Dois Brasis: o que mata e o que insiste em viver

Em artigo, Semayat Oliveira indica que matança parece imparável e tem sido, mas, sobretudo, a morte se mostra sistêmica, política e estratégica.

Por Redação

10|05|2021

Alterado em 10|05|2021

Marcas trágicas da semana que acaba de passar: São Paulo, o estado mais rico do país, chegou a 100 mil mortes por Covid-19. No Brasil, do ano passado até aqui, quase 420 mil vidas foram perdidas. E no Rio de Janeiro, a maior chacina da história do estado matou 28 pessoas na favela do Jacarezinho.

A matança parece imparável e tem sido. Mas, sobretudo, a morte se mostra sistêmica, política e – doloroso escrever – estratégica. Existem territórios específicos com maior exposição ao vírus. Certos corpos são perseguidos e executados deliberadamente pela polícia. Para esse contexto não há outro nome a não ser genocídio.

No próximo dia 13 de maio, a abolição do período escravocrata completará 133 anos. E em outubro deste ano a Constituição Federal de 1988, também conhecida como constituição cidadã, completará mais de três décadas. Ainda assim, a pergunta que fica é: “os negros neste país são cidadãos?”.

Refaço neste artigo a pergunta feita na década de 90 pelo geógrafo brasileiro Milton Santos, que faleceu em junho de 2001. Durante sua participação em um simpósio na Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo) ele lançou a indagação e, se colocando como exemplo, respondeu: “Não importa a festa que me façam aqui ou ali, o cotidiano me indica que não sou cidadão neste país”.

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Milton Santos morreu aos 75 anos, em 2001, por complicações de um câncer de próstata

©Reprodução site Milton Santos

O intelectual, reconhecido e premiado internacionalmente por estudos em temas relacionados ao espaço urbano e como as cidades se desenvolvem, questionava a existência de cidadãos no Brasil. Neste dia, ele fez uma relação entre a chamada classe média, que tem acesso a privilégios (não direitos) e quem não têm direitos (nem privilégios).

“Poderíamos traçar a lista das cidadanias mutiladas neste país”, disse, se referindo aos impactos que essa não cidadania tem para a população negra e empobrecida em todos os aspectos: saúde, empregabilidade, segurança pública, moradia, alimentação. Enfim, a existência digna.

Após o massacre de Jacarezinho, em que moradores, moradoras e ativistas foram às ruas, a Coalizão Negra Por Direitos lançou um manifesto que denuncia o pacote de extermínio que tem atingido as periferias: bala, fome e Covid. Além disso, convocam uma mobilização nacional para o dia 13 de maio.

Quase um ano depois das manifestações “Vidas Negras Importam” e que a palavra antirracismo pipocou nas redes sociais e na fala do brasileiro, o derramamento de sangue e a ausência de ar persistem.

O plano dissimulado de aniquilamento é escrachado na fala do vice-presidente Mourão. Após a chacina, ele se referiu às vítimas como “tudo bandido”. Da mesma forma, a má condução da pandemia revela um descaso com a vida.

Na última terça-feira (4), o ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, foi o primeiro a ser ouvido na CPI da Covid. Quando questionado sobre a possibilidade do governo Bolsonaro ter aderido à estratégia de atingir a “imunidade de rebanho”, ele respondeu que “teve a impressão” de que sim, mas não poderia afirmar.

Como um dos exemplos, Mandetta disse que havia um entendimento de que “as pessoas vão contrair isso [a doença] porque moram em favelas, porque estão aglomeradas, porque não têm esgoto, porque o brasileiro vai se contaminar e vai morrer só quem tem que morrer, só está morrendo idoso e embarcaram nessa teoria.”

A suposta “teoria” caracteriza uma racialização da crise sanitária que pode ser traduzida em números no município de São Paulo. Segundo o Instituto Pólis, as taxas de mortalidade ajustadas indicam que homens negros têm maior risco de morte (52%) do que homens brancos. Assim como as mulheres negras têm maior mortalidade (56%) do que as mulheres brancas. E, no Brasil, as populações negra (preta e parda) e indígena têm 39% mais chances de morrer por Covid-19 do que a população branca.

Neste contexto, o Brasil que mata se reflete nas atitudes do presidente da República, que defende tratamentos sem comprovação científica, recusa-se ao uso da máscara ou à política de distanciamento social e faz comentários racistas diante de apoiadores em Brasília.

Já o Brasil que insiste em viver é feito por gente que não se resume a um rosto, nome ou lugar, mas a uma condição. São das periferias que têm vindo soluções para combater os danos que a não aplicabilidade da constituição brasileira tem causado na população.

Diariamente, homens, mulheres, coletivos e organizações buscam arrecadar recursos ou alimentos para matar a fome e o medo do amanhã não vingar. Desde campanhas nacionais até iniciativas hiperlocais. Falta emprego. Falta vacina. Ainda assim, com a mesma tecnologia de séculos atrás, alcançar a cidadania integral neste país é uma missão constante para a população negra, pobre e indígena.

Lá em Taboão da Serra, município da grande São Paulo, durante uma entrevista sobre insegurança alimentar com Raimunda Boaventura, 58, perguntei qual era o seu sonho. E aí ela disse: “Um sonho só? É difícil”. Então remendei: E se fossem dois? Nessa condição, ela aceitou: “Um que acho bastante difícil seria o reconhecimento através do que eu escrevo. O outro está relacionado à minha vida, aquela coisa da cidadania, sabe?”.

Dona Raimunda, escritora por vocação, contou que, quando escreve, pode sonhar com uma realidade diferente da que tem hoje. Encarar o agravamento das desigualdades sociais durante a pandemia não tem sido fácil. A comida na mesa às vezes tarda ou falta. A chuva às vezes pinga ou sobe demais dentro de casa. As entregas de cestas básicas têm amenizado o que é mais imediato.

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A repórter conheceu dona Raimunda por meio do documentário “Pandemia do Sistema”, dirigido pela documentarista Naná Prudêncio

©Semayat Oliveira

Mas é como ela diz, “essa dificuldade não é nova”. Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o desemprego atingiu a marca de 14,4% entre dezembro de 2020 e fevereiro de 2021. Um recorde. Mas para a ex-auxiliar de limpeza, a dificuldade em conseguir um é antiga. Na sua leitura, o fato de ser uma mulher negra a afastou do mercado de trabalho formal.

“Eu entreguei muito currículo. Esse dinheirinho que às vezes a gente usa pra comprar o pão, sabe? Eu tirava pra fazer o currículo e levar nas empresas. Mas o descaso era tão grande”, lembra.

Pela definição que ela mesma dá, essa condição é contrária à cidadania. “Ser cidadã é ter o direito ao alimento todos os dias, a educação, saúde, a não passar por discriminação em qualquer que seja o lugar. Porque, às vezes, até em certos locais públicos, a gente se sente humilhado, sabia?”, explica.

Assim como Milton Santos, ela tem consciência de que deveria ter mais direitos assegurados do que tem. Como resposta, se dedica a oferecer para os netos as histórias que ela escreve, a possibilidade de imaginar peças de teatros feitas no próprio quintal.

O futuro está sendo semeado e ela sabe: “Vai ter que ter muita briga pela frente viu, pra acabar essa questão de racismo”. Mas segue: “Se a gente for chorar o tempo todo, a gente não anda, se arrasta. Então, eu prefiro ficar em pé”. E continuaremos de pé, dona Raimunda.

Este artigo foi originalmente publicado no jornal Folha de São Paulo em 8 de maio de 2021. 

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