Legalmente Travesti: minha ida para a Harvard Law School

Em abril, mês que em muitas casas de Candomblé pelo Brasil se celebra o Orixá Ogum, senhor dos caminhos, escolho revelar a decisão sobre meu próximo destino: a Faculdade de Direito de Harvard para a realização do meu mestrado!

11|04|2024

- Alterado em 11|04|2024

Por Redação

Durante este um ano e meio de coluna no Nós, mulheres da periferia, tenho dedicado este espaço a reflexões sobre múltiplos temas relacionados a mulheridades diversas. Por muitas vezes, optei por contar a história e amplificar as vozes de pessoas do gênero feminino que vieram de um contexto periférico, no qual é recorrente não prestarmos atenção ou darmos o devido valor.

Na coluna de abril, mês que em muitas casas de Candomblé pelo Brasil se celebra o Orixá Ogum, senhor dos caminhos, escolho revelar a decisão sobre meu próximo destino: a partir de agosto deste ano irei para a prestigiosa Faculdade de Direito de Harvard para a realização do meu mestrado!

Para quem já assistiu “Legalmente Loira”, sim, é a instituição onde a protagonista Elle Woods vai para se graduar em direito. Também é onde “Annelise Keting” de “How To Get Away With Murder” se formou, bem como Michelle Obama e seu marido Barack. É uma honra ser uma travesti ocupando este espaço tão tradicional e de excelência.

Quando se nasce na periferia, é bem incomum conhecer pessoas que cursaram faculdade (no Brasil mesmo). Na família do meu pai, por exemplo, a minha geração, de meus irmãos e primos é a primeira a chegar ao ensino superior.

Conhecer pessoas que fizeram USP (Universidade de São Paulo) já era algo completamente distante da minha realidade. Porém, sempre tive uma mãe fabulosa que incentivou a mim e a meus irmãos a buscarem uma boa educação, uma mãe que nos dizia que éramos capazes. Além disso, tive o privilégio de não precisar trabalhar até entrar no ensino superior (fruto de muito sacrifício de minha mãe), bem como boas bolsas de estudo que foram me abrindo portas ao longo de minha jornada.

Mas hoje, formada em direito na USP e às vésperas de começar meus estudos naquela que os rankings acadêmicos intitula como “a melhor universidade do mundo”, não posso deixar de referenciar, além de minha mãe, todo o movimento de travestis e transexuais brasileiras que pavimentou o caminho para que essa conquista fosse possível.

Além de Harvard, fui aprovada em outros sete programas. Em um deles, na Columbia Law School, em Nova York, recebi a oferta para uma bolsa de Direitos Humanos concedida apenas àqueles que a Universidade considera como “os mais promissores nomes na defesa dos direitos humanos no mundo”. Isso significa que uma travesti brasileira é vista dessa forma no exterior. Que nossa luta tem tido ecos internacionais e que essas organizações de excelência nos reconhecem como referências.

É um giro epistemológico sem tamanho! Minha irmã, Maria Clara Araújo, em seu livro “Pedagogias das Travestilidades” nos mostra como o movimento de travestis e transexuais apresenta uma força pedagógica de transformar e educar a nossa sociedade. Penso que essa conquista e minha ida para Harvard é fruto disso.

Estamos coletivamente no caminho certo, produzindo saberes que fazem burburinho nos lugares mais distantes. Podemos ainda viver no país onde mais somos assassinadas e termos baixíssimas oportunidades de emprego. No entanto, devagarzinho, avançamos.

Antes nos renegavam somente às esquinas de prostituição. Agora, chegamos aos Estados Unidos para estudarmos e sermos ouvidas.

Que a transformação e a movimentação seja nossa pura substância.

Eparrey Oya!

Victória Dandara é travesti, cria da zona leste de São Paulo (SP), pesquisadora em direitos humanos, advogada transfeminista e filha de Oyá. Foi uma das primeiras travestis a se graduar em direito na USP e hoje luta não só pela inclusão da população trans e travesti, mas por uma emancipação coletiva a partir da periferia e da favela.

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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