A violência do garimpo contra meninas e mulheres indígenas no Brasil

Mulheres indígenas alertam para caráter histórico e recorrente da violência sexual e apontam caminhos para combatê-la.

Por Beatriz de Oliveira

23|05|2022

Alterado em 25|05|2022

“Desde o descobrimento do Brasil a gente vê que nossas crianças indígenas foram estupradas, violentadas. Os portugueses chegaram aqui, usaram as nossas indígenas como objeto sexual para eles (…) O Brasil foi invadido e quebrou-se a liberdade do nosso povo indígena”. 

A fala é de Eleonora Pereira da Silva, defensora dos Direitos Humanos, filha de indígenas do Povo Tabajara, de João Pessoa (PB), e que conta com um extenso trabalho de denúncia de exploração sexual contra meninas nas periferias de Pernambuco. Por conta dessa atuação, Eleonora recebeu ameaças de morte e teve seu filho assassinado em 2010 por agir em conjunto com ela nesta mesma luta. 

Além de histórica, a violência contra meninas e mulheres indígenas é recorrente.“[Essa violência] foi acatada pela sociedade brasileira como algo normal e foi invisibilizada, visto que tentaram com que as questões da mulher indígena fosse uma questão simplesmente da própria comunidade”, alerta Avelin Buniacá Kambiwá, professora, socióloga, e especialista em gênero e raça. Avelin é da aldeia Baixa da Índia Alexandra, entre as cidades de Inajá e Ibimirim, em Pernambuco, e atualmente mora em Belo Horizonte (MG). 

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Eleonora Pereira tem trabalho de denúncia de exploração sexual contra meninas nas periferias de Pernambuco

©Arquivo Pessoal

O tema veio à tona nas últimas semanas com as denúncias de que garimpeiros teriam sequestrado, estuprado e matado uma menina indígena de 12 anos da comunidade Aracaçá, localizada na Terra Indígena (TI) Yanomami, em Roraima. Após isso, os 25 indígenas que compunham a comunidade desapareceram. As denúncias foram feitas no dia 25 de abril pelo presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kwana (Condisi), Júnior Hekurari Yanomami. No dia 6 de maio, a liderança afirmou que eles foram localizados. 

“O que foi relatado nos últimos dias é só a ponta de um iceberg, de uma situação de penúria que já vem se arrastando por mais de trinta anos”, afirma Avelin. “A revolta e a dor vem do descaso e invisibilidade dos povos indígenas do Brasil, de como pensar que nós não valemos nada e que uma grama de ouro vale mais do que a vida de uma criança Yanomami” relata sobre o que sentiu ao acompanhar as notícias sobre o caso. 

Segundo o relatório “Yanomami sob ataque: garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami e propostas para combatê-lo” da Hutukara Associação Yanomami publicado em abril deste ano, há relatos de garimpeiros bêbados invadindo casas e assediando mulheres Yanomamis. O estudo revelou também casos de garimpeiros oferencendo comida em troca de sexo com adolescentes. 

A ativista indígena, antropóloga e arte educadora Pietra Dolamita (Kowawa Apurinã), que atua pela demarcação das terras indígenas, aponta a responsabilidade do Estado. “Não são apenas os garimpeiros que estão estuprando e matando as crianças e as mulheres indígenas. É o Estado que está fazendo isso. É a mão do Estado que coloca todo esse peso sobre nós. Pois não existe uma proteção legal dos nossos corpos. Quando se surgem leis, elas não nos contemplam, porque as mulheres indígenas sempre foram colocadas em pautas precárias diante de qualquer movimento feminista ou de igualdade ou de relações sociais”

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Avelin Buniacá Kambiwá é professora, socióloga, e especialista em gênero e raça

©Verônica Manevy

 

Combate á violência sexual

Pietra alerta que mulheres indígenas enfrentam obstáculos ao buscar atendimento do Estado: há dificuldade de acesso a locais de denúncia e problemas com o português. Muitas não falam o idioma. “Ao procurar ajuda, muitas vezes é discriminada pelo próprio sistema”. Ela afirma ainda que as mulheres indígenas não são contempladas pela Lei Maria da Penha, legislação que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. 

Já Eleonora, comenta sobre o ensinamento recebido de que a mulher não conseguirá viver sem o homem, por ele ser o provedor da família. “Muitas delas são mortas com esse pensamento’”, diz. “Minha vó dizia: ‘minha filha, sem ele você não consegue ser nada’. E eu dizia: ‘se eu estudar, eu vou ser’”. 

Entre os caminhos para combater esse tipo de violência, Pietra acredita que é necessário aplicar a punição a partir da legislação já existente. Além de políticas de acolhimento para mulheres que passam por essa situação.

Para a socióloga Avelin, é necessário não normalizar a exploração sexual das adolescentes indígenas. O primeiro passo é denunciar casos como esse e debater sobre o assunto. “O segundo ponto é proteger as meninas e mulheres indígenas a partir das práticas que já se usa no mundo ocidental: empoderamento financeiro, formação, direito ao controle de natalidade, aos métodos contraceptivos, direito de estudar e escolher não casar jovem”.

A informação e a conscientização sobre respeito ao corpo da mulher são pilares para combater a violência sexual, segundo Eleonora. Profissionais treinados para identificar sinais de violência, envolvimento da escola, políticas públicas e conselho tutelar sensibilizado para o assunto são outros pontos citados para este enfrentamento.

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Pietra Dolamita é ativista indígena, antropóloga e arte educadora

©Andréa Maynoni

Ser contra o garimpo ilegal é defender a humanidade

No relatório já citado da Hutukara Associação Yanomami há o seguinte depoimento de uma mulher indigena para uma pesquisadora: “Os garimpeiros têm sempre uma louca vontade de transar. Quando as pessoas disseram que eles se aproximavam, eu fiquei com medo. Por isso, desde que ouço falar dos garimpeiros, eu vivo com angústia”. A pesquisa informa que de 2016 a 2020 o garimpo ilegal na TI Yanomami cresceu 3350%. 

Segundo o MapBiomas, projeto de Mapeamento Anual do Uso e Cobertura da Terra no Brasil, a Amazônia concentra 94% do total de áreas garimpadas no Brasil e cerca de 50% do garimpo ilegal ocorre em áreas protegidas.

Entre os perigos impostos pelo garimpo ilegal aos povos indígenas, Avelin cita a exploração sexual e escravização de indígenas, contaminação da agua com mercúrio, mudanças no modo de vida e inserção de álcool e drogas em suas culturas. 

“Para o Brasil como um todo, eles [garimpeiros] estão espalhando um ouro com sangue, um ouro amaldiçoado. Estão levando para população brasileira um fardo, um carma de sofrimento, um peso de estar carregando a morte do nosso povo”. 

Pietra chama atenção para uma grande rede de exploração, formada por empresas que financiam o garimpo e comenta sobre danos ambientais causados pela atividade. “Quando a gente é contra o garimpo, a exploração, a monocultura dentro dos territórios amazônicos, estamos dizendo que somos contra a extinção da própria humanidade, porque já tem pesquisas científicas que falam da necessidade de se manter a floresta em pé”. 

Avelin concorda: “A população brasileira precisa se inteirar e fazer parte dessa luta porque nós estamos protegendo a biodiversidade do planeta. Nós somos poucos e protegemos tanto a terra e protegemos tanta riqueza. O direito dos povos indígenas é o direito da mãe terra, é o direito da mulher, é o direito da criança, é o direito de um futuro para população não só do Brasil como do mundo”, conclui.