A luta pela cannabis medicinal teve início com mulheres brancas de classe média, mas ao longo dos anos mulheres periféricas têm liderado iniciativas do meio
Reportagem: Beatriz de Oliveira
Edição: Karoline Miranda e Alice de Souza
Atualizado em 01|08|2024
“A AbraRio nasce de uma mãe negra e favelada. Eu nunca tive nada para investir, a não ser o meu tempo e meu amor”. A fala é de Marilene Oliveira, mais conhecida como Marilene Esperança, criadora e presidente da associação de cannabis medicinal AbraRio, em Niterói (RJ).
O que começou como uma luta para adquirir tratamento com uso de maconha ao filho se expandiu para uma associação que atua com a oferta de óleo de cannabis, auxílio à consultas médicas para prescrição de tratamentos e divulgação de informações sobre o assunto. Atualmente são 3 mil famílias atendidas e 23 trabalhadores atuando na organização.
Na terceira e última reportagem do especial “Empreendedoras da Maconha”, te contamos histórias de mulheres que lideram iniciativas voltadas à democratização do uso medicinal da maconha e, a partir disso, se inserem no mercado canábico.
Segundo o Portal Sebrae, as associações são “organizações que têm por finalidade a promoção de assistência social, cultural, representação política, defesa de interesses de classe e filantropia”. Não possuem fins lucrativos e são mantidas por meio de “contribuições dos sócios ou cobrança pelos serviços prestados, contratos e acordos firmados, doações etc”.
Segundo o Anuário da Cannabis Medicinal no Brasil, realizado pela consultoria Kaya Mind, em 2023 haviam 137 associações desse tipo no país. Mas é a indústria farmacêutica que domina o ramo: são 516 empresas de importados e 276 farmácias de cannabis medicinal.
Ainda de acordo com o levantamento, “há chances significativas de que o mercado ultrapasse a marca de 1 bilhão de reais em 2024, estabelecendo-se definitivamente como um setor relevante dentro da área da saúde no país”.
Marilene Esperança é mãe de Lucas, que sofre de Síndrome de Rasmussen, doença inflamatória que acomete o cérebro e causa epilepsias. Moradora da periferia de Niterói (RJ), se mantinha com o valor de um salário mínimo recebido pelo Benefício de Prestação Continuada da Lei Orgânica da Assistência Social (BPC -Loas), pago pelo governo federal a pessoas com deficiência e famílias de baixa renda.
Com a ajuda da associação Abrace Esperança, localizada em João Pessoa (PB), Marilene conseguiu o óleo de cannabis para Lucas, que obteve melhoras expressivas com o novo tratamento. Foram também integrantes da Abrace que incentivaram a fluminense a abrir a própria associação.
O óleo de cannabis ou óleo de canabidiol (CBD) é extraído da planta Cannabis sativa (maconha).
“O meu filho só teve acesso a cannabis porque existia uma associação, se eu fosse depender de importação ou de farmácia, o Lucas não teria tido acesso, eu não tinha condições financeiras para arcar com o tratamento. E entendi que essa era a realidade de milhares de famílias, por isso resolvi fundar [uma associação]”, pontua.
Em conjunto com a Abrace, Marilene recebeu apoio jurídico e financeiro para fundar a AbraRio, em 2021. Entre os primeiros passos, estavam criar um CNPJ, registrar um estatuto e alugar um espaço.
Em novembro de 2023, conseguiram a autorização da Justiça para realizar a pesquisa, cultivo, plantio, colheita e manipulação de cannabis. Nesse momento, contrataram formalmente os colaboradores que até então trabalhavam como voluntários e recebiam ajuda de custo.
A plantação ocorre em uma fazenda em Itaboraí (RJ). A produção mensal é de 2 mil plantas e 10 litros de extrato de cannabis. Os óleos são distribuídos para associados localizados em 17 estados do país como tratamento de doenças e transtornos variados, como Alzheimer, Parkinson, autismo e ansiedade.
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Ela afirma que o maior público da associação são as mães periféricas atípicas. Os produtos da AbraRio custam em torno de R$ 270 e o número de associados que recebem isenção do valor do óleo já está no limite.
Marilene destaca que esse valor ainda é inacessível para muitas mulheres periféricas que procuram a associação; por isso, sua luta também se estende para o estímulo de políticas públicas a fim de que o governo forneça esse tratamento de forma gratuita, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS). Cidades como São Paulo (SP), São Vicente (SP), Salvador (BA) e Búzios (RJ) tem legislações e projetos que preveem a promoção de tratamentos de cannabis medicinal pelo SUS.
Mesmo atuando dentro da legalidade, a associação de Marilene enfrenta os estigmas em torno da maconha no cotidiano. Ela conta que recentemente a fazenda da organização foi invadida por policiais militares, que apontaram armas para os trabalhadores do local dizendo que a plantação era ilegal.
