Mãe Izolina de Oxóssi

Curitiba (PR): resistindo à intolerância, ialorixá lidera terreiro há 50 anos

Conheça a história de resistência da Mãe Izolina de Oxóssi, empregada doméstica que se tornou ialorixá aos 24 anos

Por Redação

04|10|2023

Alterado em 05|10|2023

Por Ludi Evelin Moreira

Os filhos de santo estão reunidos ao redor de uma grande mesa no refeitório do barracão, enquanto a ialorixá agradece às divindades africanas pela fartura da primeira refeição do dia.

A cerimônia faz parte do amanhecer da Alvorada: o ritual que dá início à festa de Oxóssi, o orixá da caça, das florestas, da fartura e do sustento.

As celebrações acontecem em um dos terreiros de candomblé e umbanda mais antigos de Curitiba, cuja fundação aconteceu há mais de quatro décadas, quando a mãe de santo tinha apenas 24 anos.

pessoas vestidas de branco

A tradicional festa de Oxóssi tem como desígnio celebrar o alimento, a fartura e a prosperidade, enaltecendo o sustento do corpo e da alma

©Karol Kosta

O Ilê Asé Ode Inle fica localizado no bairro do Pinheirinho, na periferia da capital paranaense. Ao lado da espaçosa casa de dois andares cor de salmão e piso de granito, funciona uma ONG fundada por Mãe Izolina Gruber, líder religiosa do terreiro.

Engana-se quem pensa que o Ilê sempre teve a aparência que possui atualmente. “Tudo começou com um barraco de pau a pique em um chão de terra batido”, conta Izolina. Hoje, aos 79 anos, a mãe de santo assume integralmente a liderança espiritual da casa.

Natural da Lapa, cidade no interior do Paraná, Izolina se mudou para a capital ainda criança. Aos 11 anos, por influência da mãe, começou a frequentar um terreiro de umbanda no bairro do Mercês. Com o passar das giras, descobriu a capacidade mediúnica e passou a incorporar uma preta velha chamada Maria Conga.Não imaginava que algum dia se tornaria mãe de santo. “A mediunidade estava cada vez mais aflorada e os orixás me deram uma missão. Passei a frequentar o terreiro do pai Neno de Oxum. Quando ele decidiu que não poderia mais cumprir a missão, os meus irmãos da casa me procuraram para ser a liderança espiritual deles. Foi quando decidi fundar o ilê”, relembra Izolina.

Mãe Izolina de Oxóssi

Izolina Gruber se tornou ialorixá aos 24 anos de idade e, hoje, aos 79 anos, lidera o Ilê Asé Ode Inle

© Karol Kosta

Foi então que decidiu iniciar-se também no candomblé com um pai de santo. Acabou conhecendo Antônio Ogan, o primeiro pai de santo de Curitiba. “Eu não tinha conhecimento desse lado do yorubá, dos orixás. E como eu iria cuidar das pessoas se eu não tivesse essa iniciação? Eu queria saber como ajudar o meu povo”, relata.

Hoje, Mãe Izolina faz parte do Terreiro do Gantois ou Ilê Asé Iyá Omin Iyamassê, que é o mais famoso e tradicional terreiro da nação ketu no país. Situada em Salvador, a casa de candomblé é comandada por Mãe Carmen de Oxaguian, filha de Mãe Menininha do Gantois.

Empregada doméstica, mãe solo e ialorixá em tempo integral

Vinda de uma família humilde, Izolina teve apenas a oportunidade de aprender a ler e a escrever. Aos 24 anos, separou-se do marido. Para criar os cinco filhos pequenos, começou a trabalhar como empregada doméstica em “casas de família”. Apesar da tripla jornada como mãe solo, trabalhadora doméstica e ialorixá, Izolina não abandonou a liderança espiritual e o culto aos orixás. “Ser mãe de santo é honrar a missão que me foi dada. Nunca tratei esse trabalho como um fardo, mas como um grande privilégio. Os orixás cuidaram de mim e dos meus, enquanto eu cuidava dos filhos deles”, diz.

Com muito esforço, criou uma empresa de limpeza e, com os filhos, conseguiu melhorar a situação financeira do barracão, que também contava com a presença dos chamados “filhos agregados”. “Um dia, uma mãe teve um colapso cardíaco em um ponto de ônibus e deixou três filhos, que acabei adotando. Outros eram moradores de rua, não tinham para onde ir. Chegavam no Ilê e iam ficando, até formarem suas próprias famílias”, conta ela. Em uma certa época, o terreiro chegou a ser ocupado por mais de trinta pessoas. Ao total, contando os filhos biológicos e os agregados, a família da ialorixá é formada por mais de 62 pessoas.

