Nas periferias brasileiras preço do gás leva mulheres a usarem lenha

Nas periferias brasileiras, preço do gás leva mulheres a usarem lenha

Cozinhar na lenha e pedir doações estão entre as alternativas encontradas diante da alta dos preços do gás de cozinha. Moradoras de Salvador, Recife e São Paulo contam suas experiências.

Por Beatriz de Oliveira

17|12|2021

Alterado em 27|01|2022

Segundo o levantamento do Observatório Social da Petrobrás (OSP), entre 2016 e 2021, o gás de cozinha teve alta de 48% acima da inflação. De acordo com a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) o preço médio nacional para um botijão de 13kg é, atualmente, R$ 120,40. 

Enquanto isso, o Congresso Nacional deixou de votar, na última segunda-feira, dia 13 de dezembro, o Projeto de Lei (PLN) 42/2021, que abre crédito especial de R$ 300 milhões no orçamento federal para o pagamento do Auxílio Gás, decretado no dia 3 de dezembro pelo presidente da república. A expectativa é atender 5,5 milhões de famílias neste ano. 

Mas, até agora, o vale ainda não saiu. Segundo a Agência Senado, o presidente da sessão, deputado Marcelo Ramos (PL-AM), afirmou que não houve acordo com a base do governo para a aprovação do projeto. Ao mesmo tempo, fora das paredes do Congresso, a lenha e o fogão de tijolo voltaram à cena nas casas brasileiras.

Para entender como as mulheres têm lidado com essa realidade com suas famílias, o Nós, mulheres da periferia ouviu a história de Verônica Costa, na Bahia, Ângela Maria, em Pernambuco e Elizabete Viela, de São Paulo. Moradoras das periferias brasileiras, elas relataram como têm vivido na corda bamba entre a economia e a total ausência de gás. 

Além disso, Marina Ribeiro, coordenadora de projetos na ONG Criola, uma organização que atua há mais de 25 anos apoiando mulheres negras e periféricas no Rio de Janeiro, contou  quais soluções a sociedade civil tem encontrado para minimizar os impactos dessa realidade. 

Na Bahia: ‘A mulher se vira nos mil. Nos 30 é pouco’

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Verônica Costa.

©arquivo pessoal

Os pais e os três filhos, de 17, 16 e 12 anos, de Verônica Costa, 38, moravam em Salvador, na Bahia. Com o início da pandemia de Covid-19, parte da família se deslocou para o Vale do Jiquiriçá, município localizado na região Centro Sul do estado. Para continuar trabalhando, apenas  ela e o marido permaneceram na capital baiana.

Em uma visita à família no natal de 2020, sua mãe contou que estava cozinhando com lenha. Mas a situação não foi tão surpreendente. Verônica chegou ao final do ano desempregada e com dificuldades financeiras. Quando voltou para Salvador passou a fazer o mesmo. Atualmente, ela cozinha no quintal a cada 15 dias e congela as refeições para as semanas seguintes.

Na região em que mora, um botijão de gás custa entre R$ 95 e R$ 105. Com este preço, o gás passou a ter um papel secundário. “Hoje eu só uso para fazer café, sopa e esquentar a comida”, conta. 

Há dois meses ela recebeu a doação de uma unidade. Revezando entre lenha e gás de cozinha, pretende economizar até fevereiro de 2022 para evitar a necessidade de uma nova troca até o próximo ano. “A gente é mulher e se vira nos 1000 mesmo, nos 30 é pouco”.

Em Pernambuco: ‘Onde a gente vai parar?’

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Angela Maria trabalha fazendo doces e salgados para festas.

©arquivo pessoal

Em Recife, estado de Pernambuco, Angela Maria, 52, encontra o botijão de gás por R$ 100. Ela mora na comunidade Roda de Fogo, localizada no bairro Torrões. Agora que a filha conseguiu um emprego, a possibilidade de compra aumentou. Mas há dois meses a situação era outra: Angela também precisou usar lenha para cozinhar. “Pra mim é muito frustrante”, desabafa. Em seguida, acrescenta que não é só o gás de cozinha que falta, são os suprimentos do dia a dia, assim como o dinheiro para pagar as contas. 

Ela vive com três netos e trabalhava fazendo doces e salgados para festas. Mas com a pandemia e a necessidade de distanciamento, os eventos se tornaram escassos. “Eu parei de trabalhar”.

Passados quase dois anos de pandemia, a cozinheira quer voltar às vendas. “Tem uma hora que você não quer depender de ninguém, quer realmente recuperar sua dignidade”, explica. Mas, para isso, precisa garantir os recursos necessários e o gás é um deles. 

Essa situação não é uma exclusividade dela. Em seu entorno, outras pessoas enfrentam o mesmo desafio. Diante desse contexto, ela questiona: “onde a gente vai parar?”. 

As parcelas que ela recebeu do Auxílio Emergencial foram usadas para comprar comida, já que “tem que priorizar” o essencial. Mas o valor do auxílio se torna insuficiente diante do preço do gás e dos alimentos. 