Ao chegar no local, a presidente da associação mostrou a sentença que os permitia ter a plantação de maconha, mas isso não convenceu os policiais e todos foram à delegacia. Marilene só foi liberada após entrar em contato com um deputado que conhecia.
“É uma sensação de muita insegurança e ainda tem a questão do preconceito quando tem uma mulher negra e periférica à frente disso, porque as pessoas ainda acreditam que os melhores gestores são os homens brancos”
Marilene Esperança
No Complexo do Alemão, na zona norte do Rio de Janeiro (RJ), Rafaela França luta por direitos de crianças com deficiência e lidera o Núcleo de Estimulação Estrela de Maria (NEEM), que realiza o acolhimento às famílias atípicas da favela e oferece cannabis para uso medicinal.
Ela é mãe de três filhos neuroatípicos. A mais nova, Maria, de cinco anos, tem Transtorno do Espectro Autista (TEA) com alto nível de dependência e foi quem motivou a criação do NEEM.
“A gente, aqui na favela, precisou fazer uma campanha e juntar ativistas para o tratamento da Maria, porque era muita grana e a gente não tinha condições. Quando chegamos à cannabis, era surreal de caro, fora da nossa realidade, mas tivemos que importar. Mediante a toda essa dificuldade, eu prometi que nenhuma criança da favela iria passar pelo que passei com a Maria para conseguir o óleo”, conta.
Com o patrocínio de uma empresa dos Estados Unidos, a organização atende famílias em mais de 120 favelas do estado do Rio de Janeiro e 7 favelas em outros estados. Realizam a doação do óleo canabidiol, acolhimento médico, apoio psicológico e apoio para segurança alimentar.
Rafaela França lidera o Núcleo de Estimulação Estrela de Maria (NEEM)
©arquivo pessoal
Criada em 2021 e regularizada com a obtenção de um CNPJ em 2023, a organização conta quatro trabalhadores fixos, além de parcerias com outros profissionais. Segundo Rafaela, manter as atividades com a promoção do uso medicinal da maconha em um ambiente de favela não é simples.
“A ONG está em um lugar neutro, que não tem tráfico de drogas. Mas sabemos que o Rio de Janeiro é tomado por várias facções e não podemos deixar de atender crianças que moram nesses locais”, diz, pontuando que “há crianças que estão bem com o uso do óleo e de repente param de responder ao tratamento devido ao barulho das operações policiais [que ocorrem na região]”.
A ativista também vive outro dilema relacionado à maconha no âmbito familiar, com um parente sendo aliciado para o tráfico de drogas. “Sabemos qual o final disso: o tráfico leva para a morte ou cadeia. Estou passando por dias bem difíceis para segurar essa barra”.
Segundo o estudo “Custo de bem-estar social dos homicídios relacionados ao proibicionismo das drogas no Brasil”, feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), um terço das mortes violentas ocorridas no país em 2017 foi consequência da guerra às drogas.
O conceito de guerra às drogas surgiu na década de 1970 nos Estados Unidos, como ferramenta do governo para justificar a militarização a fim de combater o narcotráfico; tratando o tema a partir de uma visão proibicionista, em que as drogas seriam a causa para aumento de violência na sociedade. No entanto, desde a implantação de políticas alinhadas à guerra às drogas no Brasil, na década de 1980, o resultado é o assassinato de pessoas negras e pobres sem uma efetiva diminuição do narcotráfico, como aponto este estudo da Iniciativa Negra Por Uma Nova Política Sobre Drogas.
Na favela Roda de Fogo, na zona oeste de Recife (PE), Elaine Cristina iniciou sua luta pela democratização do acesso à cannabis medicinal e pelo autocultivo a partir da busca por tratamento ao filho João Pedro, que sofre de hemimegalencefalia, uma doença rara caracterizada por uma má formação cerebral. Essa trajetória se estendeu à política institucional, com Elaine alcançando o cargo de vereadora na capital pernambucana.
Após verificar os efeitos positivos do uso do óleo de cannabis no tratamento do filho, Elaine se juntou a outras mães atípicas e criou o coletivo Mães Independentes, em 2015. Atualmente com atividades paralisadas por falta de tempo das participantes, o grupo se reunia para plantar, colher e fazer a extração do óleo da maconha, mesmo não tendo autorização para isso. “Praticamos a desobediência civil, cultivando sem direito ao cultivo, correndo riscos, mas se uma caísse, todas iriam na delegacia para defender”, diz.
Elaine Cristina luta pela democratização do acesso à cannabis medicinal
©reprodução Instagram/@elainecristinapsol
Em 2019, Elaine conseguiu um habeas corpus para cultivar maconha destinada ao tratamento do filho. Ao longo dos anos, outras mães do coletivo também conquistaram a medida judicial que as protege de serem presas por plantar cannabis.
