mulher segura carroça de lixo

Cuidadoras ancestrais: mulheres que lutam por justiça climática

Em diferentes áreas, cuidadoras ancestrais têm colaborado para um mundo mais respeitoso com o meio ambiente

Por Beatriz de Oliveira

10|04|2023

Alterado em 11|04|2023

Na arte, no cuidado com a terra e no enfrentamento à questão do lixo. Em diferentes lugares e de diferentes maneiras mulheres têm agido cotidianamente em busca de justiça ambiental e cuidado com as próximas gerações.

As mulheres negras e pobres são as mais afetadas pelos danos impostos pelas mudanças climáticas. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), as mulheres representam 80% do total de deslocados em razão de desastres e mudanças climáticas em todo o mundo. Ao mesmo tempo, são figuras femininas que protagonizam a luta pela justiça climática, seja no amparo à comunidades vítimas de deslizamentos de terra, na ampliação do debate acerca do racismo ambiental ou na participação em conferências globais sobre mudanças climáticas.

O Nós, mulheres da periferia em parceria com a Rede Wayuri apresenta a série Cuidadoras Ancestrais. A iniciativa tem o apoio do fundo Puentes, através do “Narremos La Utopia” que nos convida a imaginar futuros a partir da justiça ambiental.

Confira as histórias!

Tia Nice e Dona Jacinta: o cuidado com a terra da alimentação à saúde

Mostrando legumes e verduras cortados na cozinha do restaurante Organicamente Rango em Campo Limpo, zona sul da cidade de São Paulo (SP), Cleunice Maria de Paula, a Tia Nice, compara o ato de cozinhar com o de tecer uma colcha de retalhos. “A minha relação com a comida é um artesanato. Eu penso no plantar, no colher e no cozinhar. Você vai ver um verde, um vermelho, um roxinho. Se torna uma colcha de retalhos, todo dia eu faço uma”, conta.

Criado em 2019, o Organicamente Rango tem o objetivo de oferecer comida orgânica e saudável para a periferia de Campo Limpo de forma acessível. Alguns dos alimentos que compõem o cardápio do local vêm do sítio que Tia Nice mantém em uma cidade próxima. Oferecem, inclusive, pratos vegetarianos, o que agradou a comunidade local. “Descobri que na periferia tem vegetarianos, eles não precisam atravessar a ponte para comer comida orgânica”, diz.

Quem gere o espaço é a chef, Tia Nice, e seu filho Thiago Vinicius, empreendedor sociocultural e Agência Solano Trindade. Pela iniciativa, já ganharam alguns prêmios e destaques em jornais, os quais preenchem uma das paredes do restaurante, entre eles o The Worlds 50 Best Restaurants, lista internacional produzida pela revista britânica Restaurant com nomes que estão moldando o futuro da gastronomia.

A cozinheira deseja que a cultura dos orgânicos se dissemine pelas periferias. “Vários quintais podem virar horta”.

Em São Gabriel da Cachoeira (AM), Jacinta Lobo Sampaio do povo Tukano, a Dona Jacinta, também tem uma relação especial com a terra. Ela é conhecedora da medicina tradicional e sabe bem quais plantas devem ser usadas para determinados tipos de doenças.

Quem ensinou o ofício foi seu pai. “Meu pai era conhecedor da medicina tradicional e um benzedor sábio”. Com a mãe, aprendeu sobre agricultura, já que na infância ajudava a família na roça. “Aprendi como plantar, como torrar farinha, tapioca”.

Depois de conhecer a medicina tradicional, Dona Jacinta buscou saber cada vez mais; seu objetivo era aprender para poder cuidar de seus filhos. Mas não ficou apenas nisso: quem a procura pedindo ajuda é atendido. Hoje ela compartilha esse conhecimento com mais pessoas. “Temos que passar de geração em geração”, diz.

“Como mulher indígena a minha visão é da floresta em pé. Temos que cuidar de cada espécie de planta medicinal, como se fossem filhos”, afirma Dona Jacira”.

