‘Estamos fazendo tudo errado, não aproveitamos nosso melhor: o SUS’

Epidemiologista Maria Amélia Veras traz uma análise do combate à pandemia no Brasil. Para ela, um dos maiores erros foi não fazer uso do SUS.

Por Carolina Messias

25|03|2021

Alterado em 25|03|2021

Estamos vivendo o pior momento da pandemia de coronavírus no Brasil. Nesta quarta-feira (24), o país bateu a triste marca de 300 mil mortes por Covid-19, e voltou a registrar um número que chama atenção para o ritmo acelerado no contágio pela doença. Foram 90.504 novos casos confirmados, o segundo maior registro em um dia até aqui -atrás apenas do no dia 17/3, quando chegou a 90.830.

O Observatório Covid-19 BR, um dos maiores coletivos de cientistas criados no país para subsidiar o poder público na resposta à pandemia, fala agora não apenas em “catástrofe sanitária”, mas também “humanitária”.

Para comentar a situação e debater os rumos da crise, o Nós, mulheres da Periferia conversou com a epidemiologista Maria Amélia Veras, mestre e doutora em epidemiologia e membro do Observatório COVID-19 BR.

Confira!

Nós, mulheres da periferia: Entrando no segundo ano de pandemia, já podemos avaliar medidas efetivas que tomamos enquanto país e quais não foram tomadas. Quais medidas contra a Covid-19 deveríamos ter tomado em março de 2020?

Maria Amélia: Passamos um ano inteirinho tomando as medidas tardiamente, de maneira tímida e com uma guerra de comunicação muito grande, que dificulta a adesão. Quando as curvas estavam em crescimento exponencial pela primeira vez, já tínhamos visto nos outros países como China e Itália, que o que ajudou a conter as contaminações foram as medidas de distanciamento físico. Demoramos para adotar, e quando adotamos, nunca se reforçou. Depois houve dúvidas sobre a importância da transmissão através de via respiratória e o uso de máscara demorou a ser reforçado.

Além  disso,  outra questão super importante é que quando você tem mais da metade da população economicamente ativa vivendo na informalidade ou trabalhando em serviços considerados essenciais, era necessário ter assegurado condições para essas  manterem o distanciamento físico. Como que eu fico em casa se eu dependo todos os dias [do meu trabalho] para que minha família coma? Então, o Auxílio Emergencial veio tarde e insuficiente depois de muita batalha.

A gente está fazendo tudo errado. A gente não aproveitou o que tínhamos de melhor que era o Sistema Único de Saúde (SUS). Não conseguimos fazer o uso desse sistema.

Nós: Os professores não foram priorizados durante a primeira fase vacinação e algumas escolas voltaram a funcionar com capacidade reduzida. Como você os impactos desta questão para as crianças da educação básica e os demais profissionais que trabalham na Educação?

O estado de São Paulo vai vacinar policiais e professores no começo de abril. O anúncio foi feito pelo governador de SP, João Dória, na manhã desta quarta-feira (24). Ao todo, 180 mil profissionais da segurança pública serão vacinados no dia 5 de abril. Já para os professores e trabalhadores da educação pública e privada com idade acima dos 47 anos, SP inicia a vacinação no dia 12 de abril. Nesta primeira fase, 350 mil profissionais que atuam da Educação Infantil ao Ensino Médio receberão a primeira dose da Coronavac.

Maria Amélia: A primeira questão a se dizer é: quando você tem um cobertor curto, você sempre descobre uma parte do corpo: puxa para cobrir o pé e descobre a cabeça. Ter que escolher quem vacinar já é uma tragédia. Para mim, uma das coisas mais difíceis da pandemia foi decidir fechar as escolas. Eu sou médica, mas na maior parte do tempo sou professora e a gente sabe o valor da educação, em todos os níveis e em especial para crianças e adolescentes e em especialíssimo aos pais que precisam deixar as crianças na escola para trabalharem. Muitas vezes, a escola  é uma fonte de alimentação saudável e de desenvolvimento.  Discutimos pouco sobre a reabertura das escolas condicionadas ao programa de testagem, de vacinação, de rastreamento de contatos. Eu vi recentemente um programa de reabertura de escolas na Catalunha, na Espanha, em que eles escolheram, por meio de um acordo com a comunidade e os docentes,  que as escolas iriam abrir. Todo mundo foi testado, as escolas tinham condições de ventilações adequadas, mediram a quantidade de gás carbônico nas salas para saber se estava ventilando o suficiente, todo mundo de máscara e testados. Foram criadas as condições para a retomada de uma atividade tão importante e não vimos isso acontecer no Brasil, pelo menos na grande maioria dos municípios.

NÓS: Como você avalia que está sendo encaminhada as decisões sobre abertura e fechamento das escolas?

Maria Amélia: A questão das escolas é uma questão controversa da sociedade. Eu não tenho dúvida que não deveria abrir bar, restaurante e casa de show e eu entendo perfeitamente sua importância, há artistas que vivem dessa atividade econômica. Qualquer coisa que fecha, compromete alguém. Agora, quais foram  as condições criadas para que as escolas fossem abertas e permanecessem abertas?  Essa é  a grande questão.  Porque se você  perguntar genuinamente quem é a favor da escola fechada, ninguém vai concordar. Então, quando a gente fala “não deve abrir” estamos olhando para um risco que se sobrepõe ao benefício. Se é que a gente consegue falar do benefício, que é  intangível, a gente não consegue mensurar.  Não são decisões simples e eu não acompanho no detalhe a preparação da educação, o que eu sei é que as escolas não detém condições adequadas de ventilação nem fora da pandemia.  Poderiam ter aproveitado um ano inteiro das escolas fechadas para olhar para esses aspectos, que já eram de conhecimento, Já está claro a importância de ambientes bem ventilados.

Então, se existia um plano de abrir as escolas em 2021, tinha que já ter cuidado anteriormente.

NÓS: Como você avalia o andamento da campanha nacional de vacinação?

Maria Amélia: Tem o problema de não ter vacina suficiente e ter que escolher os grupos, isso a gente já falou um pouco. Estou vendo que está funcionando de maneira adequada, os grupos prioritários estão conseguindo ser vacinados e essa é uma atividade muito importante que a gente tem que valorizar muitíssimo. Tem muita fake news acusando a vacina de diversas coisas, que comprometem os programas de outras vacinas, que já existem e foram muito importantes. O Brasil sempre fez isso bem e o SUS sabe organizar isso muito bem. Até onde eu tenho visto e lido a respeito, em São Paulo, a disponibilização e distribuição da vacina tem corrido bem.

NÓS: O estado de São Paulo entrou em fase emergencial (antes chamada de fase roxa) da quarentena até o dia 30 de março. Como você avalia que podem ser os efeitos desta medida? 

Maria Amélia: É difícil prever. Se a gente pensar, nunca nesse país foi realizado de fato um lockdown. A gente implementou algumas medidas, fez restrições, mas não fez por completo. Quando foi feita a restrição máxima no ano passado, significa que a gente fechou até 60% das atividades e causou impacto de diminuir a circulação de pessoas em transportes coletivos, nas vias, vários indicadores  mostraram melhoras.  E não é isso que estamos vendo agora, há uma atividade intensa de circulação. Estamos sempre há um passo atrás repetindo o mesmo erro desde sempre,  porque agora nós estamos com maior número de casos diários, maior número de mortes desde quando começou essa pandemia e se compararmos o grau de fechamento do ano passado com o grau de fechamento agora, é menor. Estamos numa situação mais grave e fechado menos. É difícil prever como isso vai ser.

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