Lideranças amazônicas: mulheres indígenas de São Gabriel da Cachoeira
Como quatro mulheres tem atuado em diferentes frentes no município mais indígena do Brasil
Por Beatriz de Oliveira
20|10|2022
Alterado em 20|10|2022
No interior do Amazonas, fazendo divisa com Colômbia e Venezuela, está o município de São Gabriel da Cachoeira. Com cerca de 90% da população formada por indígenas de 23 etnias, é a cidade mais indígena do Brasil. Ao caminhar pela feira que acontece todas as manhãs no centro é comum ouvir pessoas falando em diferentes línguas. Além do português, o município tem quatro línguas co-oficiais: tukano, baniwa, nheengatu e yanomami.
GALERIA 1/8
O Nós, mulheres da periferia foi até lá para conhecer histórias de mulheres lideranças na região. Neste especial, contamos como Dadá Baniwa tem lutado pelos direitos das mulheres indígenas, a trajetória de Florinda Lima Orjeula para organizar turismo de base em sua comunidade, a mudança de vida de Janete Tariana por meio do artesanato e o compromisso de Vera Lucia Moura com a educação.
Apesar de suas diferentes lutas e etnias, um ponto as conecta: o pensar coletivo. O plural prevalece em relação ao singular na maioria das falas ditas nas entrevistas. O bem viver da comunidade é o objetivo de todas elas. Como explicou Vera Lucia: “isso a gente aprende com nossas mães, a ter essa visão coletiva”.
Dadá Baniwa trabalha pela vida e direitos de mulheres indígenas
Dadá Baniwa é coordenadora do departamento de Mulheres da Federação das Organizações Indígenas de Rio Negro (FOIRN)
©Beatriz de Oliveira
“Não queria falar sobre isso”, diz Dadá Baniwa com lágrimas nos olhos. Se recompõe e muda de ideia. “A gente teve muita coragem, porque recebemos ameaças”. A liderança se refere à denúncia feita à ONU (Organização das Nações Unidas), durante o 21º Fórum Permanente das Nações Unidas sobre Questões Indígenas, contra o governo de Jair Bolsonaro diante dos retrocessos e as ameaças dos direitos dos povos indígenas.
Dadá é mestra em Linguística e Línguas Indígenas pelo Museu Nacional do Rio de Janeiro e coordenadora do departamento de Mulheres da Federação das Organizações Indígenas de Rio Negro (FOIRN). A denúncia, feita em conjunto com instituições em defesa dos direitos indigenas, foi motivada pelo estupro e assassinato de uma menina yanomami de 12 anos em Roraima.
Apesar de não serem divulgados, casos como esses também acontecem em São Gabriel da Cachoeira, segundo Dadá. “Eu tenho três meninas, isso também me levou a fazer a denúncia, a preocupação é muito grande e no que depender de mim vou continuar denunciando”, afirma.
No dia a dia de sua atuação no departamento de mulheres, Dadá enfrenta vários desafios. Um deles é a distância entre as comunidades que monitora, algumas só são acessadas em viagens de cinco dias de barco. Geração de renda e segurança alimentar são outros temas prioritários. A liderança conta que promovem oficinas de artesanatos, como opção para mulheres terem renda própria, e distribuem cartilhas nas línguas indígenas da região informando sobre comidas tradicionais como forma de combater o consumo de alimentos industrializados.
“Com a força da mulher, com a nossa resistência, a gente vai continuar lutando e conquistando os nossos espaços, esse é o nosso anseio”, conta a liderança.
Florinda Lima Orjeula gera renda e preserva a cultura por meio do turismo
Florinda Lima Orjeula organiza a Feira Tuyuka.
©Beatriz de Oliveira
Almoço típico, produtos locais, música e dança. Todos os domingos a Feira Tuyuka oferece aos moradores e turistas em São Gabriel da Cachoeira uma opção de lazer e compras. Uma das organizadoras do evento é Florinda Lima Orjeula. Sorridente, ela conta como o turismo de base comunitária tem se tornado uma forma de geração de renda para as famílias que vivem na comunidade.
A feira é realizada com a colaboração de todas as famílias tuyukas que vivem no local, formada em maior parte por agricultoras, Florinda é uma delas. Em 2018, ela e outras lideranças criaram a Aietum (Associação Indígena da Etnia Tuyuka Moradores de São Gabriel da Cachoeira) a fim de administrar melhor a organização da feira e demais serviços feitos pela comunidade.