Com o tempo, o Ilê Asé Ode Inle passou a receber pessoas influentes, como políticos e artistas famosos, que buscavam trabalhos espirituais. Por meio da rede de contatos, começou a exercer o papel de líder comunitária do bairro, articulando as necessidades dos moradores com o poder público. Ligações de água e luz, medicamentos e cestas básicas foram apenas algumas das coisas que a mãe de santo conseguiu para os vizinhos. “Passei a ser respeitada na comunidade e aproveitei a oportunidade para desconstruir os preconceitos contra a religião. Até porque a verdadeira religião é a caridade, fazer o bem aos que estão ao nosso redor”, conta.

Intolerância religiosa e apagamento histórico

Quase cinco décadas atrás, quando se instalou no Pinheirinho, Mãe Izolina precisou ficar cara a cara com a intolerância religiosa. “Naquela época, a polícia entrava dentro dos terreiros com cavalos, porque as pessoas denunciavam. A perseguição era intensa. Comparado ao passado, hoje em dia estamos muito mais tranquilos dentro do nosso axé”, reflete. “As pessoas estão mais abertas a aprender sobre religiosidade e ancestralidade. Quem procura o candomblé está em busca de um caminho espiritual e do entendimento do que está fazendo nesta vida terrena”, explica.

Apesar de ser a capital mais negra do sul do país, os dadosdos praticantes das religiões de matriz africana são escassos e desatualizados. Em 2008, a Universidade Federal do Paraná (UFPR) levantou a existência de mais de 83 terreiros de umbanda e candomblé em Curitiba. A maioria está localizada em locais de pouco acesso nos bairros periféricos, o que prova o contexto de perseguição e invisibilidade dessas religiões na cidade.

“Ao contrário de outras capitais brasileiras, Curitiba não possui nenhum terreiro tombado como patrimônio histórico. Todos os anos, eventos cristãos são viabilizados com recursos públicos e fazem parte do calendário oficial da cidade, mas nem as passeatas em prol do combate à intolerância religiosa organizadas por coletivos negros são incluídas no calendário oficial da cidade”, denuncia o ogã do Ilê Joe Jordão, neto de dona Izolina.

Matriarcado, caridade e fé

Numa sociedade patriarcal, as religiões de tradição judaico-cristã colocam o homem no centro do serviço sacerdotal. As religiões de matriz africana seguem um caminho diferente, sendo a mulher a liderança espiritual. Segundo Mãe Izolina de Oxóssi, as mulheres são respeitadas e sacralizadas por gerarem vidas. “Tem cargos que somente as mulheres podem assumir. Como ialorixá, sou eu quem delego as tarefas do Ilê. Me sinto muito valorizada pela religião, pois somos até mais respeitadas por sermos mulheres”, diz

festa de natal

Ação natalina realizada no barracão em 2018 com crianças de um orfanato local

©Karol Kosta

A palavra que traduz o matriarcado no candomblé é cuidado. São mulheres que cuidam dos seus e dos outros, agindo como lideranças espirituais e comunitárias, fomentando a educação e a dignidade de quem mais precisa. Foi pensando nisso que a ialorixá decidiu criar a Associação Izolina de Lima Gruber de Estudos e Práticas Espirituais (AILG) ao lado do barracão, uma ONG onde filhos de santos e professores voluntários se dedicam a ensinar os preceitos do candomblé e dão aulas gratuitas de atabaque, capoeira e judô para crianças e adolescentes carentes da região.

roda de capoeira

A Associação Izolina de Lima Gruber coordena projetos sociais destinados a crianças e adolescentes carentes

©Karol Kosta

Em 2012, a ong teve o seu trabalho reconhecido como sendo de Utilidade Pública pela Prefeitura de Curitiba. Apesar da menção honrosa, os trabalhos sociais realizados pela associação não recebem nenhum tipo de auxílio do poder público e são custeados por ações realizadas pelos filhos de santo. “Vendemos feijoada, lanches e rifas para pagar as contas. É trabalhoso, mas só de ver a alegria das pessoas que conseguimos ajudar, faz todo o esforço valer a pena”, reflete ela.

Mãe Izolina de Oxóssi

Para compartilhar todo o conhecimento que adquiriu com os orixás, a ialorixá decidiu escrever um livro sobre ervas e preceitos religiosos

©Karol Kosta

Neste ano, o Ilê Asé Ode Inle completou 48 anos de existência. Sob a liderança de Mãe Izolina, formou centenas de filhos de santo que fundaram casas no Brasil e no exterior, contribuindo para a preservação dos cultos africanos e a consolidação do candomblé. E, para deixar o conhecimento que teve com os espíritos, a ialorixá decidiu escrever o livro “Rasgando os véus”, que já está em fase de produção por uma editora local. Além de trazer os preceitos da umbanda e do candomblé, o livro também deve trazer a importância de algumas ervas e os tratamentos que podem ser feitos com elas. “Quero compartilhar tudo o que aprendi ao longo de mais de 60 anos como ialorixá. Quero garantir que esse legado motive as pessoas a conhecerem essa religião ancestral que iluminou a minha vida e ilumina a de tantas outras pessoas”, completa.