueline Muniz: Todo momento sensível e crítico exige o emprego total dos recursos de segurança pública, é assim que se faz diante de uma greve. Isso exige um plano de policiamento convencional em que o comando integrado deveria estar na mão do governador do Distrito Federal (DF). Ele é o comandante e chefe das polícias estaduais, responsáveis diretamente pelo controle urbano.

Devemos lembrar que o tempo político decisório, o tempo administrativo do planejamento e execução, são anteriores ao tempo tático da ação policial. Antes da polícia agir taticamente na Esplanada, decisões anteriores numa cadeia de comando e controle foram tomadas. Portanto, houve a liberação para que se ocupasse a Esplanada dos Ministérios.

Então deu errado porque tinha permissividade, porque era isso que se desejava politicamente. Deu errado porque esta foi uma decisão política construída. Não foi falha de um, despreparo de outro, incompetência de alguns. A omissão é construída. 

Quem dá a missão, dá os meios e delimita os modos de agir. Assim, colocar o que aconteceu na conta do preparo do policial é errado. Isso é individualizar e dissolver. Também não dá para usar a desculpa da inteligência. Usam porque o cidadão fica imaginando: “é algo muito secreto, muito sigiloso”, quando não passa de gestão da informação e do conhecimento, a serviço do planejamento e da tática operacional.

Nós: Qual o papel de cada polícia em um evento como o do último domingo (8)?

Jacqueline: A Polícia Rodoviária Federal (PRF) deveria estar fazendo, provavelmente deve ter feito, o controle da entrada dos ônibus. Inclusive para arranjar um lugar que não paralise a cidade. A documentação está em dia? As pessoas estão armadas? Há coisas agudas que podem  servir como instrumento de predação?

A polícia não tem como antecipar se o indivíduo que está indo fazer um turismo político vai se transformar num turismo de baderna patrocinado pelo governo distrital. Mas ela tem como ter o controle dos passageiros, porque um manifestante pode se machucar, pode se ferir, pode ficar perdido.

A Polícia Militar (PM) tem competência para atuar nas estradas dentro do estado, portanto dentro do Distrito Federal, em atividade articulada com a PRF, de maneira a também garantir os fluxos. É competência da PM fazer o policiamento ostensivo, de pronta resposta, nas rodovias, ruelas, nas avenidas. E, mais que isso, nos entornos das instalações militares, porque o poder de polícia do exército é dentro das instalações, fora tem que negociar com a PM. Além disso, a Polícia Militar também tem papel contra a insurgência, na gestão de eventos de multidão e de protesto, isso se chama “policiamento de dissenso”. 

Se tiver Guarda Municipal, ela atuará em um complemento à atividade ostensiva de gestão de território e de população, sobretudo em pontos estratégicos, como entrada de saída de aeroportos e rodoviárias, os pontos onde se tem fluxo. Então, a guarda municipal estará ali como agentes de trânsito.

A Polícia Civil se coloca à disposição no espaço de concentração decidido e negociado previamente para a multidão gritar e protestar dentro das quatro linhas democráticas. Cabe à polícia civil distrital disponibilizar o ônibus para as pessoas que serão detidas e uma delegacia móvel itinerante para fazer autuação em tempo real de indivíduos recalcitrantes ou, digamos assim, animados demais, com a expectativa de predar. A autuação é feita em uma unidade móvel, que pode ser uma tenda, uma van, uma kombi. Vai ficar esperando chegar na delegacia para fazer a ocorrência? Que lógica passiva é essa? Só se aprovada pelo governador.

A Polícia Federal pode apoiar esse trabalho, uma vez que atentado de terror é um crime federal. Então ela dá suporte em complemento à ação da Polícia Civil. Ela pode não só trabalhar com seus sensores de inteligência, fazendo monitoramento, como também pode se disponibilizar para autuar, como agora aconteceu, com os ônibus todos indo para a Polícia Federal. Ou seja, ela não precisa aguardar, pode se fazer presente numa espécie de superintendência, em uma delegacia móvel. 

