SP: “Pra mim, Cidade Tiradentes é uma mulher negra”

No aniversário de 39 anos de Cidade Tiradentes em SP, conheça a história de uma escritora que se criou no local e lançou livro sobre o bairro

Por Beatriz de Oliveira

20|04|2023

Alterado em 20|04|2023

Cidade Tiradentes, no extremo leste de São Paulo, se tornou morada para Claudia Canto ainda em sua infância. A escritora e palestrante tem guardado na memória o crescimento do bairro, a relação com os vizinhos e a construção de sua própria casa. Já morou em Portugal e visitou vários outros países. Mas tem a certeza de que Cidade Tiradentes é seu lar.

O último livro lançado pela escritora leva o nome de “Cidade Tiradentes – de menina a mulher”, o qual entrelaça a história de Cláudia com a do distrito. Em uma parceria com a subprefeitura, a obra será distribuída gratuitamente no aniversário do bairro. Nesta sexta-feira, 21 de abril, Cidade Tiradentes completa 39 anos de existência.

O bairro é o maior complexo habitacional da América Latina e conta com mais de 200 mil habitantes, segundo dados de 2010. A maior parte dos conjuntos habitacionais foram construídos na década de 1980, sendo pensados como um conjunto periférico e “bairro dormitório” para famílias atingidas por obras públicas. Além disso, muitos viram no local uma oportunidade de conquistar a casa própria, já que os preços eram menores por estar afastado do centro da cidade.

“Cidade Tiradentes é um bairro que me abraçou, me deu amparo, cidadania e autoestima. Não tenho a menor intenção de me mudar”, afirma Claudia Canto. Conta também sobre o novo livro, “Em ‘Cidade Tiradentes – de menina a mulher’ eu conto a história do bairro em paralelo com a minha história de autodescoberta. Eu falo que nós duas menstruamos juntas aqui. Pra mim, Cidade Tiradentes é uma mulher negra. Ela vai tendo muitos filhos e só consegue encontrar libertação através da arte e da cultura”.

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Claudia Canto é autora do livro “Cidade Tiradentes – de menina a mulher”

©divulgação

O primeiro livro veio em um momento de dor

A literatura surgiu para Claudia Canto de maneira prática. O hábito de ler, fez com que ela aprendesse palavras eruditas. Assim, quando sofria bullying na escola, retrucava “falando difícil”, o que amenizava os ataques. Já o hábito da escrita veio como forma de desabafo. Escrevia sobre seus sentimentos e vivências durante os longos trajetos que fazia no transporte público.

O gosto pela escrita e pela leitura a fizeram escolher cursar Jornalismo. Na faculdade, era a única aluna negra. Se sentia fora do ninho, deslocada. Ainda não tinha descoberto sua potência como mulher negra. Até que decidiu tentar a vida em Portugal, achava que isso a faria estar no mesmo nível das colegas de faculdade e ascender financeiramente.

A realidade que encontrou no país europeu foi outra. Com pouco dinheiro e sem muitas oportunidades de emprego, teve que trabalhar como empregada doméstica. Num palacete em Lisboa, enfrentou racismo dos patrões e intensa rotina de trabalho. Então, em seu “quartinho senzala”, como descreve, começou a escrever seu primeiro livro, “Morte às Vassouras”, em que relata sua experiência como empregada doméstica no exterior.

“Esse processo na casa foi horrendo. Não foi algo como ‘ai, que bom que você viveu essa experiência para você poder escrever’. Não! Foi horrível. Eu quero que a minha sobrinha, as meninas que estão nascendo agora e as mulheres negras que começam na literatura não tenham que passar por tanto sofrimento como eu passei para escrever. Que seja uma coisa mais livre, lírica, que não tenham que se galgar tanto na realidade do racismo, que possam ser artistas livres”, desabafa.

Um novo olhar para si e para o bairro

Além de “Morte às Vassouras”, Claudia Canto é autora de “Bem-vindo ao Mundo dos Raros”, “Mulher Moderna Tem Cúmplice” e “Riqueza Ignorada”. Escreveu ainda várias biografias de mulheres brasileiras que vivem na Europa. Parte das obras veio ao mundo pela editora que ela mesmo criou. A editora Claudia Canto funciona em sua casa e conta com parceiros que, assim como ela, moram em Cidade Tiradentes. Atualmente, Claudia também atua como palestrante.

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Claudia Canto é escritora e palestrante

©arquivo pessoal

Essa maneira coletiva de ver e fazer seus projetos, surgiu ao longo de sua trajetória. “Através de um processo de expansão mental eu começo uma descoberta do bairro, começo a conhecer artistas daqui, personalidades, mulheres negras que montaram seus negócios aqui”, relata.

Também mudou sua percepção sobre si mesma. “Comecei a mudar meus hábitos de consumo, passei a comprar roupas na comunidade. Mudei meu estilo de roupas. Comecei a soltar meus cabelos e a me ver como uma mulher negra bonita”, conta.

Essas mudanças vieram em conjunto um novo jeito de olhar para sua realidade. No passado, tinha vontade de enriquecer no exterior para poder ter uma vida melhor. Hoje, dando foco às potências, passou a ver riqueza no seu dia a dia. Ela explica que essa concepção vai além do dinheiro, é sobre dar destaque para experiências de vida e focar em tudo de positivo que conquistou. Aponta também que não quer romantizar a pobreza.

“Eu sou rica porque moro no maior complexo habitacional da América Latina, porque tenho um banheiro dentro de casa, porque moro numa casa de alvenaria, porque tenho uma história de vida ímpar. Sou rica porque muitas outras mulheres morreram para eu ter oportunidade de estar fazendo o que eu faço”, diz.