Foto de Amanda Dias, do Grana Preta, segurando notas de dinheiro

Violência patrimonial e o endividamento das mulheres brasileiras

Conversamos com Amanda Dias, do Grana Preta, sobre este tipo de violência que, em 2020, afetou pelo menos três mil mulheres no Brasil

Por Amanda Stabile

28|09|2022

Alterado em 30|09|2022

Alguns crimes parecem situações distantes da nossa realidade, golpes que nunca cairíamos. Como o caso conhecido como Golpista do Tinder, que ficou famoso no Brasil e no mundo após o lançamento de um documentário na Netflix, no início de 2022. Afinal, quem de nós, mulheres da periferia, teria US$140 mil para emprestar a um recém conhecido, não é mesmo?

Nesse caso real, Simon Leviev abordava suas vítimas por meio de aplicativos de namoro e se passava por um magnata dos diamantes. Após conquistá-las, pedia empréstimo de grandes quantias de dinheiro alegando estar sendo ameaçado e perseguido e não poder usar os próprios cartões por estar sendo rastreado. 

Desesperadas pelo que poderia acontecer, elas passavam não apenas os dados do cartão, como faziam empréstimos para preservar a vida do amado. Golpes como esse são conhecidos como estelionato sentimental ou afetivo, e envolvem o fingimento de um envolvimento amoroso para aplicar golpes, especialmente econômico-financeiros.

“Esse tipo de manipulação emocional  configura o estelionato. Quando acontece no âmbito de uma relação com uma mulher, a gente está falando de um estelionato afetivo que envolve violência financeira e psicológica. Então a gente consegue aplicar a Lei Maria da Penha [Lei nº 11.340/2006]”, explica Mariana Serrano, advogada, professora e mestre em Direito do Trabalho e pesquisadora da área de Direito das Mulheres e da População LGBTIA+.

“A violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades” – Lei nº 11.340/2006, Art. 7º,  inciso IV

A violência patrimonial afetou pelo menos três mil mulheres brasileiras em 2020. O dado é do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, mas especialistas ressaltam que os casos são subnotificados, pois a maioria das vítimas não denuncia por vergonha ou desconhecimento, dentre outros motivos.

Uma das faces desse crime se caracteriza pelo prejuízo financeiro causado por companheiros, familiares e amigos de sua confiança. As quantias não precisam ser exorbitantes, pode ser por meio do uso do cartão de crédito, o financiamento de algum bem em seu nome, um pedido de empréstimo no banco para pagar algo urgente. E essas contas nunca são quitadas por aqueles que usufruíram dos bens ou serviços.

“Recentemente recebi um caso de uma mulher que havia comprado um carro no nome do namorado. Depois disso, a relação terminou e ele levou o carro enquanto ela seguiu pagando as parcelas. Depois de finalizar a dívida, já em uma nova relação, ela havia emprestado R$60mil reais para o novo companheiro. Ela segue confiante de que ele vai pagar porque ele tem um emprego estável”, conta Amanda Dias, orientadora financeira e fundadora da Grana Preta,  programa de emancipação econômica que oferece soluções voltadas para micro e pequenos empreendedores.

“Perceba que não são apenas mulheres sem acesso a conhecimento que caem nesses golpes envolvendo afeto. São mulheres comuns que ao longo da vida sofreram com a rejeição, a falta de autoestima a ponto de acreditarem que precisam suprir financeiramente a parceria para continuar recebendo algum tipo de afeto”, alerta.

É importante ressaltar que a violência patrimonial também pode vir acompanhada de outros tipos de agressão. Segundo um estudo realizado pelo Datafolha a pedido do C6 Bank, 24% das mulheres já foram agredidas verbalmente ou humilhadas em temas ligados às finanças e 10% até foram agredidas fisicamente por causa de dinheiro.

“Ele me bloqueou no whatsapp para que eu não pudesse mais cobrar”

“Durante todo o relacionamento sempre rolaram esses empréstimos. A primeira vez foi quando supostamente roubaram o carro dele e estava o dinheiro da parcela do carro dentro”. Essa é apenas uma das histórias vividas por Gabi Azevedo envolvendo relacionamentos e finanças.

