Rosália Lemos

Mulheres negras e a Rio-92: 30 anos depois

Ambientalistas consideram Rio-92 um marco e comentam importância das mulheres negras para colocar em evidência o racismo ambiental

Por Beatriz de Oliveira

04|07|2022

Alterado em 04|07|2022

Há 30 anos ocorria a ECO-92 ou Rio-92, primeira Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento. Também chamada de Cúpula da Terra, ela ocorreu no ano de 1992 no Rio de Janeiro, reunindo 175 países filiados à ONU (Organização das Nações Unidas) e mais de 1400 ONGs (Organizações Não Governamentais).

Como resultado das discussões feitas na conferência foi criada a Agenda 21, documento com mais de 900 páginas, divididas em 40 capítulos, com propostas que alinham a proteção ambiental, justiça social e eficiência econômica. O número 21 faz referência ao século XXI que logo se iniciaria. No evento que ocorreu entre os dias 3 e 14 de junho, outros tratados também foram firmados, é o caso das convenções da Biodiversidade, das Mudanças Climáticas e da Desertificação, a Carta da Terra e a Declaração sobre Florestas.

O primeiro grande evento da ONU sobre meio ambiente aconteceu 20 anos antes, foi a Conferência de Estocolmo. Mas a Rio-92 se torna um marco ao entender o ser humano como parte da natureza, a partir do conceito de desenvolvimento sustentável. É o que explica Rita Passos, doutoranda em Planejamento Urbano e Regional, especialista em Sociologia Urbana e mestra em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais.

“O conceito de desenvolvimento sustentável traz uma dimensão humana dos impactos sobre o meio ambiente, de incorporar o ser humano como parte desse meio, e também como um ser que é atingido por essas mudanças ambientais e pela discussão que já vinha se traçando sobre efeito estufa”, afirma.

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A Rio-92 reuniu 175 países filiados à ONU.

©ONU

Rosália Lemos era uma das mulheres negras presentes na Rio-92

Passadas três décadas da Rio-92, Rosália Lemos lembra da conferência com detalhes e entusiasmo. Como integrante do GAECO-Munema (Grupo de Ações Ecológicas em Comunidades – Mulheres Negras e Meio ambiente), ela participou da escrita do Tratado Contra o Racismo, resultado de uma articulação entre os negros que participaram do evento.

Com assuntos ambientais sempre fazendo parte de seu cotidiano, Rosália é professora do Instituto Federal do Rio de Janeiro, doutora em Política Social, mestre em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social, assinando a primeira dissertação com o tema feminismo negro.

A professora lembra também que na época, George W. Bush, então presidente dos Estados Unidos, lançou um programa para fazer um mapeamento genético da humanidade. Ela estava grávida de sua filha e teve a ideia de uma intervenção bem humorada: “Tem uma foto minha com um barrigão, escrito ‘tira a mão do meu bucho, Bush’”.

Hoje com 61 anos, esteve presente na conferência aos 31. Lá, integrou o Planeta Fêmea, grupo de feministas focadas em pensar sobre o meio ambiente. “Eu percebi que as lideranças eram refratárias à presença da mulher negra”, relata. Por isso, Rosália empreendeu maiores esforços às atividades ligadas a ativistas negros presentes na Rio-92.

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Rosália Lemos é professora do Instituto Federal do Rio de Janeiro e doutora em Política Social

©reprodução Instagram

Sua preocupação ambiental é anterior à conferência. Anos antes, a professora já havia protagonizado campanhas em favelas pensando na ecologia. Em uma delas, quando era diretora de Cultura e Educação da Associação de Moradores do Morro do Andaraí, no Rio de Janeiro, fez uma ação alertando para o problema do lixo, que vinha se acumulando no local.

“Eu já trazia a discussão de que a luta na favela era uma luta ecológica”, resume. A ativista também promoveu um jogral sobre a saga das mulheres negras com a questão ambiental, intitulado “Denunciatro – Mulheres Negras e Ecologia”, o qual também foi apresentado na ECO-92.

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Rosália Lemos criou o jogral “Denunciatro – Mulheres Negras e Ecologia”

©Arquivo pessoal

Já no ano de 1992, quando a conferência se aproximava, a carioca iniciou o projeto “Eco na Praça”, a partir de seu trabalho na prefeitura do Rio de Janeiro. “A gente ia para a comunidade, sensibilizava as pessoas sobre a importância da ECO, e depois, um dia, todo mundo descia para a praça. Era lindo, tinha mídia, muita visibilidade e toda uma sensibilização para a galera participar da ECO-92”.

Mesmo sem usar o termo racismo ambiental, Rosalia já percebia e lutava contra os contornos dessa forma de violência.

