Débora do Mães de Maio: “Hoje se alguém toca a campainha de casa, eu não tô. Tô na luta”

Era maio, mês das mães. Os dez dias mais sangrentos da história do Estado de São Paulo. Naquele mês de 2006, 59 pessoas, dentre estes policiais, principalmente, foram mortos por membros do crime organizado. Em represália, homens encapuzados, dentre estes policiais, principalmente, assassinaram 505 pessoas. Tudo começou no dia 12, sexta-feira. No domingo, 14, era […]

Por Redação

10|05|2016

Alterado em 10|05|2016

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A reparação não foi feita, a marcha fúnebre prossegue no nosso país, principalmente na periferia.


Era maio, mês das mães. Os dez dias mais sangrentos da história do Estado de São Paulo. Naquele mês de 2006, 59 pessoas, dentre estes policiais, principalmente, foram mortos por membros do crime organizado. Em represália, homens encapuzados, dentre estes policiais, principalmente, assassinaram 505 pessoas.
Tudo começou no dia 12, sexta-feira. No domingo, 14, era o ‘Dia das Mães’. A realidade parece, às vezes, inacreditável. As coincidências cruéis. Naqueles dias, centenas de mulheres sofreram a perda de seus filhos. E tantas outras de seus esposos, irmãos, amigos.
Há dez anos, um grupo de mulheres de diferentes cidades e bairros se juntou para partilhar suas dores, se organizou e constituiu um dos principais movimentos sociais do Brasil da atualidade. As Mães de Maio iniciaram suas atividades denunciando os crimes provocados pelo Estado diante da morte de seus filhos, e da ausência de investigação. Hoje, elas defendem a desmilitarização da polícia e o fim do sistema capitalista. Hoje, elas viajam para os EUA para se apresentar na ONU acusando o Estado Brasileiro pela morte dos jovens negros.
Para marcar esta data, a repórter Lívia Lima, do Nós Mulheres da Periferia entrevistou Débora Maria da Silva, líder do movimento.
Confira
Nós, Mulheres da Periferia: Como foi a viagem que fez para os EUA, à convite da Anistia Internacional, no mês passado?
Débora: “Eu fui para os Estados Unidos sem saber como era a programação. Foi tudo surpresa. Nós fomos para a assembleia das anistias em Miami. De lá, pegamos um voo, três horas, para Washington, saímos de Washington fomos para Nova York. Eu conheci as três Anistias. A Anistia Americana que fez as pautas, da OEA (Organização dos Estados Americanos), dos congressos. É uma brasileira a diretora geral, de Minas Gerais. Até no congresso americano tinha seguidores das Mães de Maio. Me senti em casa, a vontade. Fomos acolhidas por mães que vão fazer manifestação lá no dia 13, simultâneo. Não foi um país estranho, mas é um país que não tem liberdade. É tudo não, não pode, uma vigilância muito grande. Mas os americanos aceitaram esse modelo, quem somos nós para criticar? Quando eu voltei, direto para o Rio de Janeiro, senti o cheiro do meu país, do meu povo, eu descobri que eu sou muito brasileira, eu amo meu país. Eu tenho que lutar pela transformação dele”.
“Se desmilitarizar, mais de 80% da violência no Brasil vai acabar. Eu disse isso na bolinha dos olhos da presidente Dilma, em 2013, quando eu recebi o Prêmio Nacional de Direitos Humanos. Em 2010 o movimento recebeu o prêmio das mãos do Lula. Eu entrei muda e sai muda e isso me incomodou. Nesse, quando eu tive direito à fala, fiquei indignada as Mães de Maio receber o prêmio das mãos do Eduardo Cardoso, o Ministro da Justiça. Ninguém foi bater na minha porta. Eles deram a inteligência (Inteligência Policial da Polícia Federal), mas não para descobrir os grupos de extermínio. Por isso as chacinas continuam acontecendo, em Osasco, Carapicuíba, em Santos. Ele não nos representa. Eu falei para a presidente Dilma que a ditadura não acabou. Defender a democracia em um país militarizado, como a gente vai defender? Vamos fazer a revolução”.
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Débora, nos Estados Unidos. | Crédito: divulgação