A auxiliar de veterinária, de 25 anos, conta que o carro foi recuperado intacto, mas a quantia foi levada. “Eu, como uma boa namorada, acreditei na história e emprestei o dinheiro. Nunca me devolveu. Óbvio”, lamenta.

Em novembro de 2020, o relacionamento chegou ao fim e Gabi foi bloqueada em todas as redes sociais pelo antigo namorado. “Quase um ano depois, em outubro de 2021, recebo uma ligação e era ele”, lembra. “Atendi. Ele falou que precisava conversar comigo e tinha que ser pessoalmente. Eu cedi, ainda havia um sentimento, no fundo uma esperança”. 

No encontro, o ex-namorado começou a chorar e falou que a mãe estava doente e que ele estava sustentando a casa. Para completar, contou que uma ex-namorada havia dado queixa contra ele na delegacia e que ele precisava pagar o advogado e não sabia o que fazer.

“Falou que havia procurado até um agiota e não tinha dado certo”, recorda. “Eu – comovida com a história, mexida com ele falando que não deveríamos ter terminado, que ele tinha passado maus bocados depois que terminamos, que era feliz comigo e não valorizava – acabei cedendo e falando que iria tentar fazer o empréstimo que ele queria: apenas cinco mil reais”.

A auxiliar de veterinária conseguiu o empréstimo em um site que liberava o dinheiro em até 24 horas e logo transferiu para ele, que agradeceu, disse que nunca mais a sacanearia, e estava eternamente grato. Porém, a história se repetiu, o ex-namorado pagou apenas duas parcelas e ela começou a receber ligações de cobrança.

“Ele foi logo dizendo que pegou covid e estava internado na UTI [Unidade de Terapia Intensiva], e quase morreu. Logo depois, foi a mãe que o expulsou de casa. Disse que daria um jeito, ia vender o carro e quitar logo de uma vez o empréstimo”, explica. “Passaram uns meses e ele me bloqueou novamente no Whatsapp para que eu não pudesse mais cobrar. Hoje faz mais de oito meses que ele não paga o empréstimo, obviamente meu nome está ‘sujo’ por conta disso. E eu me sentindo mais trouxa a cada dia que passa”, lamenta Gabi.

“Ele falou que as dívidas ficariam por tudo que ele já tinha gasto comigo e com as minhas filhas”

“Eu o conheci em 2016. Eu tinha 20 anos e ele já tinha 47”. Na época, Mayara Luiza trabalhava no Ceasa, no Rio de Janeiro, como vendedora. “Vendia lanches, café, essas coisas”, conta.

Seu ex-companheiro era gerente de uma loja e os horários do casal eram difíceis de conciliar. A pedido dele, Mayara então parou de trabalhar como vendedora para ajudá-lo em seu estabelecimento. “Ele disse que ia assumir as minhas despesas e que assim seria como se eu tivesse trabalhando para ele dentro da loja”, lembra.

Pouco tempo depois, quando algumas dificuldades financeiras surgiram, Mayara começou a trabalhar muito para conseguir sustentar suas duas filhas pequenas. Até que, em 2018, a vendedora recebeu um precatório de R$160 mil reais, após ganhar um processo contra o Estado pela morte da mãe, que foi assassinada por um sargento da Polícia Militar.

“Eu paguei R$58 mil de advogado e fiquei com R$102 mil. E como eu já tinha o meu apartamento, mobiliei com tudo novo. Sobrou mais ou menos uns R$40 mil e eu emprestei a ele porque ele realmente estava precisando. Falou que precisava muito porque ele estava com o IPTU, o IPVA e  não sei o quê para pagar. A filha dele estava indo para Portugal para fazer mestrado em Direito”, explica.

Como suas contas nos três bancos estavam sendo bem movimentadas, foram liberados limites altos para ela. “Aí ele gastou mais ou menos uns R$20 mil entre cheque especial e crédito. Com isso meu nome ‘sujou’”, lamenta. “Em 2019/2020, a gente já estava nessa perturbação, e eu engravidei”.

