Helena Theodoro: a força de Iansã em defesa da cultura afro-brasileira

Nascida em 1943, no Rio de Janeiro, a tijucana é referência na pesquisa sobre cultura negra, carnaval, samba e religiões de matriz africana

Por Semayat S. Oliveira

21|12|2022

Alterado em 22|12|2022

Em agosto de 2022 a comedoria do Sesc Pompeia, em São Paulo (SP), reuniu artistas e pensadoras do samba vindas de diferentes estados do país como Minas Gerais, Rio de Janeiro, e Paraná, para homenagear Helena Theodoro, uma das principais intelectuais pesquisadoras do assunto.

A programação “Massembas de Ialdês: celebrando o legado de Helena Theodoro”,  aconteceu em seis encontros, durante três semanas seguidas, e integrou o “Dossiê da Diáspora – Presença e resistência negra no mundo”, iniciativa  do Sesc Pompeia que, a partir de um olhar para a diáspora africana, apresenta uma série de ações evidenciando a influência do povo negro nas ciências, cultura e artes ao redor do mundo.

Maitê Freitas, pesquisadora, jornalista e produtora cultural, foi a curadora responsável pela realização do encontro. A dinâmica aplicada ao evento, chamada samba-conversação, foi idealizada por ela e tem origem no projeto Samba Sampa, nascido em 2012 como uma forma de disseminar, refletir e reunir um acervo vivo e orgânico do samba. 

“Eu vi a palavra “massembas” no dicionário bantu do Nei Lopes há muitos anos”, conta a pesquisadora. “Samba, semba, dissemba e massemba fazem parte de uma mesma raiz, o mesmo tronco linguístico, e trazem a ideia de encontro. Então, temos samba como reunião, a dissemba como essa disseminação e a massemba como esse lugar de encontro”, explica Maitê.

“Massembas de Ialodês” é, portanto, a união do bantu com a palavra em yorubá Ialodê, que se refere às mulheres que ocupam posições de liderança em suas comunidades. “Então, é um encontro de mulheres sábias”, explica a pesquisadora. 

Helena Theodoro recebe as honras do encontro por ser referência na pesquisa sobre cultura negra, carnaval, samba e arte, experiências religiosas africanas e afro-brasileiras e relações raciais. Ela foi a primeira mulher a tratar o samba como ciência e filosofia dentro da universidade e abriu os caminhos para aquelas que vieram depois. 

Atualmente, é professora do Programa de Pós-graduação em História Comparada, leciona em uma turma de Graduação de História, e integra a Coordenadoria de Experiências Religiosas Tradicionais Africanas, Afro-brasileiras, Racismo e Intolerâncias Religiosas, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Além disso, é Conselheira do Fundo ELAS, o único fundo brasileiro que investe na promoção do protagonismo das mulheres.

Sua história pessoal e acadêmica, reflete a luta da população negra no Brasil e a busca incessante pelo respeito à cultura e às tradições de matriz africana. Neste texto, você conhecerá mais sobre Helena, a menina dos olhos de Oyá, que divide sua ventania e  sabedoria por onde passa. 

*Este perfil foi construído com base em uma entrevista exclusiva, e também nas falas de Helena durante os encontros.

Família: a herança mais bonita

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As festas nos quintais estão entre as melhores lembranças de Helena

©Arquivo Pessoal

Uma criança rodeada de amor, música, festa e samba. Aprendeu a amar a cozinha dos avós como um espaço sagrado e a enxergar uma escola de samba nos quintais da família. Por onde olhava, via o símbolo da Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro, fundada em 1953. Fiel ao legado de sua família, a menina Helena Theodoro cresceu e se tornou uma das principais intelectuais do samba no Brasil.

Nascida em 1943, no Rio de Janeiro, a tijucana via a avó costurar as roupas das baianas do Salgueiro para as próprias tias desfilarem; suas primas eram passistas; um dos seus primos, Dauro Ribeiro, foi premiado pela composição do samba-enredo do Salgueiro “O segredo das Minas do Rei Salomão”; um dos seus tios era Antônio de Paula Filho, mais conhecido como Dondon, zagueiro do Andaraí Atlético Clube, clube carioca extinto em 1970.

Léa de Araújo Theodoro, sua mãe, foi uma artista, poeta, além de intérprete de inglês por formação e trabalhava na Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, ou apenas Correios. Seu pai, Jurandir Theodoro, era membro do Partido Comunista, doutor em economia e diretor do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS, atual INSS). Ele foi um dos responsáveis por projetos que defendiam a implantação de hospitais públicos pelo país.

