O poder numa lata de spray: conheça a grafiteira Nathê, de Pernambuco

No Dia Mundial do Grafite, Nathê conta sobre o poder de segurar uma lata de spray e o espaço ocupado por mulheres negras na cena do Hip Hop.

Por Beatriz de Oliveira

25|03|2022

Alterado em 25|03|2022

Nathê sabe de onde veio e onde quer chegar. Valoriza as pessoas, movimentos e políticas que ajudaram a construir quem ela é hoje. Pensa coletivamente: quer ascender levando os seus contigo. É feliz por pagar as contas com sua arte, mas entende que ainda não é tão valorizada quanto artistas brancos. Mulheres negras são as personagens principais de seus grafites.

Aos 26 anos, a pernambucana Natália Carvalho Ferreira, ou apenas Nathê, é grafiteira, educadora social e ativista. Formada em Licenciatura em Artes Visuais pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), iniciou sua carreira no grafite por influência de mulheres da área. Neste 27 de março, Dia Mundial do Grafite , o Nós, mulheres da periferia registra a história de Nathê e discute o espaço das mulheres na cena do Hip Hop.

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Em suas obras, Nathê trás reflexões sobre a representação de mulheres negras

©Alessandra Oliveira

O poder de segurar uma lata de spray

A sensação de segurar em uma lata de spray pela primeira vez foi marcante para Nathê. Um amigo de sua comunidade lhe emprestou o objeto para que desenhasse uma sereia. “Eu fiquei doida, era uma arma muito potente que tinha na minha mão. Era muito poder uma lata de spray”, relembra. Desde então, a grafiteira segurou muitas outras latas e com esta força assina obras em muros e painéis no estado de Pernambuco.

Nathê nasceu e cresceu na Vila Rica, conhecida como COHAB 1, em Jaboatão de Guararapes, cidade da região metropolitana de Recife (PE). “Minha infância foi toda na subida desta ladeira, que é uma ladeira muito grande”.

Filha de dona Graciete, costureira e formada em Letras, e de seu Sérgio, auxiliar de serviços gerais e motorista, sempre recebeu incentivo para estudar. Nathê acompanhava a mãe nas confecções de costura, e passava o tempo desenhando e costurando roupas para suas bonecas. “Eu sempre tive o lado mais artístico aflorado, mas ligado ao artesanato”.

Na quinta série do Ensino Fundamental, Nathê começou a estudar em uma escola no centro de Recife, a Liceu Artes e Ofícios de Pernambuco. Para chegar até lá, pegava dois ônibus e um metrô. A experiência permitiu que tivesse contato com bairros e pessoas de diferentes classes sociais, o que abriu sua mente.

Foi nessa escola, já no Ensino Médio, que começou a participar do movimento feminista, quando decidiu também parar de alisar o cabelo. A partir disso, ela e a irmã criaram a página “Faça Amor, não faça chapinha” no Facebook, que chegou a receber 150 mil seguidores.

Foi na ONG (Organização não Governamental) Cores do Amanhã que participou de suas primeiras oficinas de grafite, influenciada por grafiteiras como Jouse Barata e Pri Witch, de Pernambuco e da Paraíba.

Nathê conta que tanto a cultura popular, no Maracatu, quanto o movimento Hip Hop, foram importantes para sua formação. Outro ponto central em sua vida são as políticas públicas voltadas para população de baixa renda, as quais usou o máximo que pôde. Entrou na universidade pelo SISU (Sistema de Seleção Unificada), usando cotas raciais e viajou para vários estados do país a partir do ID Jovem, documento que garante vagas ou descontos em transportes interestaduais.

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Grafite de Nathê no Kilomburbano, espaço de eventos afrocentrados em Recife. © reprodução Instagram

Mulheres negras são as personagens principais dos grafites de Nathê. © reprodução Instagram

Grafite de Nathê com reflexão sobre o feminino nos 75 anos da Aliança Francesa no Recife. © reprodução / Instagram

Graffite de Nathê no Túnel da Abolição, em Recife. © Priscilla Melo

Arte na escassez

“Já trabalhei por um lanche e cinco latas, já teve trabalho que pintei horrores e ganhei R$ 100”.

