Neste Natal, a resistência palestina é luz em meio às sombras da ocupação 

Enquanto o exército israelense revela sua face cruel, a integridade do povo palestino reafirma a crença na humanidade

19|12|2023

- Alterado em 19|12|2023

Por Redação

Em Belém, na Palestina ocupada, em respeito ao luto das famílias que perderam entes queridos e conhecidos nos ataques israelenses, a tradicional e iluminada festa de Natal foi cancelada.

Na terra onde, segundo o cristianismo, nasceu o menino Jesus, os bebês tiveram suas incubadoras desligadas e foram privados de viver. As crianças morreram soterradas, bombardeadas ou queimadas com armas químicas.

Até o momento (Dados coletados até o dia 18/12/2023 no site Aljazeera), 19453 palestinos foram mortos pelo exército de Israel com o apoio dos Estados Unidos e de outros países aliados. Do número total de vítimas fatais, 7729 são crianças e 5153 são mulheres. Mais de 52200 foram feridos e enfrentam condição de atendimento médico extremamente precária.

Esses são alguns dos dados mais recentes das mortes em Gaza. Para se ter uma ideia, é como se toda a população da cidade de Brotas (SP) fosse aniquilada em pouco mais de 70 dias.

Já na Cisjordânia, mais de 3365 pessoas ficaram feridas e pelo menos 301 palestinos foram mortos, incluindo cerca de 70 crianças.

Agora, me pergunto: como conceber o assassinato de 8 mil crianças? A média de idade dessas vítimas é de apenas 5 anos. A estimativa é de que o número de crianças desaparecidas, ainda presas sob escombros – e certamente mortas -, seja o mesmo que o registro total de mortes.

bandeira da palestina em praia

Praia de Copacabana tem protesto contra assassinato de crianças palestinas

©Tânia Rêgo/Agência Brasil

Desde 7 de outubro, morreram mais crianças em Gaza do que em conflitos registrados em todo o mundo nos últimos quatro anos. Não por acaso, a Unicef descreveu a ofensiva de Israel na Faixa de Gaza como uma “guerra contra a infância”, e que “permitir o massacre dessas crianças significa que a humanidade está sucumbindo”.

Nesse período de quase três meses de massacre contra o povo palestino, não foram poucas as vezes em que meu peito apertou ao assistir cenas e mais cenas de mães com seus filhos mortos nos braços, relutando em se despedir para sempre de quem mais amou em toda existência. Mãos tão pequenas, rostos tão delicados, embrulhados em tecidos brancos manchados de vermelho sangue.

O que mais tem angustiado e inquietado os que se sensibilizam com a causa palestina, certamente, são essas cenas. E o silêncio. O fato de que, longe – ou mesmo perto – dali, a vida segue o curso. A roda gira, as luzes de Natal piscam e as pessoas vivem suas vidas, cada vez mais distantes da oportunidade de conexão humana com esse povo que há décadas nos ensina o que é luta por liberdade.

Evidentemente muitos passaram a compreender melhor ou aprenderam o que se passa na Palestina ocupada. Muitos conheceram, com esse mais brutal massacre israelense, o criminoso avanço do projeto de limpeza étnica na Palestina. Não somente o apartheid aplicado contra um povo, mas também uma série de crimes de guerra cometida sob o olhar e a cumplicidade da comunidade internacional têm revelado a real face da Ocupação israelense.

De acordo com os dados mais recentes do OCHA (Escritório de Coordenação de Assuntos Humanitários da ONU) e informações oficiais palestinas, até 13 de dezembro, os ataques israelenses destruíram pelo menos 305 mil residências, 339 complexos educacionais e, dos 35 hospitais, 26 foram danificados a ponto de não terem mais capacidade de atendimento.

O grau de devastação não constrangeu o mercado imobiliário, por exemplo. Na ânsia de compartilhar os planos de construção de blocos residenciais em Gaza, a empresa israelense Harey Zahav divulgou um projeto de construção sobre uma paisagem arrasada de escombros.

Por tudo isso e muito mais que se tem visto que, se em outros tempos havia, em qualquer posicionamento público, o receio do enquadramento no antissemitismo, hoje o sionismo não está tão fortemente blindado. Diria, até, que segue no sentido contrário. Essa ideologia colonialista – instrumento de um genocídio em curso – tem se revelado como de fato é, até mesmo entre a comunidade judaica.

E do outro lado, contra um exército vil, a integridade do povo palestino tem oferecido esperança. Embora ainda haja vazio, omissão e silêncio, no atual momento da luta palestina é como se do horizonte fosse possível escutar o toque efusivo de um dabke (dança tradicional palestina) de resistência. O prenúncio do declínio do apartheid israelense.