Após seu ex-companheiro pedir para que interrompesse a gestação, algo que deixou Mayara muito abalada, ela sofreu um aborto espontâneo. “Eu já não conseguia mais conviver com ele. Em janeiro de 2020 a gente se separou. Eu falei para ele que para mim não dava mais”, conta.

Mayara também foi dispensada do emprego. Então cobrou: “mas e aí, como ficam as minhas contas, os cartões e o dinheiro que você me deve?”. “Ele falou que as dívidas ficariam por tudo que ele já tinha gasto comigo e com as minhas filhas”.

Hoje, com 26 anos, além do prejuízo de R$40 mil que emprestou a ele, a vendedora acumula uma dívida de mais de 20 mil de dívida em três bancos. O ex-companheiro simplesmente sumiu.

“O número que ele tinha na época era no meu nome e ele simplesmente jogou fora. Eu já fui na loja e nunca encontrei ele, apesar de já terem falado para mim que ele continua sendo gerente”, conclui.

Endividamento das mulheres brasileiras

Casos como esses, de violência patrimonial, aumentaram 47% durante a pandemia, segundo o estudo do Datafolha. Eles se somam  à crise econômica, à recuperação mais lenta do mercado de trabalho e às outras inúmeras razões que contribuem para o endividamento no país, que afeta oito em cada dez brasileiras, de acordo com pesquisa recente da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo.

“Eu repito sempre que posso: segundo o DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), a renda mínima necessária para sustentar uma família com quatro pessoas no Brasil, em agosto de 2022, deveria ser de R$6.298,91. No entanto, 90% dos brasileiros têm renda inferior a R$ 3,5 mil por mês. Isso é metade do mínimo considerando nossa inflação. Essa conta não fecha!”, alerta Amanda Dias.

“Ao contrário do que dizem a maioria dos educadores financeiros, as mulheres não se endividam para comprar blusinha, elas se endividam para colocar comida na mesa, um teto sobre suas cabeças e estão parcelando até as contas básicas e boa parte dessa culpa recai nas políticas econômicas que não estão focadas na redistribuição de renda nem em combater as desigualdades econômicas e a pobreza”, aponta.

A especialista ainda ressalta que o empobrecimento feminino é sistêmico e que não é só a necessidade de comprar comida que faz com que as mulheres fechem o mês em vermelho. As mulheres, e também as crianças que estão sob cuidado exclusivo delas, precisam de chinelo, cortar cabelo, roupa, remédio e uma série de gastos que aos poucos vão formando uma bola de neve na fatura do cartão.

“Quem tem pouco dinheiro, precisa aprender ainda mais a organizar essa grana. Organização financeira não é só sobre números, é também sobre confrontar crenças e comportamentos nocivos em relação a dinheiro”, explica.

“Emprestar dinheiro sem contrato, emprestar seu nome para outra pessoa fazer um crédito, cobrar muito barato por um produto ou serviço só para não perder a oportunidade, tudo isso são exemplos de comportamentos que impedem as mulheres de ter uma vida financeira mais equilibrada”.

Como denunciar a violência patrimonial?

Dentre os principais caminhos para denunciar a violência patrimonial está a realização de um Boletim de Ocorrência (BO) em uma Delegacia da Mulher – unidades especializadas em atender e acolher mulheres vítimas de violência. Também é possível registrar o BO online e denunciar pela Central de Atendimento à Mulher, ligando 180.

O próximo passo é  reunir o máximo de provas que conseguir. Pode ser prints de conversas por meio das redes sociais, extratos de transações financeiras, históricos de depósitos, gravações e demais materiais que comprovem a violência.

Para obter assistência jurídica gratuita, caso não tenha condições de contratar um profissional, é possível procurar a Defensoria Pública do seu estado, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no seu município, clínicas jurídicas universitárias ou atendimentos em outras iniciativas gratuitas ou de baixo custo.