Maré

RJ: “Intervenção não vai adiantar sem outros direitos básicos”, avalia moradora

"Só quem mora em favela sabe o que é acordar com barulho de tiro, ficar jogada no chão da sala, presa em casa sem poder trabalhar ou estudar porque tem operação. A polícia só entra na favela pra atirar e gastar dinheiro", aponta moradora da Rocinha.

Por Jéssica Moreira

21|02|2018

Alterado em 21|02|2018

Militante de Direitos Humanos no Complexo da Maré (RJ), a jornalista comunitária Gizele Martins, 32, teve um dia agitado na última sexta-feira (16). Enquanto ela e demais moradores do estado se recuperavam das fortes chuvas da noite anterior, o presidente Michel Temer (MDB) anunciava um decreto autorizando intervenção federal em todo o Rio de Janeiro, com a justifica de conter a crise de segurança pública local.
“Estamos em campanha para socorrer pessoas afetadas pelas chuvas, e qual é o tipo de investimento que esse governo tem para nossas vidas? Investimento em armamento, tanque de guerra, caveirão, forças armadas para mais reprimir do que dar direito à vida. A gente não tem direito à vida”, disse Gizele.
O decreto foi aprovado nesta terça-feira (20) pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal. O responsável por comandar a segurança pública do Rio de Janeiro será o general do Exército Walter Souza braga Neto, do Comando Militar do Leste. O general irá responder diretamente ao presidente da república, sem intermédio do governo estadual e ficará no comando da Secretaria de Segurança Pública, Polícias Civil e Militar, Corpo de Bombeiros e do sistema carcerário fluminense. Moradoras da Maré e da Rocinha, que relatam já viver a militarização de suas favelas diariamente, temem que a situação piore.

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Complexo da Maré, Rio de Janeiro (RJ)

©Jéssica Moreira


Sem internet ou energia elétrica em casa na sexta, foi no wi-fi na rua que Gizele conseguiu ter acesso às últimas notícias e iniciar uma bateria de entrevistas a diversas mídias sobre o assunto. Afinal, não é de hoje que a comunicadora comunitária sabe muito bem o que é ter sua comunidade cercada de fuzis e soldados.
A Maré esteve ocupada por forças armadas em 2014, durante a Copa do Mundo e o exército interveio em 2016, ao longo das Olimpíadas. Composto por 16 favelas e, aproximadamente, 140 mil moradores, o número de soldados na época das jogos olímpicos era tão grande, que os movimentos sociais locais chegaram à conta de  um soldado para cada 55 moradores. Gizele conta que diversas casas foram invadidas por eles e até crianças revistadas de maneira arbitrária.
“E aí nós vemos, mais uma vez, o que é o racismo, porque soldados revistam crianças, invadem casas. Sou moradora da Maré desde que nasci, minha família está aqui desde o começo, em 1940, e nunca tivemos um médico ou professor para 55 moradores. Mas tivemos “direito” a um soldado para cada 55 pessoas”, lamenta Gizele.
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Mesmo problemática, a presença militar no estado nos outros períodos ainda não se tratava de uma intervenção da União sobre o estado, mas sim de uma GLO (Garantia de Lei e Ordem), na qual o poder estadual solicita ao governo federal ajuda nas forças armadas, mas continua no comando da situação. No caso da intervenção federal, o poder sobre tudo que se relaciona à segurança pública fica nas mãos da União. A última vez que uma ação dessa aconteceu, o Brasil ainda vivia a Ditadura Militar.
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Complexo da Maré, Rio de Janeiro (RJ)