Sobre a atuação do coletivo, a vereadora complementa: “a gente acolhia outras famílias, explicava como conseguíamos cultivar e mostravamos o que a maconha traz de benefício, para que pudessem chegar ao HC [habeas corpus]. Quando começou a luta da maconha medicinal aqui no Brasil, era algo para quem tinha condições financeiras, para quem importava. Mas a gente não queria importar, a gente queria ter o cultivo caseiro”.
Por volta de 2014, grupos de mães de filhos com doenças graves que poderiam ser tratadas com cannabis medicinal se mobilizaram para reivindicar o reconhecimento do medicamento. Elas lutaram pela liberação da importação e também pela autorização judicial para cultivar em suas casas. O movimento era protagonizado por mulheres brancas de classe média, como é contado no artigo “Mulheres e Cannabis: resistência nas formas de fazer política”, de Monique Prado.
A luta pelo direito de cultivar e pelo fornecimento de cannabis medicinal no SUS também passa pelo combate ao lobby farmacêutico. “Essa indústria farmacêutica está ganhando em cima da nossa dor, cobrando valores absurdos como um salário mínimo, por exemplo”, afirma.
Segundo o Anuário da Cannabis Medicinal no Brasil, os preços nas associações e nas farmácias são discrepantes. Enquanto nas primeiras os valores variam de R$35 a R$1.080, nas segundas vão de R$120,99 até R$5.316,79. O levantamento apontou que 30 empresas detinham 80% do mercado no 1º semestre de 2023.
Em sua trajetória como política e ativista, Elaine atua também para desmistificar os estigmas em torno da maconha e mostrar que se trata de uma “planta”. “Não existe separação entre maconha recreativa e medicinal. Precisamos desmistificar esse preconceito e acabar com essa guerra às drogas que só mata os nossos na periferia”, diz.
“Só vamos conseguir avançar quando todos entenderem que maconha é uma planta”
Elaine Cristina
Na Vila Formosa, zona leste de São Paulo (SP), Maria Aparecida Carvalho, mais conhecida como Cidinha Carvalho, lidera a Cultive – Associação de Cannabis e Saúde. Sua luta pela democratização do acesso à cannabis medicinal começou com a busca por tratamento de sua filha Clara, diagnosticada com síndrome de Dravet, forma rara de epilepsia caracterizada por convulsões recorrentes.
“Eu estou na cena canábica por causa da minha filha, entrei pela dor e permaneço pelo amor e por tudo que ela luta proporciona”, diz e acrescenta “a guerras às drogas tem alvo, cor, classe e CEP; eu não enxergava nada disso antes de entrar nessa causa”.
Em 2013, Cidinha tomou conhecimento do caso da americana Charlotte Figi, que sofria da mesma síndrome que sua filha e obteve melhora na qualidade de vida com a cannabis medicinal. A partir daí, passou a pesquisar sobre o assunto e estava decidida a conseguir o mesmo tratamento para Clara.
Criou uma página na rede social Facebook para compartilhar sua busca pelo tratamento com maconha e, com o crescimento dessa comunidade, foi incentivada a abrir uma associação destinada ao tratamento alternativo.
No ano de 2021, Cidinha obteve autorização da Justiça para cultivar maconha pela associação Cultive. A produção ocorre em sua casa, e os únicos envolvidos são ela e o marido. Cerca de 200 pacientes são atendidos pelo óleo produzido na organização.
“Embora a Cultive seja uma associação, também funciona como uma empresa, mas os lucros são voltados para a própria associação”, pontua.
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Recentemente, Cidinha deixou seu emprego em um banco e passou a se dedicar exclusivamente à Cultive. Ela estuda a possibilidade de receber um salário e ampliar as atividades da associação, de modo a atender quem está na fila de espera.
“Eu, branca, que não moro na favela, tenho o privilégio de ter um habeas corpus para cultivar o remédio da minha filha e para os pacientes da associação. O que é diferente para uma mulher negra que mora numa favela que tenha um habeas corpus, ela não vai ter a mesma liberdade que eu tenho na minha casa, até porque ela vai continuar sendo alvo da polícia”, pontua.
Cidinha acrescenta, sobre o machismo presente no mercado canábico: “é um mundo muito machista, onde nós, mulheres, estamos entrando com tudo, mas ainda há muitas barreiras, muitos homens que acham que mandam na causa. Mas ninguém é protagonista, a única protagonista é a própria maconha”.
Este trabalho jornalístico é publicado com o apoio do Fundo para Investigações e Novas Narrativas sobre Drogas, convocado pela Fundación Gabo em parceria com a Open Society Foundations.