Esse mesmo recurso móvel precisava ser cobrado do Ministério Público (MP), ele é o responsável pelo controle externo das polícias. Não houve plantão do MP em um evento que era possível de perder o controle e de romper com os limites democráticos. Também não houve presença ou plantão da Defensoria Pública para receber queixas.

E o corpo de bombeiros, também estadual, foi colocado à disposição? Não existe isso de fazer eventos de massa sem que você tenha o corpo de bombeiro postado, com ambulâncias e imposições logísticas fundamentais. Pode ter incêndio, podem pôr fogo dentro do Palácio, na rua, na Esplanada. Podem se cortar, pode ter uma correria danada, as pessoas podem se machucar com os vidros quebrados e não ter bombeiros. Quer dizer que os funcionários que estão dentro dos palácios, dando plantão, podem ser espancados, vitimados, pode ter vitimização dos próprios agentes da lei e não tem presteza de socorro.

Já a Polícia Legislativa fica dentro do palácio. Ela não é suficiente para fazer o cerco territorial do prédio, mas sim para proteger dentro, articulada com a Polícia Militar, com a Guarda Municipal e os demais recursos.

E a Guarda Presidencial é cerimonial. Então, a capacidade coercitiva de garantir o prédio do Planalto é limitada. Ela pode informar: “estão tentando entrar por aqui ou por ali”, assim como a brigada de incêndio de plantão. Mas eles sozinhos ali, como segurança do prédio, são incapazes de dar conta de uma invasão em larga escala.

Nós: Qual o papel do secretário de segurança do estado em um momento como esse?

Jacqueline: O Secretário de Segurança é o representante do governador. Ele comanda. Ele autorizou que se entrasse Esplanada adentro sob a perspectiva de que estava tudo tranquilo, que as pessoas eram legais. Não é assim que se faz. A cidade tem que seguir funcionando, o evento tem que acontecer dentro dos limites democráticos.

Então, obviamente o que aconteceu foi leniência, foi cruzar os braços, foi o policiamento do depois, um policiamento de figuração, de fachada, pra dizer que fez. E demorou pra chegar.

A variável crítica no trabalho de polícia se chama tempo, a razão de ser da polícia em atividades como essa é fazer o relógio andar para trás, agindo por antecipação, é isso que dá superioridade tática à ela. É isso que faz com que a polícia seja uma organização de força e não um bando armado.

Portanto, não foi o policial ali que errou, ele fez exatamente o que foi determinado pelo secretário de plantão, que era escoltar e ficar ali acompanhando. Por isso virou uma grande turba, as pessoas correndo para todo lado, como se fosse uma grande liquidação. Porque golpe nenhum ia acontecer. Ninguém toma o poder sem base socioeconômica de sustentação. O ato serviu para predar, foi um espetáculo que foi produzido politicamente para produzir resultados eleitorais. Mas o cálculo feito pelo governador foi ruim.

Nós: O que você acredita que deve ser feito daqui em diante?

Tem que mapear os financiadores. Ninguém chegou ali sem financiamento, sem promotores e sem aqueles que autorizassem de forma explícita e direta.

Quem dá a missão, dá os meios. E quem dá missão é o governante. Aquilo só aconteceu porque se quis que acontecesse e quem quis que acontecesse tem que ser responsabilizado por tal. Começa no Governador e vai até o policial de ponta.

O que nós assistimos foi a ingovernabilidade intencional e a bateção de cabeça, o monopólio do não fazer. Cada um cantando de galo, mas não assumindo a responsabilização. É preciso de mecanismos de natureza administrativa e procedimental.

Precisamos parar de viajar na maionese e olhar a realidade tal como ela é: tratou-se de decisões. Inclusive, adiar a decisão também é uma decisão.