Mito do baiano preguiçoso. Lavagem de Itapuã em Salvador (BA).

‘A festa nunca foi um problema para Salvador, mas a solução’

Doutora em antropologia, a jornalista Cleidiana Ramos explica porque o mito do ‘baiano preguiçoso’ reforça preconceitos e contribui para a violação da dignidade humana.

Por Redação

07|03|2023

Alterado em 07|03|2023

Por Rosana Silva – colaboração para o Nós de Salvador (BA)

Cleidiana Ramos, 48, jornalista, professora em cursos de comunicação, mestra em Estudos Étnicos e Africanos e doutora em Antropologia, pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), explica ao Nós, mulheres da periferia que a fala proferida pelo vereador gaúcho sobre o “baiano preguiçoso” revela um olhar equivocado e sustentado por estereótipos construídos ao longo do período colonial e que reverberam como uma verdade até os dias atuais.

No último dia 28 de fevereiro, na sessão da Câmara de Vereadores, na cidade de Caxias do Sul (RS), o vereador Sandro Fantiel fez uma crítica a operação realizada na cidade de Bento Gonçalves, que resgatou 208 trabalhadores de exploração a trabalhos análogos a escravidão. O parlamentar proferiu falas preconceituosas contra os baianos.

 “Não contratem aquela gente lá de cima […] contratem os argentinos, pois são limpos, trabalhadores e corretos”. “Com os baianos, a única cultura que tem é ficar na praia tocando tambor”. No último dia 2 de março, os vereadores aprovaram com unanimidade o pedido de cassação do vereador.  

A jornalista ainda aponta que a falta de vozes dissonantes e um olhar mais aprofundado sobre esses temas, na grande mídia, contribui para manutenção dessas imagens negativas – relacionadas aos baianos, negros, indígenas – no imaginário popular. Além disso, também refuta o mito do baiano preguiçoso e explica que as festas populares não estão separadas da vida, do trabalho, porque o trabalho faz parte da vida cotidiana.

Nós, mulheres da periferia: A fala do vereador gaúcho aciona o estereótipo do “baiano preguiçoso” para dizer que os baianos “ficam na praia tocando tambor”. Como pesquisadora da antropologia e das festas populares na Bahia, a festa é um problema?

Cleidiana Ramos: Salvador foi a primeira capital do Brasil. Foi construída para ser a capital do império, porque era um lugar de passagem para as viagens entre a Europa e a conexão com as concessões portuguesas no continente Africano e Asiático.

Em 1763, Salvador deixou de ser a capital do Brasil. Com isso, você retira dela não só o poder público, mas a circulação de dinheiro, de poder, de prestígio, porque o estado se ausenta.

Nunca tivemos um celeiro agrícola, porque a cidade foi criada para ser o lugar de poder. Então, ela precisa encontrar uma forma de ter economia. O que é que a cidade tem de mais forte? Patrimônio arquitetônico e patrimônio simbólico. A festa nunca foi um problema para Salvador, mas a solução. 

Este é o caso de mais uma ideia equivocada que permeia o pensamento de parte considerável da população do Sul e do Sudeste do país de que eles são europeus exilados nos trópicos. Existem duas ideias de oposição: o Sul é a civilização e o Norte é o barbarismo, preso ao passado. 

É uma ideia tão velha que já estava presente na vida colonial brasileira. Europeus, como o príncipe Maximiliano, que diziam “os brancos daqui não se parecem conosco, não chegam perto de nós”. Os pares que imaginam ser deles nunca os reconheceram, embora eles pensassem que estavam em uma situação diferente.

Nós – Existe uma dicotomia entre o trabalho e a festa? 

Cleidiana Ramos: Não existe dicotomia entre o trabalho e a festa. A festa não corta a vida cotidiana, porque o cotidiano vai para a festa.  Em Salvador, nós temos vários ciclos festivos. Agora, entraremos no ciclo que mexe com o estado inteiro, que é a Quaresma e a Semana Santa.

Em abril, milhões de baianos e baianas sairão de Salvador para visitar familiares nas cidades do interior do estado. Isso gera renda, do ponto de vista da indústria do transporte, do turismo, de serviço, além do ramo da alimentação.

É uma festa católica; mas, na Bahia, ela tem a mão dos descendentes de africanos. Independente da região do estado, da religião que se professe, o almoço da sexta-feira da paixão é a comida de azeite de dendê:  Caruru, vatapá, frigideira de marisco, de bacalhau etc. Não se imagina como as feiras são aquecidas nesse período.

O mercado da festa e a indústria da festa envolvem grandes empresas nacionais. Como podemos dizer que isso é simplesmente lazer? De maneira geral, Salvador sabe fazer festa, não é algo furtivo e negligente, mas algo extremamente especializado. A fala do vereador gaúcho mostra a ignorância de uma pessoa que está no cargo público.

Imagina se ele sentisse o que cada baiana e baiano, principalmente as negras e os negras, sente cada vez que uma pessoa chama a gente preguiçoso? Imagine o que sente a baiana de acarajé, na praia, o vendedor ambulante informal que trabalha 12 horas por dia, de forma digna.

Ele contribui para a opressão, a violência continuada contra essas pessoas, contra nós. Espero que o Ministério Público e todas as instâncias façam o dever de casa, porque será pedagógico.

Nós – Você acredita que as imagens, especialmente difundidas pelas mídias, ao longo dos séculos, também contribuíram para a criação dos estereótipos relacionados à população negra no Brasil?

Cleidiana Ramos: O jornalismo não está dissociado da vida. Eu sou jornalista e trabalhei na redação de jornal por 17 anos, em Salvador. Depois, virei a coordenadora de um projeto, um conjunto de cadernos, todos especializados, chamados Cadernos do 20 de novembro, da Consciência Negra. O Jornal A Tarde publicou de 2003 a 2015.

E a ideia era exatamente essa: o jornal fazer o caminho de volta. O jornal que ajudou, como todos os jornais baianos e brasileiros, a reproduzir essas ideias. Ele é o mediador, é o palco onde todos esses discursos passeiam com mais influências.

Como jornalista e professora de curso de comunicação, observo nos grandes jornais um mesmo discurso sobre um determinado tema.

Como pode ser uma opinião unânime? Como não tem uma voz dissonante, em um lugar de pensamento e debate, como ocorre nas ciências, economia, política, na cultura? Temos determinados temas que esse jornalismo não debate.

Nós –  Qual sua opinião sobre a cobertura dos grandes jornais relacionada ao discurso do vereador gaúcho?

Cleidiana Ramos: No jornalismo, temos duas grandes escolas no Brasil, com mais influência. A escola opinativa e a escola informativa. Mas, tinha o que chamavam de jornalismo interpretativo, a fim de fazer um debate mais aprofundado, não necessariamente abrindo mão da informação e da opinião.

Mas o que a gente observa na esfera da cobertura política é que a reportagem está sumindo. O tempo inteiro colunas de opinião; por outro lado, temos um jornalismo, do ponto de vista informativo, que é o declaratório.  Colocam as falas das fontes sem problematizá-las.

Tenho visto a divulgação do vídeo do vereador, mas não há problematização da gravidade da sua fala. A origem de dizer que baiano gosta de festa, de praia, usado, muitas vezes, em entretenimento, em piada, em show de humor, é exatamente o ninho deste tipo de pensamento preconceituoso.  

O que temos visto são as declarações e o leitor que se vire para fazer sua interpretação.  Há um recorte do fato, mas não da dimensão de quão grave é o fato.