O direito à cidade e meu medo de perder o trem

"De passagem", nova coluna da jornalista Jéssica Moreira irá refletir sobre direito à cidade pela perspectiva negra e feminina.

16|03|2023

- Alterado em 16|03|2023

Por Redação

“Eu a vida toda tive medo de perder o trem. Sempre morei longe do sonho, do dinheiro, da formação, de um tipo de arte, do descanso. Calculei a vida pra não perder o trem. Fiz a conta: distância mais cidade partida do meio dá igual caminho andado em vão!”

Os versos acima são da poeta e atriz Elisa Lucinda. A multiartista os escreveu exclusivamente para o livro “Mobilidade Antirracista“, da Fundação Rosa Luxemburgo. Embora tenham chegado até mim em 2021, foi só agora em 2023 que conversaram com o meu mais profundo medo de perder o trem. 

Medo real que me faz correr escada, contar os segundos para o bilhete passar a catraca, suar a testa e a camisa antes mesmo do sol raiar. Medo que tira o tempo do café da manhã ou de arrumar o cabelo como eu gostaria. Medo que não dá tempo, só tira e não volta mais.

“Minha vida foi de vagão em vagão até agora. Até que essa derradeira hora.

Em cada fila de emprego, em cada fila de concurso, em cada fila de seleção, eu nunca quis perder o trem da oportunidade. Nunca quis perder trens: da conversa, da chance, da palavra, da história”.

Desde 2006, atravesso a cidade para alcançar sonhos. Primeiro foi o da formação. Na época do Ensino Médio, a escola técnica pública mais próxima ficava  a 20km de casa. A distância ficou maior no Ensino Superior. A faculdade ficava a 37 km, mais ou menos duas horas até chegar lá. Minha casa sempre foi longe de todos os trabalhos.

Durante a pandemia, o home office me manteve longe dos vagões. Me perguntavam se eu sentia falta, já que sempre contei histórias de trem. A resposta não poderia ser mais óbvia: não gosto do trem, gosto das pessoas; e das estratégias criadas por elas para sobreviver todos os dias ao transporte público. 

Em 2022, em uma reviravolta de planos e rotas, voltei a pegar trem para trabalhar. O trajeto ficou mais longo do que antes. Duas horas pra ir, duas pra voltar. Quase 40 km. São quatro horas que eu poderia fazer qualquer coisa: malhar, dormir, curtir, estar com quem eu amo.

Poderia dizer que são escolhas da vida. Mas como você pode ver, nem sempre pude escolher. E sei que essa realidade não é só minha. 

Você já parou para pensar no tempo que perdeu no transporte? Dados da Pesquisa Viver em São Paulo: Mobilidade Urbana, da Rede Nossa São Paulo em parceria com o Ibope Inteligência, mostra que 26% da população da cidade de São Paulo gasta mais de 2 horas em deslocamentos diários. O tempo médio dos que utilizam transporte público é de 2h31.

“Ah! Então por que você não compra um carro, Jéssica”, já escutei algumas vezes. A mesma pesquisa citada acima aponta que o tempo médio de deslocamento entre os que utilizam carro é de 1h29. Embora diminua em relação ao transporte público, o problema não é completamente solucionado. Sem dizer os gastos da compra e manutenção com um automóvel, que não é acessível a todos, e deve estar na ponta do lápis. “Ah, então é melhor você alugar um apartamento no centro, né?”. Também é outro argumento que escuto muito. O metro quadrado em São Paulo é um dos mais caros do país.

Todas as micro soluções acima até podem funcionar para alguns, mas não é uma política pública, não ajuda a todos. Já que existe uma organização da cidade que ainda privilegia o centro. É nessa região que estão as ofertas de emprego e também opções de lazer. Fazendo disso uma questão muito mais estrutural do que imaginamos.

Enquanto isso não melhora, quem reflete sobre a saúde física e mental de trabalhadoras e trabalhadores que atravessam a cidade todos os dias? Sempre brinco que deveria haver um adicional salarial a todos que moram a mais de 20 km do trabalho. “Mas aí ninguém mais contrataria”, um amigo “brincou falando sério”. Ele tem razão. O preconceito territorial e a desconfiança de que você não vai dar conta de ser pontual, rondam muitas entrevistas de emprego. 

Mesmo após um fortalecimento da identidade periférica, ainda há quem minta o CEP para não perder o emprego. Meu pai fez isso, minha mãe também. Se é da periferia, você ou alguém da sua família também precisou mentir. Menos por vergonha do local de onde é e mais pela necessidade de pagar os boletos. 

Já escrevi um livro todo no trem, o Vão: trens, marretas e outras histórias (Editora Patuá). Foi o que me ajudou a ressignificar o espaço e seguir utilizando o trem por dez anos. Quase um ano e meio depois do lançamento, volto a escrever com o fino fio de poesia que ainda me resta dentro desse espaço.

A diferença é o cansaço. Estou mais para Adélia Prado, com seu verso “De vez em quando, Deus me tira a poesia. Olho pedra, vejo pedra mesmo”. Mas prometo trazer aqui muitas histórias e reflexões sobre meu dia a dia pelas estações: as tiradas bem elaboradas dos marreteiros (vendedor ambulante); o amor passageiro no vagão; as brincadeiras de criança onde a gente só vê cansaço. Mas também vamos botar o dedo na ferida. Também vamos falar da política pública que não chega, e do tempo que nos é roubado todos os dias. 



Bora começar! Me conta o que você já deixou de fazer por causa do transporte público? 

Escreva para @ajessicamoreira ou jessica@mulheresdaperiferia.com.br e também conte sua história no transporte.

Jéssica Moreira é escritora e jornalista. Cofundadora e diretora de comunidade do Nós, mulheres da periferia. É autora de VÃO: trens, marretas e outras histórias (Patuá) e ministra oficinas e palestras sobre cidade e literatura.

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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