Justiça climática: o que é e por que se preocupar?

Esta reportagem integra a série “Cuidadoras ancestrais - elos entre a cidade e a floresta”

Por Amanda Stabile

04|04|2023

Alterado em 25|04|2023

Quando você pensa na ideia de futuro, o que vê? Talvez finalmente tenhamos carros voadores ou, quem sabe, use trajes cromados para ir à padaria. Mas, com as desigualdades que estruturam as sociedades hoje, você consegue imaginar gerações de pessoas da sua quebrada participando desse mundo?

Mais do que pensar nas inovações que teremos anos à frente, para falar de futuro – e até de presente – é preciso discutir sobre as mudanças climáticas e como esse problema se liga à justiça social. Já nos alertou o ambientalista e líder indígena Ailton Krenak: “se sobrevivermos, vamos brigar pelos espaços de planeta que a gente não comeu”. Para adiar o fim do mundo temos pelo menos uma certeza: é necessário sobreviver.

O despertar para a justiça ambiental

A primeira vez que foi percebida a urgência de que a luta pelo meio ambiente se conectasse com os direitos das populações aconteceu na década de 1980, nos Estados Unidos. Até então, o movimento ambientalista se centrava apenas na necessidade de proteger o planeta da degradação ambiental.

Nessa época, aconteceram vários protestos contra o despejo de lixo tóxico e de resíduos poluentes em áreas em que moravam pessoas pobres, majoritariamente negras e imigrantes. Essa luta por justiça ambiental, como ficou conhecida, também evidenciou que há um perfil comum entre os mais prejudicados pela destruição do meio ambiente e ele passa pelo quesito raça – o que fundamenta o conceito de racismo ambiental.

Dessas reivindicações nasceu um novo movimento, visando identificar e responsabilizar aqueles que historicamente causaram não apenas impactos ambientais, mas também ao clima do planeta. A ele deu-se o nome de justiça climática, um termo que foi usado pela primeira vez nos anos 1990.

“A justiça climática só existe porque o conceito de racismo ambiental vem primeiro”, explica Luana Costa, comunicadora social e especialista em Direitos Humanos e Cidadania.

“É preciso reconhecer, antes de qualquer coisa, o racismo como algo que impede o nosso acesso à serviços e à vivência de uma cidadania que seja mínima”.

Quem tem medo da justiça climática?

Uma constatação feita pelo movimento é a de que os países industrializados precisam ser responsabilizados pela intensa e maior parte da emissão de gases de efeito estufa. A riqueza desses países desenvolvidos, também chamados de Norte Global, foi conquistada às custas da crise climática. Enquanto isso, os países pobres, que emitem menos poluição, sentem de maneira mais intensa os efeitos da crise.

Além disso, historicamente os países situados no Sul Global – nações em desenvolvimento –, sofrem as violações de direitos humanos decorrentes da colonização. Dentre os efeitos podem ser citadas inúmeras crises, políticas, sanitárias e econômicas, que construíram desigualdades sociais e territoriais que, por sua vez, são determinantes sociais de pobreza e raça.

Depois de identificados os responsáveis, de que forma a justiça climática pode ser aplicada? Os fundamentos são estabelecidos a partir de tratados internacionais, como a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC), elaborada durante a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em 1992, que ficou conhecida como Rio 92.

No encontro foi consolidada uma agenda global para minimizar os problemas ambientais mundiais e, no tratado, foram determinados compromissos e obrigações para todos os países signatários. Para garantir o cumprimento desses compromissos, o documento estabeleceu mecanismos operacionais de financiamento para facilitar a transferência de recursos de países do Norte para o Sul Global.

Em 2015, quando o encontro da UNFCCC, chamado de Conferência das Partes (COP), aconteceu na França, mais um compromisso foi assinado. O Acordo de Paris sobre o clima, que inclusive cita o termo “justiça climática”, prevê metas para a redução da emissão de gases do efeito estufa. Ele também reforça o apelo para que os países desenvolvidos deem suporte financeiro e tecnológico aos países subdesenvolvidos para o alcance das metas.

Na COP 27, que aconteceu em 2022 no Marrocos, Egito, pela primeira vez o tema “Perdas e Danos” – relacionado aos prejuízos causados pela crise climática e quem são os mais prejudicados – foi incluído na agenda do evento. A conclusão do relatório foi de que os efeitos da crise climática são muito maiores para os países do Sul Global, especialmente os da América Latina e do continente Africano.

Injustiça climática nas cidades

Para trazer o debate climático para as cidades, é essencial entender que as desigualdades são parte estrutural da criação dos municípios, inclusive no Brasil. Nesse cenário, surge um novo conceito: a justiça urbana.