Com a economia familiar prejudicada, Angela percebe ainda uma mudança de hábitos. Antes, era comum ter um botijão extra para quando o que está em uso acabar. Atualmente, ela conta nos dedos os vizinhos que tem uma unidade extra. “Eu mesma só tenho aquele que está no meu fogão”.  

Em São Paulo: ‘A gente não pode ficar sem comer’

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Elizabete Viela.

©arquivo pessoal

Elizabete Viela, 47, também recebeu as parcelas do Auxílio Emergencial. Em Paraisópolis, na cidade de São Paulo, a atuação é parecida com a de Angela: faz bolos para festas. Mas isso começou durante a pandemia, quando saiu do emprego de auxiliar de produção por problemas de saúde. 

Ela mora com o marido, três filhos e um cunhado. O botijão é item essencial para sua produção. “Preciso do gás para assar o bolo e preciso do gás para fazer o recheio”, diz. “As encomendas é só pela misericórdia do senhor”, algumas semanas aparecem pedidos, em outras, não. 

A boleira conta que o preço do gás de cozinha na sua região vai de R$ 110 a R$ 120. “To conseguindo [comprar] com muito sacrifício, mas estou. “A gente não pode ficar sem comer”, diz. 

Ela recebeu uma parcela de R$ 100 do Vale Gás, do Governo de São Paulo. O benefício previa o pagamento de três parcelas e foi destinado a mais de 400 mil famílias. Mas o que tem segurado as pontas são as doações de cestas básicas que recebeu há alguns meses, “isso tá ajudando muito a gente a sobreviver”, conta Elizabete.

No Rio de Janeiro: ‘A gente vive, diretamente, um ataque aos direitos sociais’

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Marina Ribeiro é coordenadora de projetos na ONG Criola.

©arquivo pessoal

Marina Ribeiro, 48, é coordenadora de projetos na ONG Criola, uma organização que atua há mais de 25 anos apoiando mulheres negras e periféricas no Rio de Janeiro. Com a pandemia, a organização começou a distribuir cestas básicas. 

Ela destaca o protagonismo das mulheres na busca por soluções para a falta de alimentos, ao mesmo tempo que são as mais afetadas por esse cenário. Em meio às ações, a ativista relata que presenciaram a experiência de mulheres sem dinheiro para comprar gás de cozinha, sendo preciso improvisar com fogões caseiros, feitos por tijolos.

Segundo a coordenadora, também há mulheres que pediram para o vizinho cozinhar alguma coisa ou entraram em contato com a ONG pedindo doação do gás de cozinha. Em sua opinião, a forma como o governo federal tem conduzido as políticas públicas no país é inadequada. 

Um exemplo é o Auxílio Emergencial. Aprovado pelo Congresso Nacional em 2020, começou a ser pago em parcelas de R$ 1.200 e R$ 600 em abril daquele ano. Meses depois, o valor foi reduzido a parcelas de R$ 600 e R$ 300. E, após um período de paralisação, voltou a ser pago em 2021 em parcelas de até R$ 250, até o mês de outubro.

Com relação ao vale-gás, a coordenadora afirma que, apesar de ser uma ajuda às famílias de baixa renda, o benefício “não garante que essas famílias tenham segurança alimentar e dignidade”. Acrescenta ainda que o auxílio “não garante nem o valor total do gás”.

O programa define que, a cada dois meses, as famílias recebam 50% da média do preço nacional do botijão de 13 kg. Famílias com renda familiar, por pessoa, de até meio salário mínimo ou com membro que receba o Benefício de Prestação Continuada (BPC), têm direito ao benefício. E mulheres vítimas de violência doméstica com medidas protetivas terão preferência nos pagamentos. 

“A gente vive, diretamente, um ataque sobre os direitos sociais. E as mulheres negras são as que mais sofrem”, afirma. Acrescenta que a população “sofre com o aumento de tudo aquilo que é básico”. Como consequência, passa a não conseguir colocar na mesa itens como arroz, feijão e carne.

Em comparação, a coordenadora de projetos destaca os méritos do programa Bolsa Família, que foi “construído dentro de um contexto em que a assistência social foi pensada como algo fundamental para  apoio às famílias”, colaborando para a garantia da segurança alimentar dos beneficiários.

Segundo pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que publicaram o estudo “Os efeitos do Programa Bolsa Família (PBF) sobre a pobreza e a desigualdade: Um balanço dos primeiros 15 anos”, o Bolsa Família reduziu a pobreza em 15% e a extrema pobreza em 25%.

 Mas, em novembro de 2020, o programa foi substituído pelo Auxílio Brasil. O benefício já está em vigor, mas precisa passar por votação no Congresso para se tornar definitivo. O pagamento médio de R$ 400 por mês para famílias pobres e extremamente pobres vale até o fim de 2022. 

“A saída é a construção da solidariedade coletiva. A sociedade civil e os movimentos de modo geral têm procurado saídas para aquilo que os governos não respondem. E nossa resposta foi construir uma campanha de arrecadação de recursos financeiros, o que inclui acionar diferentes apoios dentro da sociedade”, conclui.

Reportagem publicada originalmente no portal Expresso Na Perifa – Estadão.

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