Nós, Mulheres da Periferia: Nesses dez anos, como você vê a sua vida transformada, você imaginava que ia ter essa proporção, essa vida na militância?
Débora: “Que pergunta provocativa né?! A minha vida se transformou. Eu era uma dona de casa e hoje eu não sou mais. Eu era uma mãe com duas filhas e vários netos e hoje a minha casa tá vazia. Hoje se alguém toca a campainha de casa, eu não tô. Tô na luta. Eu converso com elas, elas entendem. Elas falam: ‘como é que pode uma mulher ter uma parte do corpo arrancada e continuar lutando assim?’. Elas compreendem porque são mães e sentiram a morte do irmão. Eu também não sou mais esposa, sou dona do meu corpo. Faz seis anos que eu vivo com meu marido, dentro de casa, em quartos separados. Ele teve que compreender. No começo ele não gostava da militância, bebia, xingava, reclamava que eu tava sozinha, que as outras mães não me ajudavam. Eu não via esse lado, porque esse legado, esse compromisso foi uma determinação escolhida por mim. Eu prometi pro meu filho que eu ia cumprir. Essa Débora que era uma dona de casa pacata é uma educadora de Direitos Humanos que quer levar para essas mães um rumo, seus direitos.
O Movimento não vende justiça, porque ela não existe, o Movimento vende luta. Esse é o legado que eu vou deixar. Se você tiver coragem, determinação, você conquista. Esse movimento já faz parte da História do Brasil. Ele conquistou, que nem os familiares dos mortos da Ditadura, a semana estadual para todas as vítimas do Estado Brasileiro, o dia das mães de maio, que a gente não concorda. Dia das mães é todo dia. Foi incorporada na semana das vítimas porque é a memória dos nossos filhos que tem que preservada. A gente conquistou a discussão sobre a revista vexatória. É uma preliminar contra o sistema carcerário. Eles tem que usar tecnologia, igual nos aeroportos. O fim dos autos de resistência, seguida de morte em São Paulo. A gente acredita que vai conquistar muito mais.
NMP: Você acha que para a mulher, ser militante é mais difícil?

Débora: “O Estado não tirou só meu filho, ele tirou meu útero, minhas trompas, meus ovários. Eu sou uma mulher oca. Ela não tem o prazer de ir para a cama com um homem, porque foi um homem que tirou a vida do meu filho. É uma coisa que não dá para descrever abertamente, mas eu não sinto prazer. Eu, dona do meu corpo, preferi me afastar (do marido). O homem não entende o que eu tava sentindo”.

“Meu lado feminista vem desde quando eu vivia com o meu pai. Ele queria colocar regras em mim, de família cristã, queria que eu fosse para a igreja. Eu bati o pé e falei que eu não ia, foi aí que eu sai de casa. Ele falou: ‘você escolhe, a igreja ou o baile’. Eu falei o baile. Sai de casa com 14 anos, hoje eu tenho 57. São oito irmãs mulheres comigo, quatro homens, dois morreram pequenos, um desaparecido. Não obedeci meu pai, não vou ser submissa a um homem que não é meu sangue. Essa é minha mentalidade. Ele não respeitava minha luta, então não ia dividir a cama com ele. Eu tenho direito a parte da rende dele, ele é funcionário aposentado da Câmara de Santos. É uma pensão irreversível que eu recebo entrego pra ele, pra mostrar que eu não preciso do dinheiro dele. Ele se acostumou, virou militante, mas não é por isso que eu vou ceder. Eu vivo o luto. Nunca tive oportunidade de falar isso em público, abertamente para ele saber, mas é como eu me sinto, a gente tá soltando as amarras, outras mães também.
NMP: Onde você nasceu? Em Santos mesmo?
Débora: Eu nasci no Pernambuco, vim com três anos morar em São Vicente. As atitudes, o enfrentamento, o sangue que corre na minha veia é o nordestino. Eu tenho uma opinião própria, não tem quem contamine. Quando eu fui morar com meus filhos sozinha em São Vicente, depois que o pai deles morreu, assassinado, a gente montou uma barraca de São João e demos o nome de ‘Cabulosa’. O policial parou a viatura uma vez e perguntou o que significava e eu disse: ‘opinião própria’. E é isso. Eu desafio até as próprias mães, porque um dia que eu chegar no movimento e falar que cansei, o movimento acaba, e esse movimento é o alimento da minha alma”.
NMP: Você já tinha algum conhecimento de política antes?