“As cidades são divididas, uma vez que elas foram projetadas para receber brancos nos seus níveis centrais e colocar toda uma massa de gente preta e pobre nas suas margens. Isso tem o impacto desse tempo todo de quase 400 anos de escravização que o país viveu”, explica Luana Costa, que também é mobilizadora no movimento Nossa BH, dedicado a conversar com as cidades sobre as temáticas da mobilidade urbana e das mudanças climáticas, conectando essas duas questões à garantia de outros direitos.

“Se tem territorialidade, tem apartheid”. Essa reflexão, proposta pela artista Elisa Lucinda é, também, central para falar sobre o tema. Ela referencia a ideia de que, se em uma cidade, há uma separação evidente e se sabe onde encontrar pessoas negras e onde encontrar pessoas brancas, há segregação.

Apartheid é um termo que remete ao regime político de segregação racial que assolou a África do Sul entre 1948 a 1994. Nele, foi estabelecida uma legislação em que pessoas de diferentes raças não podiam circular nos mesmos espaços ou acessar os mesmos direitos – a população branca, minoria no país, foi extremamente privilegiada com esse sistema.

No debate sobre o meio ambiente, o termo apartheid climático é utilizado para fazer referência a uma realidade em que os países brancos e ricos pagam por formas de evitar serem afetados pelos efeitos do aquecimento global, enquanto os países pobres e subdesenvolvidos sofrem os piores impactos.

“A gente está falando de cidades repartidas: por raça e cor, por desigualdades econômicas e por um sistema que quer tirar a nossa humanidade o tempo inteiro, que ainda não reconhece os nossos corpos como legítimos – esses corpos pretos e periféricos que fazem as cidades brasileiras se movimentarem”, aponta Luana.

Nesse cenário, os grupos raciais brancos tendem a acessar com mais facilidade inúmeros direitos, como as áreas de lazer, serviços de educação e saúde, as oportunidades de emprego e toda estrutura urbanística da cidade. Na contramão, as pessoas que moram à margem ficam geograficamente distantes de tudo isso, nas periferias.

“Para falar de Justiça climática, a gente precisa falar de injustiça. E quando falamos sobre periferias e favelas, falamos de condições até sobrehumanas, porque tudo isso está conectado com esse modo capitalista de viver”, explica a especialista.

A despeito disso, esses territórios têm saberes e vivências que precisam ser reconhecidas.

“As nossas escolas de ensino estão na ressignificação do espaço urbano, na arquitetura em movimento da periferia; na frequência de cuidado no cultivo do nosso próprio alimento; na partilha da medicina e da botânica comunitária; no ambiente de potencialização e valorização da nossa cultura e do nosso modo de vida; e na forma como os nossos corpos não são reconhecidos e humanizados nas cidades brasileiras”, aponta.

Quem precisa de justiça climática no Brasil?

Para além dos marcadores de raça, mulheres e meninas também são afetadas de maneira significativa pela injustiça climática. A publicação “Quem precisa de justiça climática no Brasil”, elaborada pela Gênero e Clima em parceria com o Observatório do Clima, se debruçou sobre os impactos na nossa realidade e ouviu vozes que protagonizam o tema no país.

Dentre os apontamentos do estudo está o alerta de que a crise climática pode ser considerada mais um eixo de opressão que, sobreposto a questões ligadas à pobreza, a falta de acesso à recursos naturais e à violência sexual, dentre muitos outros, gera situações de profunda desigualdade.

“A questão de gênero vem conectada diretamente a esse grande bloco de conceitos e informações. Não tem como negar que somos nós, as mulheres e mulheres negras, que estamos amontoadas nos ônibus e que sofremos maiores impactos com a poluição do trânsito. Não somos nós que estamos de carro na cidade, mas somos quem sofre os impactos disso”, explica Luana.

“Somos nós que convivemos amontoadas nas favelas, sem acesso à água potável, saneamento básico, segurança alimentar, moradia. Somos nós que estamos na base dessas pirâmides de opressão. A gente sente isso tudo de uma maneira mais forte quando uma mãe não tem que dar o que comer para o filho. As favelas estão permeadas por essas histórias”, complementa.

A especialista ainda aponta para o fato de populações inteiras de mulheres e meninas que são arrasadas pelo agronegócio, pela exploração de minério e de petróleo – negócios muitas vezes custeados por países estrangeiros. Para ela, é quase impossível falar de justiça em contextos tão violentados e arrasados.

“Quando essas desigualdades vêm sobrepostas se torna ainda mais difícil porque o racismo e o machismo fragilizam a nossa democracia”, aponta Luana. “Se essas interseccionalidades não forem centrais para debater as políticas públicas, a gente não tem um futuro em que consiga se enxergar”, conclui.


A série Cuidadoras Ancestrais tem o apoio do fundo Puentes, através do “Narremos La Utopia” que em sua quarta edição nos convida a imaginar futuros a partir da justiça ambiental.