©Jéssica Moreira


“Só quem mora em favela sabe o que é acordar com barulho de tiro”
Do outro lado da cidade, na Favela da Rocinha, Maria* também teme o futuro quando pensa na comunidade regida por forças armadas, mas lembra que a crise na segurança pública no Rio de Janeiro não é de hoje. “Só quem mora em favela sabe o que é acordar com barulho de tiro, ficar jogada no chão da sala, presa em casa sem poder trabalhar ou estudar porque tem operação. A polícia só entra na favela pra atirar e gastar dinheiro”, diz.
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No ano passado, a Rocinha passou por diversos conflitos violentos afetando a população, no entanto, a moradora aponta que nada foi feito efetivamente. “Quantas operações já aconteceram na Rocinha desde setembro, quando tudo isso teve início, e qual o balanço? Ninguém sabe, pois não tem planejamento e inteligência nessas operações. É a política do confronto que prevalece  e vai dar as caras nessa intervenção também”, completa.
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“Para todo mundo, o RJ só entrou em colapso agora, mas a gente, que mora em favela/periferia, sabe o quanto a situação só está piorando. Desde 2008, com a criação das UPPs (Unidade de Polícia Pacificadora), que prometem para a gente e vendem para toda a sociedade uma tão sonhada paz a segurança baseada em mais armamento e confrontos, sobretudo nas favelas”, aponta.
Por mais direitos 
Para  Maria não é possível pensar políticas para conter a crise de segurança no Rio sem olhar para os direitos sociais que ainda não são garantidos no estado. “UPPs, mais policiais nas ruas ou militares, agora com a intervenção federal, nunca serão uma boa solução, enquanto isso não vir acompanhado de outros direitos”, aponta.
Gizele concorda. “A gente não tem direito à casa ou à educação. Eles preferem gastar com uma dita segurança pública que não é para proteger a nós, moradores e moradoras das favelas e periferias do Rio, mas sim para proteger um asfalto, uma riqueza, um estado que nunca nos garantiu nem o mínimo”.
“Isso não vai resolver o problema da segurança pública” 
“Essa intervenção tem caráter puramente eleitoreiro. Não vai resolver o problema da segurança pública. A forma como isso está sendo articulado, sem participação nenhuma da sociedade, criminalizando mais uma vez as pessoas que moram na favela demonstram bem isso”, explica Maria, que se mostra preocupada sobre a forma como serão realizadas as abordagens dentro das favelas. “Sem intervenção a polícia já age no esculacho, imagina tendo o aval disso?”.
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A preocupação da moradora da Rocinha não é à toa. Gizele conta que, nos anos passados, os movimentos de comunicação da Maré sofreram diversas represálias. “A  galera que luta [ por direitos] foi censurada, a gente não pôde fazer atividades de rua, a comunicação comunitária foi ameaçada, os comunicadores foram ameaçados, a gente sofreu intervenção do exército nas rádios e jornais comunitários, tiroteios constantes, escolas fechadas. O nosso medo é que isso vai acontecer de novo com a aprovação do decreto, o que é terrível pra gente”.
Muito além da violência, fonte de criatividade e resistência
 Complexo da Maré
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Feira no Complexo da Maré, Rio de Janeiro (RJ)

©Jéssica Moreira


” Localizado na zona norte do Rio de Janeiro, o Complexo da Maré está próximo da Linha Vermelha e Linha Amarela, da Avenida Brasil e do Aeroporto Internacional. É uma favela que tem um histórico de militância e de defensão dos direitos humanos muito grande. As mídias comunitárias da Maré têm mais de 20 anos. A Maré tem um histórico de comunicação comunitária gigantesco e de defesa da identidade e cultura, pré-vestibulares, fazendo dela uma favela que tem muitos militantes e muitos trabalhos e defesa da nossa identidade negra, indígena, nordestina, uma favela que traz essas identidades muito forte como trabalho local.” (Gizele Martins)
Favela da Rocinha
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Crianças brincando nas ruas do Complexo da Maré, Rio de Janeiro (RJ)

©Jéssica Moreira


“Localizada na zona sul do Rio de Janeiro, a  Favela da Rocinha, assim como em outras favelas, também tem muitas potências: na música, na comunicação, nas artes, na luta comunitária. É só a gente parar e olhar o quanto de coisas nós, moradores de favelas, fazemos com tão pouco. O poder público olha pra gente como “carentes” e cada ação realizada dentro da Rocinha e das favelas é vista como caridade ou migalha. Quando, na verdade, é uma obrigação que, muitas vezes, eles [poder público] não cumprem. Não nos dão saúde, educação, segurança, saneamento básico e quando eles tentam agir no território é justamente para tirar o pouco que conquistamos” (Maria*)
*Nome fictício dado para preservar a segurança da fonte