Luana Tolentino: ‘O abandono dos estudos representa morte do futuro’
Na segunda reportagem da série "O Valor da Escola", mães e professoras comentam a importância da diversidade na educação e contam experiências com o Ensino Fundamental durante a pandemia.
Por Beatriz de Oliveira
08|12|2021
Alterado em 08|12|2021
Esta reportagem integra a série “O Valor da Escola”, uma parceria entre a Fundação Maria Cecília Souto Vidigal e o Nós, mulheres da periferia.
Uma pesquisa feita pelo Interdisciplinaridade e Evidências no Debate Educacional (Iede) e Comitê Técnico da Educação do Instituto Rui Barbosa (CTE-IRB), chamou atenção para o risco de evasão escolar dos estudantes que estão nos anos finais do Ensino Fundamental.
O levantamento mostrou que um a cada dez alunos do 9º ano não fez atividades escolares durante a pandemia, o que representa um alerta, já que o ensino nessa fase estava quase universalizado em 2019. Já nas turmas de 5º ano, 7,5% das crianças não frequentaram as aulas. Na região nordeste os dados são mais preocupantes, com ao menos 16% dos alunos do 9º ano, das redes municipais, em risco de evasão.
Luana Tolentino é autora do livro “Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula”.
©arquivo pessoal
A professora e doutoranda em Educação Luciana Dornelles relata que quando a pandemia começou já passou a se preocupar com a possibilidade de maior evasão escolar. “Eles [alunos de escola pública] têm muitas responsabilidades, diferente de outros jovens de escolas particulares”, afirma.
Ela conta que nesse contexto pandêmico vários de seus alunos passaram a ajudar no sustento de casa. “Os meus alunos de 12 e 13 anos já estavam falando em trabalhar”.
Para a mestra em Educação Luana Tolentino, o risco de abandono dos estudos “representa uma morte do futuro” e “o que nós estamos assistindo é um assassinato brutal do futuro de toda uma geração”.
Luana acrescenta que “a morte do futuro é um projeto político do nosso país, uma vez que não há qualquer política pública, palavra, posicionamento, de que alguma ação vai ser feita para enfrentar essa situação”.
“O que nós estamos assistindo é um assassinato brutal do futuro de toda uma geração”.
Racismo na escola
João e Maria estudam em uma escola a cinco quadras de sua casa, na cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Além das aulas, lições de casa e intervalos, o racismo também faz parte de seu cotidiano escolar. “Minha filha tem 17 anos e em sua vida escolar, todos os anos eu tive que ir à escola por causa de alguma coisa: porque minha filha é preta, porque minha filha é gordinha”, diz Lidiane David, mãe de João Marcelo, estudante do 5º ano do Ensino Fundamental, e de Maria Luiza, do 9º ano.
Lidiane David e seus filhos João Marcelo e Maria Luiza.
©Ale Almeida
João não costuma compartilhar com a mãe e a irmã as situações ruins que vive na escola. Lidiane conta que sabe de alguns casos porque Maria Luiza descobriu. Seu conhecimento sobre a violência vivenciada na comunidade em que vive, fez com que a mãe escrevesse um manual dando orientações para seu filho ir à escola sozinho.
Lidiane recorda que da última vez que compareceu à escola foi por conta de uma fala racista de um colega em relação ao cabelo de Maria Luiza. A estudante relata que um menino comparou seu cabelo a ‘bombril’. Isso aconteceu no início do ano letivo, e no último dia de aula ele pediu perdão. Maria aceitou as desculpas, “mas fica marcado, não vai mudar o que ele fez”, diz.
Para Luana Tolentino, o racismo não deve ser tratado de maneira isolada no ambiente escolar. “A promoção de uma educação antirracista precisa compor as práticas politicas-pedagógicas das instituições de ensino o ano inteiro”, afirma.
Ela salienta sua “condição de mulher negra que viveu muito de perto a violência racista dentro da trajetória escolar”. Assim como Lidiane, que também lidou com o racismo durante a escola, “infelizmente as nossas lembranças escolares, quando a pessoa é preta, não são boas”.
Diversidade na educação
Educadora Luciana Dornelles Ramos fundou o grupo Empoderadas IG e já impactou mais de mil adolescentes e jovens em Porto Alegre.
©Kadu Casales
Por ver seus alunos negros sofrendo violências que já havia passado durante sua fase escolar, a professora Luciana Dornelles criou o projeto Empoderadas IG. Ela lecionava para o Ensino Fundamental em uma escola pública de Porto Alegre. O grupo de estudos tem o objetivo de promover uma educação antirracista. “Eu queria que eles tivessem um acesso à negritude antes do que eu tive”, revela a doutoranda em Educação.
Luciana conta que em uma das atividades as alunas relataram que gostariam de ter mais argumentos para discutir com os colegas temas como feminismo negro, homofobia e cotas raciais. A solução encontrada foi uma uma ‘caixa do argumento’, em que depositaram diferentes temas e construíram em conjunto argumentos para tratar deles.
Para a professora, o entendimento da diversidade é essencial para o convívio com os colegas. “Ensinar eles para as diferenças, é ajudar nessa sociabilidade”.
Luana Tolentino destaca os progressos dentro desse tema na educação brasileira. “Nos últimos anos nós avançamos consideravelmente no sentido do Estado compreender o seu papel no fomento de uma educação para a diversidade. Isso se dá na alteração da legislação educacional, um dos marcos é a Lei 10.639, de 2003, que tornou obrigatório o ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira. Seguida pela Lei 11.645, de 2008, que incluiu a obrigatoriedade do ensino da história e cultura indigena no espaço escolar”.