Filha única, a decisão do casal por não ter mais filhos e/ou filhos foi estratégica: “Eles diziam preferir assim para me oferecerem uma boa condição de vida. Então, eu tinha um teto sobre a minha cabeça, comida para comer e a chance de visitar teatro e conhecer orquestras”. De política à música clássica, sua maior herança foi o afeto, a educação e uma profunda entrega à cultura afro-brasileira.

“Meus pais me criaram com uma consciência muito grande”, lembra. “Então, eu tive uma infância atípica para a comunidade negra. Além de ter uma condição digna de vida, eu tinha pessoas que lutavam contra um sistema que oprimia um grupo e que enfatizava a normalidade de privilégios para o outro”.  

Um dos conselhos que recebeu do pai foi dar o “pulo do gato”. Ele dizia para ela aprender  tudo o que os brancos sabem sem deixar de manter suas tradições negras e indígenas. “Assim, você estará à frente, porque saberá tudo o que eles sabem, mas eles não saberão tudo o que você sabe”, conta. Seguindo a orientação à risca, aos 15 anos conversava com ele sobre Marcel Proust, famoso escritor do modernismo francês.

No campo político-social, sua proximidade com os movimento negro organizado foi natural. “Meus pais já eram militantes. Por isso, sempre reforço a grande importância das famílias negras terem consciência da sua beleza, da sua história”, diz. Juranda, como seu pai era carinhosamente chamado, e Leínha, forma amorosa de se referir à mãe, fizeram parte da fundação do Renascença Clube, na década de 50, um espaço para a convivência de pessoas negras.

“Mamãe era amiga de Léa Garcia [atriz]. E eu, desde pequena, acompanhei o Teatro Experimental de Negro [projeto idealizado pelo escritor, ator e ativista Abdias do Nascimento] ”. Essa influência fez com que Helena acompanhasse a luta por direitos humanos no cenário nacional e internacional.

Ela se lembra de quando Rosa Parks, ativista negra norte-americana, recusou-se a ceder seu assento para um homem branco durante o regime segregacionista em 1955 no Alabama. A prisão de Angela Davis, em 1970, desencadeada na massiva e internacional luta por sua liberdade, é outra memória importante na sua vida. “Panteras Negras, Martin Luther King, a luta pela libertação dos países africanos nos anos 70 e pelos direitos humanos sempre me envolveu muito”.

Consciente da herança deixada por seus pais, Helena diz sentir profundamente as palavras de seu pai. “Ele dizia: ‘nós precisamos dar a oportunidade para toda a comunidade preta de ter o que você teve’”, relembra. Este era um alerta constante, para que a filha soubesse que o teto que a acolheu e a chance de conhecer tantas coisas não era algo comum para uma pessoa negra. 

Por isso, o acesso também veio com uma responsabilidade: não deixar de valorizar a história e a tradição do seu povo preto e indígena, e compreender que o potencial dessa comunidade, com sua própria cultura, é enorme. “Eu tinha uma responsabilidade muito maior como uma criança negra. Porque a maioria vivia nas favelas e não tinham a chance que eu tive de ter comida, estudo e uma família com afeto”.

O samba, a carreira e uma viagem para si mesma

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“No momento em que estou em um barco dentro do terreiro, estou voltando ao ponto de onde vim”, diz Helena

©Jessyca Alves

Amante do piano, assim como foi sua mãe, estudou o instrumento por 11 anos. Essa habilidade foi sua porta de entrada na Rádio MEC, a primeira rádio do Brasil, no ar desde 1923. A princípio, sua função era contribuir na programação musical, mas, aos poucos, conquistou novos espaços. Na década de 60, nos idos dos seus 20 anos, foi contratada pela rádio para fazer reportagens, chegou a atuar como redatora, produtora e apresentadora de diversos programas. 

Dois deles foram criados por Helena: “Com o samba na palma da mão” e “Origens”. No primeiro, entrevistou e deu visibilidade para artistas negros brasileiros que ficavam de fora das programações da época, viciadas em músicas internacionais. “Foi quando fiquei muito amiga do Martinho da Vila, Jorge Aragão e todo o pessoal artístico”. A essa altura, já estava casada com Nei Lopes, sambista, escritor, historiador e compositor. A união aconteceu em 1968.

“Com o programa tive o prazer de levar uma mulher negra maravilhosa a gravar em um estúdio pela primeira vez, essa mulher se chamava Dona Ivone Lara”, diz com um sorriso largo no rosto. Já no “Origens”, abordou aspectos históricos do negro no Brasil e em Africa e entrevistou personalidades do movimento negro, como Lélia Gonzalez, Beatriz do Nascimento, Carlos Alberto Medeiros, Muniz Sodré e Joel Rufino. 