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Ato do Mães de Maio | Crédito: divulgação.


Débora: “Não, eu nem sabia falar direito. Mas depois que você começa entender como funciona o sistema, você tem que lutar contra ele. Matar um leão todo dia. Você sai da sua cidade de origem para lutar pelo seu filho, vem para uma cidade (São Paulo) que tinha uma história, uma lenda de que se perdesse não voltava mais para casa. E você vê que São Paulo ficou pequena para você. E aí você vai para Brasília, e Brasília também ficou pequena para você, aí você vai para o país norte-americano. É o desafio que a vida oferece pra nós. Você vai discutir com os senadores, vai pedir CPI. Uma dona de casa, brigando só com figurões. Essa é a Débora. Ela não anda de salto Luis XV nem tapete vermelho. Ela anda de sandalinha franciscana, descalça, no chão batido, para poder pegar força e energia para continuar a luta”.
NMP: Para você o que é ser uma mulher da periferia?
“É complicado. Mas ser uma mulher negra de periferia, eu bato no peito. Seja em qualquer lugar que eu estiver, eu represento a minha periferia, cerro os punhos. Eu tenho que fazer valer a minha existência, e a de todas nós. É difícil, mas você tem que encarar essa realidade. Pular todos os muros, meter o pé na porta. Com o tempo as portas vão ser abertas”.
NMP:- Por que você acha que ainda existe um tratamento diferente para a periferia, para a mulher?
Débora: “Nós nascemos em um país elitizado, onde as minorias mandam pelo poder aquisitivo, mas não podemos nos intimidar. Depende de nós, são desafios. É tijolinho por tijolinho que se constrói uma casa. É luta. De 2013 para cá vimos o fascismo, os brancos tirando foto do lado do Caveirão (Tropa de Choque), que tem um pouco de navio negreiro, a máquina de moer negros e pobres. Para eles não têm muita importância, tem para nós, que temos que lutar contra esse sistema, não tratar com naturalidade. Depende de nós, se encorajar. Toda mulher negra, periférica, tem um pouco de Dandara”.
Para finalizar, fiz a pergunta mais difícil. Hesitei, pensei se seria mesmo necessária para fazer um perfil da Débora militante. Mas não podia deixar de fazê-la, enquanto jornalista, sabendo que seria um momento difícil para Débora, como mulher e mãe.
-Nós, Mulheres da Periferia: Se não for um problema para você, pode contar como tudo aconteceu há 10 anos? Onde você estava quando seu filho morreu?
NMP:“No dia 10 de maio era o meu aniversário. Eu já estava deitada porque eu já estava com o pensamento meio desastrado. O primeiro ataque à delegacia foi em Cubatão. Eu estava impressionada por causa dessa matéria que eu tinha lido, porque eu sou muito fanática por jornalismo. Eu vi aquilo, fiquei meio para baixo e fui dormir. A gente ia comemorar no Dia das Mães. Umas 21h30 tocou a campainha era minha filha mais nova, com bolo prestígio para cantar ‘Parabéns’. Eu levantei, mas eu sabia que meu filho tinha ido operar o dente do ciso. Eu fiz um cozido de legumes para ele bater e comer como papinha, levado para a casa dele, que era nossa, a gente tava construindo porque eu morava de aluguel.
Mas aí ele chegou de porta dentro gritando na minha casa, porque tava doendo o dente. Pegamos a receita, meu marido pegou a moto e foi comprar o remédio. E ele ficou rindo. Eu disse: ‘menino, você faz seu padrasto buscar o remédio, gritando de dor. Mas mãe – ele falava com o sotaque nordestino, por causa do sotaque da gente – eu tomei um remédio que fez passar a dor na hora’. Era um menino que parece que não arrancou o cordão umbilical. Ele foi dormir, a boca tava inchada. No dia seguinte, eu falei, Rogério, vai para sua casa, que a comida tá lá, não vou fazer outra porque eu vou correr atrás das coisas dos Dia das Mães, que era meu aniversário.
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Ele foi para a casa dele. Trabalhou com atestado médico, eu não sabia. Fui saber que ele tinha trabalhado no domingo, quando ele trouxe o filho para fazer a festa. Ele comeu um pedaço de churrasco, bateu no dente. Às 17h, a mãe do menino perguntou quando ele ia levar ele embora. Ele me perguntou: ‘mãe, posso dar banho no meu filho?’. Eu falei: ‘vamos negociar, você dá banho, eu enxugo’. Peguei o menino, enxuguei, mudei de roupa. A irmã levou o menino embora, porque tinha carro e eu liguei a televisão. Tava passando o enterro do bombeiro (João Alberto da Costa, 40 anos, foi morto, em São Paulo em 13 de maio de 2006), e aquela corneta que tocou quando descia o caixão, meu filho começou a chorar. Eu também comecei a chorar, pelo peso daquela mãe. Eu, ele e a irmã dele.
Aí ele falou: ‘eu vou embora que você vai ficar mudando de canal toda hora para ver o jornal’. ‘Não vai não filho, fica aí’. Aí eu fui levar um pedaço de bolo para a vizinha e ele pegou as comidas, colocou em uma sacola e disse que ia embora. ‘Mas menino, tá vendo como tá a situação por aí?’. ‘Eu não vou sair de casa’. Me deu um beijo, na vizinha.