Essa era a realidade de Nathê quando iniciou na profissão. Hoje, com maior reconhecimento, vive de arte. “Já consigo aumentar o meu valor, que para mim é muito bom enquanto pessoa de periferia, poder viver de arte, porque eu vivo de arte hoje. Eu pago minhas contas com arte”, afirma.

Dona de seu CNPJ, Nathê escreve os projetos de pintura, faz a produção e a pós produção e emite nota fiscal. Na elaboração de seus trabalhos, um fator é usado como norte: o baixo custo. “Todo meu trabalho foi baseado na escassez.

“Nos meus trabalhos você reconhece que é uma mulher preta por conta dos traços, mas ela não necessariamente tem pele negra, ela pode ter pele rosa, pele azul. Não foi só um conceito que eu quis colocar não, era porque eu só tinha essas cores”.

A grafiteira relata ainda uma desigualdade regional nos preços. “O spray, principalmente em Pernambuco, é muito caro, uma lata de spray aqui custa R$ 28, enquanto em São Paulo ela custa R$ 16”.

A artista tem grafites espalhados em muros, murais, túnel e tapume de museu, em Recife e outras cidades brasileiras. Já expôs pinturas no SP-Arte, o Festival Internacional de Arte de São Paulo, e na Christal Galeria, em Recife. Além de marcar presença em vários festivais.

Partindo da escassez, Nathê almeja chegar a espaços de destaque. “Minha mente em relação ao grafite é sempre tentar alcançar espaços que eu nunca nem os meus conseguiram”, diz.

Além de grafiteira, a artista atua como educadora e ministra oficinas em presídios femininos, CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) e casas de acolhimento. Seu gosto pela educação social e por ensinar pessoas em situação de vulnerabilidade vem do fato dela também ter vindo de uma invisibilidade. “As pessoas se identificam comigo, e eu também me identifico com elas”.

Mulheres negras na cena do grafite

No dia da entrevista ao Nós, fazia menos de uma semana que Nathê havia voltado do Peru, onde participou do Nosotras Estamos en la Calle, festival feminino de arte urbana. Ao ser selecionada para o evento, a artista teria garantidos alimentação, estadia e material para a pintura. Mas a grana para passagem ficaria por sua conta. Para conseguir viajar até o país latino-americano, ela iniciou uma campanha em suas redes sociais, fazendo rifas e pedindo doações.

A nordestina fala emocionada de sua primeira viagem internacional. É grata pelos que a ajudaram e entende que depositaram nela a vontade de vê-la no festival.

Quando questionada sobre o espaço ocupado pelas mulheres negras no grafite, ela critica o apagamento deste grupo na história do movimento Hip Hop .

“O Hip Hop é machista, não tem o que dizer, ele pode ser revolucionário, fortalecedor da periferia, mas ele é machista”. Além disso, há um fator de segurança para as minas que grafitam: “a rua é perigosa para as mulheres”.

Apesar dos obstáculos, Nathê reconhece que atualmente há uma gama de mulheres em grandes eventos e ganhando dinheiro com arte. Ressalta que as mulheres negras trazem suas referências para as obras, apresentando suas próprias vivências, empoderamento e ancestralidade.

“É muito importante para mim estar pintando com outras mulheres negras, porque a gente sabe que, profissionalmente falando, quem tem acesso é a branquitude. Mas se você entrar na rua só tem grafiteiro preto”.

“Enquanto mulheres de periferia temos que trabalhar em dobro, trabalhar o triplo e é cansativo, é um peso gigante que a gente tem que carregar. Mas é compensador, porque nunca subimos só. Quando a gente sobe, traz outras conosco”, finaliza.


Reportagem publicada originalmente em Expresso na perifa