Em um país fundado no apagamento das pessoas que foram escravizadas, Helena ressalta que o samba cumpre o papel de cantar, tocar e reconstruir essa conexão ancestral.

“O samba nos deu Zumbi dos Palmares, Maria Felipa, Tereza de Benguela, Xica da Silva e a possibilidade de desvendar a nossa história. E nos faz entender que se andamos em ruas asfaltadas, se temos geladeira e uma série de tecnologias do ouro e da prata, tudo é conhecimento que vem de África”, reforça Helena. 

Ao chegar à universidade, levou consigo toda essa bagagem e juntou com os conhecimentos que adquiriu em longos anos de estudos. Em 1967, formou-se em Ciências Jurídicas e Sociais na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e, em 1970, concluiu uma segunda graduação, em Pedagogia. Sua pós-graduação foi em Tecnologia Educacional na Alemanha, pela Fundação Konrad Adenauer em 1973 e concluiu seu mestrado em Educação em 1978.

O título de doutora pela Filosofia na Universidade Gama Filho chegou em 1985, tendo sido a primeira mulher negra a conquistar este título e também a primeira intelectual brasileira a ter desenvolvido uma tese com base na filosofia africana. No trabalho, intitulado “O negro no Espelho”, a autora investiga a “ideologia do Axé” e destaca suas implicações morais e possibilidades civilizacionais.

Além das produções acadêmicas, seus pensamentos também escoaram em forma de literatura. Em 1996, publicou o livro “Mito e Espiritualidade: Mulheres Negras”, que se aprofunda no papel das mulheres para preservar as tradições africanas e organizar as comunidades negras no Brasil. 

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A atriz e dançarina Debora Marçal faz uma intervenção em homenagem à Iansã e Helena Theodoro

©Jessyca Alves

Em 2009, lançou “Iansã: rainha dos ventos e da tempestade”, abordando a história das religiões de matriz africana. Em “Os Ibejis e o Carnaval”, conta histórias do carnaval para as crianças. Seu último lançamento, de 2018, foi a biografia “Martinho da Vila reflexos no espelho”, com mais de 30 anos de pesquisa e convívio do artista. 

Sem se afastar do samba e nem do seu quintal do coração, o Salgueiro, Helena foi uma das autoras do samba-enredo “Resistência”, ocupando a Marquês de Sapucaí no carnaval de 2022. Cada letra era um mergulho na cultura negra da cidade do Rio de Janeiro e na luta por sua sobrevivência desde a escravidão.

“Nesse processo eu quis mostrar a resistência com os quilombos, com as irmandades religiosas que inventam a filantropia preta, com os grupos de reggae, de afoxé, o hip hop e as diferentes formas de apresentação da comunidade preta que tem diferentes maneiras de dizer que somos diversos”, detalha a pesquisadora. 

Longe do discurso meritocrático, Helena faz questão de compartilhar esse acúmulo de frutos e conhecimento com quem veio antes, evidenciando como a caminhada só acontece se alguém abrir a trilha. “Tenho consciência de que esse não é o meu legado, é o legado de toda a minha família, do Rio de Janeiro, das comunidades da escola de samba que me antecederam e batalharam muito. Se eles não tivessem resistido, a gente não estaria aqui”.

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“Nós temos um passado incrível e precisamos preservar o nosso futuro”

©Jessyca Alves

Um dos lugares que aquece e recarrega as energias de Helena é o terreiro. A família da sua mãe era da Umbanda, enquanto seu pai acreditava que “a religião é o ópio do povo”. Ainda assim, o Candomblé abraçou seu caminho e a pegou pela mão. 

“A partir do momento em que entrei em uma comunidade de terreiro, eu passei a ver o rito, o movimento, a batida dos tambores, a sentir a comunicação com outras pessoas e a entender que eu estava em um barco”, descreve, lembrando do momento da sua iniciação em orixá, como filha de Iansã ou Oyá. “Foi quando parei para pensar e lembrei que nós viemos para cá de barco. No momento em que estou em um barco dentro do terreiro, estou voltando ao ponto de onde vim. Em uma viagem de mim para mim mesma”. 

A trajetória de Helena mostra que ela vive o que escreve e age com base no que aprendeu em casa: aprender o que o branco sabe, sem abandonar suas raízes. O conselho que ela nos deixa é a importância de resguardar a memória do nosso povo: “Quem não tem passado, perde o seu presente e não constrói futuro. Nós temos um passado incrível e precisamos preservar o nosso futuro, que são as nossas crianças. Cada criança que nasce, é um ancestral que retorna”.