Apesar do cerceamento militar, da violência cotidiana e da atual carnificina, o abraço das mães enlutadas e o choro das crianças órfãs, cheias de saudade, encontram na fé alguma chance de poder experimentar, em algum lugar divino e de justiça, a dignidade ao lado de seus familiares e amados. Se não no dogma, o povo palestino encontra a força da resistência no amor à terra, no ponto de partida, na origem, no pranto de nascimento.

Há dois anos escrevi uma coluna para o “Nós” que tinha como título “Palestina é uma mãe que pariu uma memória indestrutível”. O texto resgata uma oportunidade pessoal de ter entrevistado, quando iniciava no jornalismo, a combatente Leila Khaled e a ativista Abla Saad’at, companheira do preso político Ahmad Saad’at.

À época, a coragem e a força dessas palestinas me tocaram profundamente. Na história de resistência contra a ocupação, a mulher palestina é determinante, pois é a figura que se mobiliza em uma sociedade em que a maior parte dos homens está ilegalmente encarcerada. E quando essas mulheres são capturadas pelas forças da ocupação, sofrem toda sorte de abuso.

Rawa Alsagheer, refugiada sírio-palestina que integra a Rede Samidoun de Solidariedade aos Presos Políticos e o Caminho Alternativo Palestino, relatou, para a coluna mencionada, que “as formas de tortura [contra as mulheres] incluem agressão física durante as detenções e as revistas, enquanto estão nuas, e interrogatórios com métodos de tortura física e psicológica”, Além disso, afirmou que “as mães são privadas de visitas abertas e do abraço de seus filhos”.

De acordo com os dados da Addameer – Associação de Apoio aos Prisioneiros Palestinos e Direitos Humanos de setembro deste ano, estão sob cárcere israelense 5200 presos políticos palestinos, 1264 em detenção administrativa – prisão que ocorre mesmo quando não há acusação formal ou julgamento, 170 crianças, 33 mulheres e 4 parlamentares membros do Conselho Legislativo.

Como parte da recente negociação entre Hamas e Israel, 78 crianças foram liberadas da prisão. Muitas relataram abusos, tortura e foram ao encontro de familiares visivelmente feridas.

Mohammed Nazzal, de 18 anos, atendeu ao pedido de entrevista na saída da prisão. O repórter perguntou “você está assustado?” e o jovem respondeu: “não, nem um pouco”. “Mas eles quebraram seu braço”, prosseguiu o jornalista. “Sim, me quebraram. Mas confio em Deus. Nós temos Deus e eles têm o que? Os Estados Unidos?”, questionou.

Outro jovem, não identificado, com um ferimento na cabeça e o corpo coberto da poeira dos escombros de um bombardeio recente disse: “Nós somos heróis, nós somos Gaza. Cadê vocês, países árabes? Que Deus abençoe você, Gaza, que ensinou a todos os países o que é honradez. Você, Gaza, que mesmo tão pequena, do tamanho de um pequeno círculo [faz o gesto com os dedos], o mundo não consegue te derrotar”.

“Nós somos heróis”, e nesse momento ele bate no peito e a poeira do concreto recém destruído paira no ar, “minha mãe se tornou mártir, que Deus a tenha. Os mártires, que Deus os tenha. Eu estou bem, não há nada de errado comigo”.

O massacre israelense matou 92 jornalistas até o momento (18 de dezembro). Também verdadeiros heróis, que perderam familiares e amigos e continuam a registrar a barbárie sionista. Importantes ativistas, artistas e intelectuais também foram vítimas fatais.

Em 7 de dezembro, o escritor e professor de literatura Refaat Alareer foi morto em sua casa, ao norte de Gaza, com sua esposa e seus seis filhos. O ativista palestino foi o cofundador da We Are Not Numbers – Não somos números, uma organização que dá voz à juventude palestina de Gaza e de campos de refugiados.

Em 20 de outubro, a poeta palestina Heba Abu Nada, uma promissora escritora feminista de apenas 32 anos, também não resistiu aos bombardeios e, em sua última noite de vida, compartilhou as seguintes palavras:

“A noite na cidade é escura, exceto pelo brilho dos mísseis; silenciosa, exceto pelo som do bombardeio; aterradora, exceto pela promessa tranquilizadora da oração; tenebrosa, exceto pela luz dos mártires.”

Neste Natal, que as luzes representem os mártires que inspiram coragem e bravura.

Nesta noite, lembremos: Palestina é uma mãe que pariu uma memória indestrutível.

Por isso, honremos, do rio ao mar, a história e a luta de um povo de dignidade e integridade intocáveis.

Sâmia Teixeira Sâmia Gabriela Teixeira é mãe de gêmeas e jornalista. Foi assessora da União Nacional Islâmica, onde criou o jornal Iqra. Atualmente integra a comunicação da CSP-Conlutas, escreve sobre movimentos sociais e mundo sindical internacional.

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.