Cotas e pessoas trans: que as universidades se pintem de Travas

Num país onde 90% da população de travestis se encontra na prostituição compulsória, a implementação de políticas afirmativas é urgente

20|07|2023

- Alterado em 27|07|2023

Por Victória Dandara

Na última semana tivemos dois projetos de lei apresentados com o objetivo de garantir uma reserva de vagas para pessoas trans e travestis no ensino superior, um pela deputada federal Erika Hilton (PSOL) e outro pela Bancada Feminista (PSOL), representada por Paula Nunes, eleita deputada estadual por São Paulo em 2022. Ambas as propostas vindo de parlamentares travestis, uma vez que o mandato coletivo conta com a participação de Carolina Iara.

Num país onde 90% da população de travestis se encontra na prostituição compulsória e onde menos de 0,02% dos estudantes de universidades federais se declaram como pessoas trans, se demonstra uma urgência em implementarmos políticas afirmativas para que essa população acesse o ensino superior.

A medida de reserva de vagas para pessoas trans e travestis já existe em algumas instituições, como a Universidade Federal do ABC, a Universidade Federal do Sul da Bahia, a Universidade Federal da Bahia e, mais recentemente, na Universidade Federal do Rio Grande.

Nesse último caso, é interessante analisar como a política afirmativa foi alvo de ação judicial por grupos cisgênero, alegando suposta “desigualdade” no processo seletivo, o que seria “inconstitucional, ilegal” e todos os demais argumentos que grupos conservadores se utilizam quando querem garantir seus privilégios e se opôr à propagação da equidade.

A verdade é que cotas assustam muita gente, sobretudo porque colocam na mesa a pergunta central: “quem vai levantar da cadeira para uma travesti sentar?”, pois inevitavelmente determinadas vagas serão destinadas para o grupo de pessoas trans e, consequentemente, retiradas do grupo cis, que já possui suas vagas reservadas em 99,98%.

Somente o interesse de garantir uma supremacia cisgênera é justificável para se opor ao modelo de cotas, que se propõe a reservar somente 5% das vagas para a população trans. Na prática, num universo de 60 posições em determinado curso, apenas 3 se destinariam a travestis e transexuais.

Victória Dandara

Apesar de poucas vagas, fato é que as medidas afirmativas são comprovadamente efetivas para a redução das desigualdades. Basta analisarmos o efeito das cotas étinico-raciais, que fez saltar de 31% o número de negros e indígenas nas faculdades em 2001, para 52% na atualidade, implicando em um aumento de até 350% dessas pessoas de conseguirem salários maiores devido ao fato de terem um diploma. Imaginemos essa transformação para a população travesti, que hoje sobrevive majoritariamente do mercado sexual?

Evidente que não basta colocar esses corpos divergentes nas Universidades construídas por e para a cisgeneridade sem nenhum apoio. É necessário que políticas de inclusão e permanência para pessoas trans e travestis sejam efetivadas.

Em 2021 a Coletiva Xica Manicongo da USP denunciou junto à Defensoria Pública de São Paulo e ao Ministério Público Estadual o fato de mais da metade dos estudantes trans da Universidade relatarem ter sofrido transfobia e desrespeito ao nome social. Infelizmente, os espaços acadêmicos não foram pensados para nós.

No entanto, é chegada a hora das Universidades transicionarem. Que nossos corpos, saberes e capacidades ocupem os muros academicistas cisgêneros e os transcendam para sonharmos novos amanhãs possíveis. Que se hoje clamamos pela urgência de acessarmos o ensino superior, amanhã possamos chegar aos programas de mestrado, doutorado, pós-doutorado e tudo o mais que sonharmos. Que as Universidades se pintem de Travas.

Victória Dandara é travesti, cria da zona leste de São Paulo (SP), pesquisadora em direitos humanos, advogada transfeminista e filha de Oyá. Foi uma das primeiras travestis a se graduar em direito na USP e hoje luta não só pela inclusão da população trans e travesti, mas por uma emancipação coletiva a partir da periferia e da favela.

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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