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A Lei 15501/2014, que instituiu a ‘Semana Estadual das Pessoas Vítimas de Violências no Estado de São Paulo’) foi sancionada em setembro de 2014 .


O dia seguinte, dia 15, foi o dia que parou São Paulo. Antes das oito horas um PM da família ligou na minha casa, e avisa que quem estivesse na rua era inimigo da polícia. Eu saí avisando o pessoal. E eu nunca imaginava que ia avisar de manhã e à noite iam matar o meu filho. Umas 22h meu filho chegou em casa procurando amoxilina. ‘Menino, eu tava atrás de você’. Deu meio dia, eu senti cheiro de sangue, não conseguia ficar dentro de casa. Aquele cheiro me incomodava, mas eu achava que era o filho da vizinha, que tinha confronto com a lei, não o meu, que era trabalhador (Edson Rogério Silva dos Santos, 29 anos, era gari).
Ele veio em casa, pegou o remédio e pediu R$ 10 para colocar gasolina na moto, porque a gasolina podia não dar. E não deu. A gasolina acabou, na subida do morro. Ele desceu, empurrando a moto. O posto estava fechado, ele pediu socorro para o amigo dele. Quando o amigo dele chegou, já tinha duas viaturas dentro do posto. Bateram neles, perguntando o que eles estavam fazendo na rua, porque o toque de recolher foi da polícia. Meu filho falou que não devia nada para a polícia, deram a sentença de morte para o meu filho.

Eu soube no dia seguinte, dia 16, no rádio, um programa policial. Foi bem complicado para mim. Eu gritei muito. Eu não acreditava que meu filho tinha morrido. Mas sabia que era ele, porque o nome dele quem programou fui eu. Eu queria Rogério e o pai queria Edson, que era o nome do pai. Ele era o terceiro da lista de uma matança dada pela notícia. Tinha uma ordem para enterrar no mesmo dia. Eu desobedeci, embalsamei meu filho. Teve o velório, o enterro. E depois começou a peregrinação até os dias de hoje”.

Ficamos em silêncio. Eu, ainda sem reação, diante do relato. Passados alguns segundos, perguntei se ela queria dizer mais alguma coisa. Para Débora não era necessário. A memória daqueles dias, há 10 anos, já bastava. Encerramos mais uma entrevista. Me calei, em respeito a uma dor que não sou capaz de medir e imaginar. Débora, contrariando todas as dores e adversidades, não se cala.