A história de Rosa Parks e o nosso direito de ir e vir na cidade

O direito de existir da população negra está diretamente conectado ao direito à cidade e à mobilidade urbana; conheça a história de Rosa Parks.

13|04|2023

- Alterado em 17|05|2024

Por Jéssica Moreira

Começo este texto enquanto observo uma moça descascar a unha no metrô. Sobre sua mochila, pedaços de esmalte vermelho vão caindo um a um. Do outro lado, uma outra mulher tira o salto e veste a sapatilha baixinha. A campainha toca. As portas se abrem.

A cobrança estética descansa na volta pra casa. Daqui oito horas ou menos, o relógio bate de novo. Mulheres se equilibram para passar rímel, batom ou lixar a unha. Outras passam creme de pentear no cabelo ainda molhado. É o tempo que deu. É o tempo que dá todos os dias.

As que conseguem sentar aproveitam para dormir o sono que foi interrompido. Algumas trazem o banco de plástico de casa. O pescoço pendurado para a frente é o sinal do cansaço no corpo. Outras seguram a cria que vai para a escola antes mesmo que ela vá para o trabalho.

Lembro de uma amiga da faculdade que acordava às 4h para passar delineador. Confesso: escolhia dormir mais um pouquinho. Assumir a cara de sono também traz consequências: em uma sociedade em que o valor de alguém é medido pela estética, ninguém quer saber por que da cara limpa, da olheira aparente.

“Aquela carinha dela bagunçada, mas é inteligente e agilizada”, foi a frase que chegou até mim certa vez sobre minha aparência. Só um exemplo de como as pessoas podem ser cruéis e preconceituosas até quando acham que estão fazendo um elogio.

Se livrar das amarras de uma sociedade machista é o objetivo. Mas pra mim nem sempre foi fácil. Primeiro foi o cabelo: crespo e volumoso. Foram anos alisando fio a fio para me encaixar num padrão do que era belo. Hoje, embora assuma o enrolado, ele frustra a expectativa do que se espera de um cabelo afro. Ele tem vida própria, cachos nem sempre uniformes. É de verdade.

O papo é o direito à cidade. Mas viu só como falar sobre o assunto nos faz refletir sobre outros temas? Isso porque a nossa vida, enquanto mulheres negras e periféricas, está completamente conectada ao direito (ou não direito) de ir e vir na cidade.

“Desde o início, nós, mulheres negras, circulamos e fomos tiradas de nossas terras para começar uma vida em novos impérios alhures, pertencentes àqueles que nos exploraram a carne durante séculos. O navio negreiro, o primeiro grande transporte pelo qual fomos sujeitadas, em massa, a iniciar uma jornada diaspórica marítima até o Brasil“, é o que nos lembra Mayra Ribeiro, no texto “Mulheres Negras no Transporte Público”.

Mayra nos convida a entender a mobilidade pelo curso da história negra, e como esse caminho está marcado pela luta das mulheres principalmente pela ocupação e direito ao transporte público:

Uma mulher negra, Rosa Parks, dentro de um ônibus nos Estados Unidos. A regra era “clara”: havia duas seções para absolutamente tudo na cidade, dos bebedouros aos assentos de brancos e negros. Brancos sentavam na frente e negros atrás, como sempre na história da colonização. Mas, se houvesse um único branco em pé, o motorista deveria mover para trás a placa que indicava o limite das seções. A ação faria com que os negros mais à frente tivessem que saltar para trás ou ainda ficarem de pé. Mas Rosa disse não. O motorista do ônibus pediu que a mulher se levantasse. “Não”, respondeu ela simplesmente. “Bem, então vou fazer com que a prendam”, falou o motorista do transporte em que ela estava. De maneira intransigente, Parks ainda disse: “Pode fazer isso”, e assim inicia-se o movimento pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, advogando pelo direito de voto, fim da segregação e da naturalidade de explorar corpos negros, na busca pela liberdade e cidadania numa suposta democracia”.

Falar sobre cidade, no caso das mulheres, é falar também sobre o direito a outros serviços, principalmente aqueles oferecidos às infâncias, como creches e escolas.

Pensar em uma cidade boa para as mulheres é pensar um espaço que beneficia a todos, já que quanto mais emprego ou serviços descentralizados, como saúde e educação.

Um estudo da Prefeitura de São Paulo publicado em 2020, mas baseado nas pesquisas de Origem e Destino coletadas em 2017, mostra que as mulheres se deslocam muito mais pela cidade do que os homens. O número total de viagens produzidas pelos moradores da capital paulistana no ano da coleta foi de 24,9 milhões: 50,6% (12,6 milhões) foram feitos por mulheres, as quais representavam mais da metade (53,1%) da população da cidade.
“Transporte coletivo (43,5%) ou a pé (32,5%) são os meios de locomoção mais usados pelas mulheres, contrastando com os homens, que utilizam mais o transporte individual, principalmente, carros próprios”, aponta o levantamento. “As mulheres ainda fazem mais viagens devido à educação, saúde e compras (48% do total de viagens) do que os homens, muito por causa das funções domésticas que ainda lhe são incumbidas, como levar os filhos à escola, acompanhar outro integrante da família ao médico e ir ao mercado”.

Digo sempre: se um empregador busca uma pessoa organizada, contrate uma mulher moradora das periferias. O dia dela começa no dia anterior, quando precisa organizar cada minuto para não se atrasar para a escola, para o transporte, para o trabalho e outras tarefas que faz.

Para não ir embora sem antes deixar um pouco de poesia, indico os versos que me inspiraram a escrever esse texto. De Moçambique, África: Noêmia de Sousa. Noêmia nasceu em Catembe, Moçambique, em 1926. Foi poeta, jornalista de agências de notícias internacionais, viajou por toda a África durante as lutas pela independência de vários países. Só publicou tardiamente seu livro de poesias Sangue Negro, em 2001. Morreu em Portugal, em 2002, mas continua me ajudando a enfrentar o cotidiano aqui pelas docas de São Paulo.


Moça das Docas

Somos fugitivas de todos os bairros de zinco e caniço. Fugitivas das Munhuanas e dos Xipamanines.
viemos do outro lado da cidade
com nossos olhos espantados,
nossas almas trançadas,
nossos corpos submissos e escancarados.
De mãos ávidas e vazias,
de ancas bamboleantes lâmpadas vermelhas se acendendo,
de corações amarrados de repulsa,
descemos atraídas pelas luzes da cidade,
acenando convites aliciantes
como sinais luminosos na noite.
Viemos …
Fugitivas dos telhados de zinco pingando cacimba,
do sem sabor do caril de amendoim quotidiano,
do doer espáduas todo o dia vergadas
sobre sedas que outras exibirão,
dos vestidos desbotados de chita,
da certeza terrível do dia de amanhã
retrato fiel do que passou,
sem uma pincelada verde forte
falando de esperança.


Para você que também vive essa realidade, sinta-se abraçada. Sei bem que não é fácil. E se quiser contar sua história pela cidade, esse espaço é seu também. Pode me enviar seu relato no jessica.nosmulheresdaperiferia@gmail.com ou me mande mensagem no instagram.com/ajessicamoreira. Até semana que vem!

Jéssica Moreira Jéssica Moreira é escritora e jornalista. Cofundadora e diretora de comunidade do Nós, mulheres da periferia. É autora de VÃO: trens, marretas e outras histórias (Patuá) e ministra oficinas e palestras sobre cidade e literatura.

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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