“Palestina é uma mãe que pariu uma memória indestrutível”

Khalida Jarrar, parlamentar e presa política, é retrato da mulher palestina que resiste ao tempo na luta por liberdade.

Por Sâmia Teixeira

A mãe é uma figura quase divina. Mesmo que não seja, mesmo que saibamos ser constituída de carne, osso, contradições e fraquezas. Ainda assim, se não essa quase divindade, é dotada de uma força diferente. Nem maior nem menor do que a de outras mulheres.

Somos todos filhos de uma mãe, não é mesmo? E na maioria das vezes somos também filhos da luta.

Uma das entrevistas de mais significado pra mim enquanto jornalista aconteceu em 2011, quando Leila Khaled, militante palestina da FPLP (Frente pela Libertação Palestina) esteve no Brasil para uma série de atividades políticas e de formação.

Ela estava na casa de um amigo. Naquela mesma semana, estaria junto dela Abla Saad’at, companheira do palestino militante e preso político, figura história da luta pela libertação palestina, Ahmad Saad’at.

Naquela época, eu era apenas filha. Ainda nem imaginava ser mãe. Quanto mais de duas meninas/mulheres e, possivelmente, futuras mães, se assim quiserem. Ainda sem ter a experiência da maternidade, me impactou algo que Leila comentou em nossa conversa: “Muitas mulheres chegavam e me perguntavam ‘como posso ajudar na luta? Sou mãe, não consigo estar no campo de treinamento’. E eu dizia ‘cuide de seus filhos. Essa é a sua contribuição na luta’”.

Aquilo fazia muito sentido, afinal, já dizia David Ben-Gurion, primeiro ministro de Israel em 1948, ano da Catástrofe Palestina: “os velhos morrerão e os jovens esquecerão”. Leila queria dizer também com isso que não poderiam, enquanto povo, permitir que cometessem contra eles o que Ilan Pappé, historiador israelense, definiu em seu trabalho acadêmico e militante pró Palestina como ‘memoricídio’.

Nascer, sobreviver, parir e morrer na resistência

Me lembrei desse comentário de Leila Khaled por muitas vezes quando já era mãe e me sentia frustrada por não conseguir estar nos espaços de construção e formação. Era um alento lembrar desse conselho, que veio de uma mulher que ousou sequestrar aviões para chamar atenção para a causa palestina nos anos 70.

E Leila sempre foi coerente. Já tentaram colocá-la em situações complicadas. Certa vez perguntaram se ela permitiria ao filho dela, quando criança, atuar no treinamento para a luta armada. Ela respondeu apenas que seu filho “não era mais especial que qualquer outra criança palestina”.

Uma dura constatação. Se você é mãe, pode até reconhecer esta verdade. Mas ser coerente com isso exige priorizar uma defesa coletiva por uma causa em detrimento de qualquer sentimento de proteção com suas crias.

E essa é a realidade que palestinas e palestinos vivem. Esse é o limite da maternidade/paternidade. E é também daí que brota a mais respeitosa dignidade que cerco, violência ou ocupação militar não podem diminuir.

Depois dessa longa introdução, que traz como exemplo de integridade a figura de Leila Khaled – controversa para parte da esquerda, mas certamente corajosa e admirável – cito agora uma outra mulher, que figura mais um caso de maternidade e luta por liberdade: Khalida Jarrar.

Khalida é uma ativista palestina, presa política e ex-parlamentar. Ela cumpre pena de dois anos por simplesmente pertencer à FPLP, organização declarada por Israel como ilegal. Restam dois meses para que sua sentença ilegal seja cumprida.

Atualmente, Israel mantém em cárcere 12 integrantes do Conselho Legislativo, como Khalida Jarrar. Os dados são os mais recentes publicados pela Addameer, organização de direitos humanos de presos políticos palestinos.

São ao todo 4.850 presos políticos palestinos. Dentro desta estatística, milhares de filhas, filhos, mães, pais e familiares que têm a convivência com os entes amados impossibilitada.

Jarrar é mãe. Uma de suas filhas, Suha Jarrar, nasceu quando o pai estava em cárcere israelense. Ele cumpria prisão administrativa, detenção que ocorre mesmo quando não há acusação formal ou julgamento. Uma das bizarrias jurídicas da Corte israelense. Suha cresceu e se tornou ativista, atuando na organização palestina Al-Haq de direitos humanos.

Ela morreu em 11 de Julho deste ano, quando sua mãe ainda estava na prisão. Partiu aos 31 anos de idade, por insuficiência cardíaca, segundo notificado pela imprensa. Suha veio ao mundo e partiu dele marcada pela luta por liberdade.

À sua mãe Khalida, não fora permitido a soltura da prisão para comparecimento ao seu velório e sepultamento. O ministro da segurança pública da Ocupação, Omer Bar-Lev, certamente tem ou teve uma mãe, mas proibiu que o adeus final entre mãe e filha acontecesse.

Khalida, enquanto filha, também não pode comparecer ao funeral de seu pai, quando cumpria uma sentença anterior, em 2015. Na Palestina ocupada, não importa o quanto que se possa pressionar social e politicamente. Não importa o que as organizações internacionais recomendem, o colonialismo criminoso israelense é cruel e irredutível.

Apesar disso, a história de resistência mostra que filhos da terra palestina nascem e morrem com a dignidade intocada, para o constrangimento dos opressores coloniais.

Suha Jarrar e Khalida Jarrar, mãe e filha ativistas palestinas (reprodução Samidoun)