Entre eles, está a parceria com escolas da região para oferecer merenda escolar regionalizada. A comunidade vende os alimentos produzidos para as unidades. Florinda conta que há mais planos para o futuro, como oferecer pacotes de turismo personalizados para os clientes: com a opção de ver apenas uma apresentação de dança ou provar as bebidas produzidas na comunidade, por exemplo.
A agricultora conta que quando começou a atuar no turismo, em 2015, era muito tímida e não se sentia à vontade para falar em público. O cenário mudou após realizar um curso de turismo, participar de eventos sobre o assunto e visitar outras comunidades indígenas que oferecem esse tipo de atividade.
O que move a liderança é a vontade de divulgar a sua cultura, não só para os de fora, mas também para as crianças e adolescentes da comunidade, de modo que as tradições não se percam. “Para que eles [jovens] continuem com a cultura, demonstrando o que a gente tem de bom, das comunidades em que a viemos”, afirma.
Janete Tariana tece sua trajetória por meio do artesanato
Janete Tariana em sua loja de artesanato.
©Beatriz de Oliveira
Nascida em comunidade do povo Kubeo, Janete Tariana chegou à região central de São Gabriel da Cachoeira sabendo falar duas línguas: wanano e tukano. Não sabia falar português, um dos empecilhos para cumprir seu objetivo no local: conseguir uma nova forma de se sustentar, já que sua família estava passando por dificuldades após a morte do pai.
Nessa jornada, mais uma dificuldade se impôs: Janete não entendia o conceito e valor das cédulas de dinheiro, já que não as usava em sua comunidade. Diante disso, trabalhou em uma loja de roupas sem receber o salário devido, até ser alertada por uma colega. A partir daí, passou a se atentar à nova realidade.
Janete conseguiu de fato se encaixar na vida na cidade ao encontrar no artesanato uma forma de renda. Lembra de ver a sua avó manuseando matérias primas da floresta para transformá-las em diferentes objetos. Procurou a Associação de Artesanatos Indígenas da Sede (ASSAI), em São Gabriel da Cachoeira, onde aprendeu a manusear essa forma de arte e também a como negociar com clientes.
Janete é do povo Kubeo.
Com os aprendizados obtidos, começou a vender os artesanatos que fazia. Hoje, tem uma loja de artesanato em sua casa e negocia a venda de produtos próprios e de outras artesãs para empresas da região sudeste. Continuou frequentando a associação para colaborar no aprendizado das frequentadoras e sentia que deveria ajudar outras mulheres que passavam por dificuldades semelhantes às que ela viveu quando passou a morar na cidade. Entende que o conhecimento deve ser compartilhado.
“Hoje eu me sinto bem feliz, no início eu era muito triste, porque pra mim não existia caminho que eu pudesse seguir, eu me sentia muito sozinha”, conta.
Verinha leva nome das mais velhas para sua luta
Verinha é coordenadora Coletivo Acadêmico Indígena da Unicamp.
©Mayara Penina
A fala tímida de Vera Lucia Moura, a Verinha, não é capaz de esconder toda a potência de suas palavras ao contar sobre a mudança de estado para frequentar uma universidade e sobre seu papel de levar para a luta diária os ensinamentos das mulheres lideranças de seu território.
Nascida na comunidade Maracajá do Alto Rio Negro, Verinha se mudou para São Paulo no início de 2022 para cursar História na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A viagem, ela conta, foi como um sonho. Nunca havia saído de seu estado, e atualmente lida com uma realidade muito diferente da que estava acostumada. Sente falta da comida, dos parentes e do clima de São Gabriel da Cachoeira.
Encontrou conforto na aproximação com outros alunos indígenas. Ela conta que são mais de 300 no total, de várias partes do país. Para reivindicar direitos e se ajudarem mutuamente criaram o Coletivo Acadêmico Indígena da Unicamp, do qual Verinha é uma das coordenadoras. “A língua [indígena] a gente não perde, quando a gente encontra um parente que fala na língua, isso nos fortalece, mata um pouco a saudade de casa”, conta.
A estudante enxerga sua caminhada como uma continuação da luta das mulheres que vivem em seu município de origem. “Elas lutam nessa questão de resistir a partir do trabalho comunitário, de sustentar seus filhos. Isso a gente aprende com nossas mães, a ter essa visão coletiva”, diz.
A escolha pelo curso de História se deu pelo gosto em saber sobre as vivências e lutas de seus parentes, além da diversidade cultural entre os muitos povos indígenas. Algo que ela vê de perto nas viagens que faz para comunidades de amigos e compartilha em suas redes sociais. Apesar do receio de usar essa tecnologia, em razão dos comentários ofensivos, Verinha entende que o celular deve ser usado como uma ferramenta de luta para as causas indígenas.