Francy Baniwa e Francieli Silva: dois olhares sobre o lixo

Francy Baniwa nasceu e cresceu na comunidade indígena Assunção do Içana, no município de São Gabriel da Cachoeira (AM). Em sua juventude participou do movimento indígena e entrou na vida acadêmica. Atualmente é doutoranda em Antropologia Social e também se dedica ao projeto Amaronai-Ita, formado por mulheres indígenas e não indígenas que produzem absorventes ecológicos, a fim de promover dignidade menstrual e geração de renda para as mulheres da região.

A ideia surgiu durante visita à uma comunidade, quando Francy Baniwa viu uma mulher pendurando um absorvente de pano. “Elas já usavam há muito tempo e a gente ainda não conhecia essa tecnologia, que não causa alergia”.

A pesquisadora explica que o projeto busca a diminuição do lixo nas comunidades, o que inclui os absorventes descartáveis, e também tem a preocupação do cuidado com o corpo de quem vai usar. “Se a gente deixar de usar o absorvente descartável vamos contribuir com o solo e com a floresta”, afirma.

Na capital paulista, a catadora de materiais recicláveis Francieli Silva, também tem preocupação cotidiana com lixo. Antes de se tornar catadora, passou por diversas situações: foi auxiliar de limpeza, trabalhou com telemarketing, se tornou dependente química e foi presa por vender drogas. Para ela, a carroça foi o meio que a fez sair das ruas e ganhar o seu sustento.

“É um trabalho digno, estamos limpando as cidades, limpando o planeta, que não tem mais onde colocar lixo. A palavra de hoje é sustentabilidade, não dá mais pra ficar produzindo lixo e achar que está tudo bem. Eu tive consciência disso através da carroça. Hoje eu não jogo o meu lixo em qualquer lugar”. Apesar disso, Francieli conta que o ofício também causa muitas dores; terá que passar por uma cirurgia devido a problemas causados pelo peso que carrega.

Segundo a catadora, é possível somar na causa do lixo dentro de casa, através do descarte correto, por exemplo. “Por si próprio, o cidadão comum pode mudar o seu planeta, dentro da sua casa. Separa seu lixo, procura se informar, dá uma gorjetinha para o catador”.

Juliana Costa e Rosi Waikhon: a arte pela justiça ambiental

Nascida e criada no extremo leste de São Paulo (SP), a grafiteira e educadora Juliana Costa pensa na questão ambiental desde criança. “Eu cresci numa casa com quintal e via meu pai com o cuidado com uma área verde. Lixo na rua me incomodava, conforme eu fui crescendo essas coisas foram mexendo comigo”. Paralelo a isso, Juliana tinha gosto pelo desenho.

Em um ponto da vida, decidiu juntar arte e justiça ambiental. Participou de projetos e intervenções artísticas que através do grafite pregavam a conscientização pelo respeito à natureza. Em suas artes, retrata também o poder latino e o reconhecimento dos povos de matriz africana e indígena. Hoje, lidera o Lab Casa Cultural, espaço protagonizado por mulheres que dissemina cultura e arte. Parte da construção é feita com materiais sustentáveis.

Para Juliana, as periferias são centrais para as discussões climáticas. “A periferia é um lugar de injustiça ambiental. As pessoas foram empurradas, perderam direitos de acesso à terra, direito à água”.

Quem também uniu o ativismo ambiental com a arte foi Rosi Waikhon, poeta e doutora em Antropologia Social, do povo Piratapuia em São Gabriel da Cachoeira (AM). Em meio à sua carreira acadêmica e atuação no movimento indígena, passou a frequentar grupos de literatura indígena e participar de concursos literários. “Eu participava de todos os eventos que me convidavam para rodas de conversar e ler poesias”, conta.

Através de suas poesias, Rosi quer disseminar conhecimentos que obteve ao longo de sua trajetória. “Eu cruzo a cientista com a poeta, justamente para tentar trazer esse diálogo, compartilhar conhecimento”, afirma.

A artista também desenvolveu o projeto Avó do Mundo, em que traz, por meio de performances, a questão do respeito que se tem com os avós e os ensinamentos que eles compartilham sobre a natureza.