Racismo ambiental: uns sofrem mais que outros

Entender que as populações negras são as mais afetadas pelos problemas ambientais é o ponto de partida da discussão do racismo ambiental. O termo foi cunhado pelo químico e ativista Benjamin Franklin Chavis em 1982, a partir da observação da maior disposição de lixos tóxicos em bairros negros nos Estados Unidos. Anterior a isso, na década de 60, durante a luta por direitos civis, a população afro-americana já alertava que a qualidade de vida de onde viviam era pior que a dos espaços brancos.

Rita conta que no Brasil, as mobilizações em torno do conceito de racismo ambiental começaram a florescer a partir dos anos 2000. Por isso, ainda não era uma pauta do movimento negro nacional durante a ECO-92.

Apesar disso, seus efeitos são percebidos há séculos. Segundo a pesquisadora, ele faz parte da colonização do país. “O Brasil é formado por um forte racismo ambiental, porque a presença dos portugueses aqui vem para expropriação de recursos e corpos. Os impactos ambientais sofridos por essa colonização são reflexo do racismo ambiental”.

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Rita Passos é doutoranda em Planejamento Urbano e Regional.

©Arquivo pessoal

Um exemplo da forma que corpo negros são os que mais sentem as degradações do meio ambiente é a ocorrencia de enchentes e suas consequências. A população negra é maioria nas favelas, regiões em que ocorrem deslizamentos durante as chuvas. Milhares de pessoas perdem suas casas e seus pertences, e centenas perdem a vida nesses desastres. Construir casas em áreas de risco não é uma escolha, é muitas vezes a única opção para grupos colocados à margem.

“[Ocorreram] as chuvas em Petrópolis, que é uma cidade branca, mas quando você vê onde as mortes aconteceram foram nas comunidades, onde mais de 60% da população é negra”, aponta Rita.

Um levantamento da CNM (Confederação Nacional de Municípios) indica que nos primeiros cinco meses de 2022, 457 pessoas morreram em desastres decorrentes de fortes chuvas no país. O número já ultrapassa os dados do ano passado inteiro, quando 290 pessoas foram vítimas desses desastres.

Na visão de Rita, esse tema deve ser pauta central das discussões ambientais. Ela critica a ampla visibilização em torno das mudanças climáticas, o que vê como consequência, em contrapondo ao pouco espaço dado ao racismo ambiental, o que vê como causa.

“Eu tenho medo que a gente cometa um epistemicídio com essas dimensões. E aí a gente tende a falhar de novo na Rio+30 [Conferência sobre Desenvolvimento Sustentável e Inclusivo que vai acontecer em outubro], se a gente abrir mão da discussão de racismo ambiental para falar de mudanças climáticas. Mais uma vez teremos uma coisa vaga, que não dá conta das desigualdades”, afirma.

Aponta ainda para o protagonismo negro na criação e estudo do racismo ambiental.

“É um conceito de pretos, estudado por pretos, o que é uma coisa muito rara quando a gente pensa na constituição da ciência. Ele é genuinamente preto”.

30 anos depois, as reivindicações não foram atendidas

Segundo Rita Passos, a mobilização social do movimento negro vista na Constituinte de 1988, foi refletida na ECO-92, marcando participação expressiva no evento. “Mas, no documento final da Rio-92 a importância e características desses grupos não fica tão explícita”, avalia. Para a especialista isso acontece até hoje, haja vista a ampla participação de grupos vulnerabilizados nas COPs (Conferência das Partes), mas sem suas demandas específicas descritas nos documentos finais.

Rosália Lemos alerta que muitas promessas feitas na Rio-92 não foram entregues. “Qual era o grande ‘barato’ da Rio-92: a despoluição da Baía de Guanabara [no Rio de Janeiro]. Aí a gente teve muitos anos depois, em 2016, as Olimpíadas com a mesma promessa”, diz.

“Então, o saldo da Eco-92 até hoje, 30 anos depois, é deplorável. A questão do saneamento que era uma promessa de ser resolvida. O povo preto sofre com a questão do saneamento básico e esgoto há muito tempo”, acrescenta.

Segundo relatório 14ª edição do Ranking do Saneamento, publicado pelo Instituto Trata Brasil, com dados de 2020, quase 35 milhões de cidadãos brasileiros vivem sem água tratada no Brasil, enquanto 100 milhões não têm coleta de esgoto.

No entanto, tanto Rita, quanto Rosália, consideram a Rio-92 um marco. Para elas, a conferência mudou a forma de discutir o meio ambiente e ampliou a importância desse debate no país.

No cotidiano de pensar e agir sobre os problemas ambientais que batem à porta, as mulheres negras são fundamentais. “Pega a pauta das mulheres negras das favelas na década de 80: você vai ver que a pauta era esgoto e água!”, relata Rosália.

“As mulheres negras e indígenas têm uma força política gigantesca. A motivação delas é muito em defesa da família, da segurança e da soberania alimentar. As mulheres entram nesse debate que envolve o cuidar da casa, do seu entorno, de cultuar sua ancestralidade e de estar em interação com o meio ambiente”, finaliza Rita.