É preciso uma aldeia inteira para criar crianças sem racismo
Lúcia Xavier e Mônica Sacramento, pesquisadoras da ONG Criola, discutem o futuro da primeira infância negra como parte da luta por creches públicas livres do racismo para todas as crianças.
13|12|2022
- Alterado em 13|12|2022
Por Redação
Este artigo integra a série “Eleições 2022: escolha pelas mulheres e pelas crianças“. Uma ação do Nós, mulheres da periferia, Alma Preta Jornalismo, Amazônia Real e Marco Zero Conteúdo, apoiada pela Fundação Maria Cecília Souto Vidigal
Não há dúvidas de que o racismo representa uma violência com severos impactos no pleno desenvolvimento de crianças negras. Especialmente em espaços de socialização primária (família, escola, pequenos grupos), elas experimentam violências e situações discriminatórias que as associam a estereótipos e estigmas depreciativos, como expressões verbais, práticas não verbais, situações de preterimento e injustiças que abalam a autorrepresentação, a imagem e a autoestima que constroem sobre si. Esse contexto também cria duras barreiras para o pleno desenvolvimento intelectual, emocional, criativo e de socialização.
Essa denúncia tem sido feita historicamente pelo movimento de mulheres negras. Ao longo de 30 anos de existência, Criola vem desenvolvendo ações de enfrentamento do racismo patriarcal cisheteronormativo para estabelecer igualdade de direitos para meninas e mulheres, que possibilitem o pleno desenvolvimento da vida desde o nascimento, sem desigualdades e discriminação. Para isso, a organização desenvolve ações de proteção das meninas e de empoderamento das mulheres que passam pelo desenvolvimento de atividades lúdico-pedagógicas de fortalecimento identitário; denúncia sobre a violência, o racismo, a discriminação, a falta de políticas de saúde, educação e proteção da infância.
Nesse sentido é que pautamos a concretização do direito da Primeira Infância negra como parte da luta por creches públicas livres do racismo para todas as crianças. Lembramos que é nesta fase, do zero aos seis anos, que as crianças enfrentam as primeiras “provas” de sobrevivência e os mais variados obstáculos para se manterem saudáveis e construírem seus futuros. Hoje, elas são o grupo com menos acesso a todos os direitos sociais básicos, tais como saúde, educação, habitação, saneamento básico, entre outros; apesar do Brasil possuir uma legislação avançada (Constituição Federal (1988); Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei nº 8.069/1990), Marco Legal da Primeira Infância (Lei nº 13.257/2016), entre outras) para a proteção dos direitos de crianças e adolescentes.
Não faltam dados estarrecedores. Quando recém nascidas, enfrentam a qualidade inadequada da atenção hospitalar, expostas ao risco de efeitos adversos no nascimento. São as que mais morrem no início da vida. De acordo com o UNICEF, em 2010, uma criança negra tinha 25% mais chances de morrer antes de completar um ano do que uma criança branca. Tinham, ainda, 60% mais chances de morrerem antes dos 5 anos por causas infecciosas e parasitárias, bem como risco 90% maior de desnutrição.
No estado do Rio de Janeiro, a fome foi maior entre famílias com crianças até seis anos (21,4%), maior que o percentual do Sudeste (15,3%) e de todo Brasil (18,4%). Isso significa que a presença de menores de seis anos aumenta em 34,6% a insegurança alimentar nos domicílios fluminenses.
Para as pessoas negras que gestam, afetadas pelo racismo institucional, a gestação e nascimento de seus filhos tornam-se eventos repletos de sentimentos que se alternam entre a felicidade, a insegurança e angústia quanto à manutenção de seus trabalhos, dúvidas, memórias de dor, violência e, para muitas delas, luto ou morte. Desnecessariamente, são expostas aos riscos de efeitos adversos no parto e nascimento de suas crianças, com a realização de um número excessivo de partos por cesariana.
Ao analisarmos os espaços educativos, percebemos que o poder público não tem ofertado espaços escolares acolhedores, seguros e capazes de cuidar das crianças negras e tampouco potencializar seus talentos e habilidades. Adicionalmente, há um grande déficit de atendimento às crianças negras em creches e escolas de educação infantil no país. Elas representam 45,1% do total de matriculas em creches no país, com desvantagem no acesso em relação às crianças brancas, que é de 54,1%.
Somente no Rio de Janeiro, 12.360 agendamentos foram realizados junto a Defensoria Pública de 2018 a maio de 2022, motivados por busca de vagas em creche (87,5% do total). A maior quantidade de solicitações eram de pessoas moradoras dos bairros da zona oeste, mulheres em maioria (94% do total), negras (60,7%), solteiras (62,9%) e metade eram jovens entre 25 e 34 anos.
Nos espaços existentes, a desigualdade torna-se, ainda, mais evidente. Mais de 20% das crianças no Brasil estão em escolas sem saneamento e mais crianças negras estudam em áreas de maior vulnerabilidade do que crianças brancas. Faltam itens de saneamento básico nas creches onde estão matriculadas 27% das crianças negras e nas pré-escolas onde estão 34% delas. Entre as crianças brancas, esses percentuais são menores: 15% estão matriculadas em creches sem saneamento e 17% em pré-escolas sem esses serviços.
É por isso que, respondendo aos desafios atuais, e articuladas em rede com outras organizações, Criola afirma que investir na primeira infância representa ampliar os direitos, a democracia, a justiça e o bem viver, garantindo impactos positivos para toda a sociedade, em especial para as meninas e mulheres negras. Criola posiciona-se pela ampliação de vagas em creches públicas, especialmente no estado do Rio de Janeiro, com oferta de horário integral, para garantir desde a primeira infância espaços adequados, seguros, estimulantes, sem violência e sem racismo como investimento público para o futuro das novas gerações. Assim como ecoaram nossas parceiras organizadas em associações como a das trabalhadoras domésticas, mulheres negras têm direito a saírem para trabalhar sabendo que seus filhos estão sendo bem cuidados, em espaços seguros e livres do racismo. Assim, também podem buscar qualificação, prosseguir nos estudos e projetar futuros para si, para suas famílias e para a sociedade brasileira.
Creche é compromisso e investimento com o desenvolvimento e o futuro de toda a aldeia!
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Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.
Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.
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