Apesar da existência da legislação, salienta que sua implementação não ocorre de maneira ampla. Nas escolas que visitou com seu projeto, percebeu que temas relacionados à negritude eram tratados de maneira independente por professores simpáticos à causa, e não no contexto escolar como um todo.
A jovem Maria Luiza conta que sua escola não costumava abordar temas como esse, mas que a situação começou a mudar com a entrada de uma professora negra. Diz ainda que quando acontece um caso de racismo, os alunos procuram diretamente essa professora.
Luana destaca o momento de ameaça aos avanços conquistados, referindo-se aos discursos de ódio e intolerância. Ela cita como exemplo uma professora em Salvador que foi afastada de uma de suas turmas “pelo simples fato de levar um livro da Conceição Evaristo para a sala de aula”.
Aprendizados do Ensino Fundamental
Nos anos iniciais do Ensino Fundamental, que compreende os alunos do 1º ao 5º ano, o objetivo é consolidar as aprendizagens anteriores e ampliar os conhecimentos de linguagem. Já nos anos finais, do 6º ao 9º ano, as disciplinas ficam mais complexas, além de ser marcada pela transição da infância para adolescência. Entre as disciplinas vivenciadas nesse período estão: Língua Portuguesa, Língua Estrangeira, Arte, Educação Física, Matemática, Ciências da Natureza, História e Geografia.
A BNCC (Base Nacional Comum Curricular) destaca também o papel da escola de oferecer uma formação integral dos estudantes, com base nos direitos humanos. “É preciso considerar a necessidade de desnaturalizar qualquer forma de violência nas sociedades contemporâneas”, diz um trecho do texto.
Luciana Tolentino destaca o papel da escola para além dos aprendizados das disciplinas. “A escola é lugar de socialização, de proteção social, de formação de cidadãos críticos e participativos”, diz. Acrescenta que é preciso pensar no papel social da educação, que “é fundamental para uma trajetória escolar e de vida dos sujeitos que a frequentam”.
A professora lembra ainda que a grande maioria da população em idade escolar frequenta a escola pública, o que é um motivo para valorizar essa educação. Tanto nos anos iniciais, quanto nos anos finais do Ensino Fundamental as matrículas na rede pública representam mais de 80%, como aponta o Censo Escolar 2020.
Dificuldades com aprendizagem remota e na volta às aulas presenciais
Maria Aparecida e sua filha Mariana.
©arquivo pessoal
Maria Aparecida vive em Mauá, na região metropolitana de São Paulo, com suas duas filhas. Mariana, está na 6º série do Ensino Fundamental e Victória, está no 1º ano do Ensino Médio. A mãe conta que tanto durante as aulas on-line, quanto no ensino híbrido suas filhas enfrentaram dificuldades para aprender os conteúdos. “Eu saí da escola há muito tempo, é difícil para mim ajudar”, lamenta.
No contexto da pandemia da Covid-19, em novembro de 2020 mais de 5 milhões de estudantes não tiveram acesso à educação no país. A maior parte deles, 40%, estava na faixa de seis a 10 anos de idade, que corresponde à etapa do Ensino Fundamental. Os dados são do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).
O estudo revelou ainda que a exclusão escolar atingiu mais crianças e adolescentes negros e indígenas, que representaram 69,3% do total de alunos sem acesso à educação.
“Minha dificuldade foi tudo”, diz a jovem Mariana, “nas aulas online eu não estava me concentrando muito bem”. E com o retorno presencial, a situação não melhorou, “a gente praticamente vai para a escola pra não fazer nada, faz algumas lições e pronto, acaba a aula, a gente guarda o material e fica esperando”. Maria Aparecida conta que a escola da filha está adotando o ensino híbrido, e que nas semanas que a filha vai para a escola fica por menos de três horas.
A mãe acredita que suas filhas não estão preparadas para o próximo ano de ensino e compara esse ano letivo com o do ano passado, que também foi marcado pela pandemia.
Além disso, Mariana relata ainda que muitos estudantes não estão comparecendo às aulas. “A escola já era abandonada, depois da pandemia ficou mais abandonada ainda”, diz Maria Aparecida.
Mariana recorda da sua rotina escolar antes da pandemia, quando ia para a escola todas as semanas. “Eu gosto dos professores, das atividades”, conta. A relação com os colegas também é importante, ela tem amizades que vêm desde o 1° ano.
Esses dois últimos anos também foram difíceis para a educação dos filhos de Lidiane. Por conta das comorbidades, Maria e João não puderam voltar às aulas presenciais. E em razão disso, os dois chegaram a constar na Busca Ativa Escolar, controle de estudantes que estão fora da escola e em risco de evasão.
Lidiane conta que tiveram dificuldades de acesso a internet e ela ficou grávida durante a pandemia, o que limitou seu tempo em auxiliar os outros dois filhos nas atividades escolares. Maria conseguiu acompanhar as aulas e entregar trabalhos na escola, mas João passou por problemas psicológicos por medo da Covid-19.
Ele ganhou um celular quatro meses após o início das aulas online. Mas, “quando ele pegou o celular para acompanhar as aulas, ele não conseguiu mais”, afirma Lidiane, “aquilo começou a criar uma frustração nele”. Ela tentou contato com a professora, mas não conseguiu encontrar uma solução, por isso o filho segue sem acompanhar as aulas. “O futuro do João é incerto”.
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