‘A Amazônia como centralidade’: mulheres afroamazônidas na política
Zélia Amador, Vivi Reis, Michelle Andrews e Flávia Ribeiro contam o que é ser mulher afroamazônida e os desafios que enfrentam para ocupar o espaço político. Confira!
Por Jéssica Moreira
08|04|2022
Alterado em 11|04|2022
Você já ouviu falar sobre Felipa Maria Aranha? Junto a outra liderança feminina negra, Maria Luiza Piriá, e cerca de outros 300 negros, Felipa esteve à frente do Quilombo do Mola, no município de Cametá, onde hoje é o estado do Pará.
Sendo um quilombo-estado com estruturas militares que chegaram a expulsar portugueses e capitães do mato por volta dos anos de 1750, o Mola, já naquele período, articulava os demais quilombos em rede. Os quilombos de Laguinho, Tomásia, Boa Esperança e Porto Alegre formavam a Confederação do Itapocu, para lutar contra o sistema escravagista.
É também do lado norte do mapa brasileiro que mulheres negras e indígenas atuaram fortemente na Cabanagem, ou a chamada Revolução Cabana, entre os anos de 1835 e 1840. Considerado um movimento de emancipação no Brasil antes mesmo da Independência, a Cabanagem contou com a liderança de mulheres negras como Maria Lira Mulata.
As trajetórias acima compõem a história brasileira, mas muitas vezes ficam de fora do noticiário, dos livros didáticos e das discussões políticas do restante do país. Contar estas histórias é honrar as memórias de mulheres negras afroamazônidas que inspiraram o fazer político na região de forma prática e cotidiana também para as que vieram depois e chegarão no futuro.
Confira nesta reportagem do Nós, mulheres da periferia
“A natureza está em nossa subjetividade”
Zélia nasceu na Ilha de Marajó, no norte do Pará, e se tornou a primeira reitora negra de uma universidade brasileira.
©Alexandre de Moraes
É cria dessa região a ativista Zélia Amador de Deus. Atriz, diretora, professora, pesquisadora, mulher preta e ativista histórica do Movimento Negro, Zélia é uma das fundadoras do Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (Cedenpa) e também é professora da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Zélia trabalha em uma sala que dá vista às beiradas do Rio Guamá. No dia de nossa entrevista, não foi diferente. Aproveitou o cenário para explicar como a natureza integra não só a fauna e flora da região amazônica, mas a própria subjetividade de quem nela vive.
“A vida na Amazônia é uma vida que não tem como fugir da natureza que nos cerca. As águas e árvores imensas fazem parte de nós. A água é parte da minha subjetividade. A universidade fica às margens do Rio Guamá. Essas águas me acalmam, são parte de mim”.
Nascida na Ilha do Marajó, no Pará, cresceu ao lado de uma avó que sempre pontuou quão importante era a educação na vida de uma pessoa negra.
“Minha avó foi muito importante. Desde sempre me dizia que eu era negra, que a vida não iria ser fácil. Eu cresci sabendo que eu era preta, cresci sabendo que tinha que estudar para a vida ser um pouco melhor. Ela me dizia também que eu não me abaixasse e não deixasse que ninguém me humilhasse”, relembra.
Homenageada na 23ª Feira Pan-Amazônica do Livro e das Multivozes, a forma de fazer política de Zélia é também escrevendo.
“Entendo que nós, pessoas negras da diáspora africana que resistimos na luta cotidiana contra o racismo para a elaboração de nossas estratégias, temos que dialogar sempre com a nossa ancestralidade: abrir caminhos e romper barreiras feito Exu”.
Ela é autora do livro “Ananse: tecendo teias na diáspora: uma narrativa de resistência e luta das herdeiras e dos herdeiros de Ananse”, publicado em 2019 pela Secretaria de Cultura de Belém.
“É lutar com a ajuda de Dandara e Zumbi; e seguir sankofa, o pássaro, símbolo adinkra que morde a própria cauda para lutar no presente, olhar o passado e construir um futuro melhor. Esta é a nossa luta, sempre dialogando com nossa ancestralidade”, diz.
Por meio de suas palavras e na sua atuação no Cedenpa, junto a outras companheiras e companheiros, como Nilma Bentes, que Zélia vem mostrando a existência da negritude e também denunciando o racismo presente em uma região que muita gente acredita que não haja negros.
“O grande objetivo do Cedenpa sempre foi lutar contra o racismo e pela cidadania negra e também trabalhar em um processo de criação de políticas públicas contra o racismo”, explica Zélia, que denuncia a forma estereotipada que o restante do país olha para a região amazônica, composta pelos estados do Amazonas, Acre, Rondônia, Roraima, Pará, Maranhão, Amapá, Tocantins e Mato Grosso: região de muitos povos, culturas e tradições.
“Com certeza, praticamente não se fala de uma Amazônia negra. A Amazônia foi racializada pelo resto do Brasil como uma região unicamente de grupos indígenas. A gente tinha essa dificuldade quando criamos o Cedenpa há 42 anos”.
“Ninguém estava acostumado com a Amazônia Negra. A Amazônia é indigena e é sobretudo negra. O censo do estado do Pará aponta que temos 64% de pessoas pretas e pardas. Os estados do Pará e Amapá são estados negros”, afirma.
Tornar-se afroamazônida
Flávia Ribeiro é mestranda em Comunicação e Cultura.
©Edson Palheta
A jornalista Flávia Ribeiro não nasceu afroamazônida, mas tornou-se. Também de Belém do Pará, foi em uma viagem para as praias de Recife, uma pessoa falou em tom jocoso que no Pará só havia praias de mangue. A brincadeira de mau gosto a incomodou, mas também a fez perceber a xenofobia que existe em torno da região norte como um todo.
Foi quando Flávia olhou para toda a sua trajetória enquanto mulher negra, também de sua mãe, que saiu ainda menina do interior do Pará para ser doméstica, e entendeu que o território também era uma marca de sua identidade: uma mulher negra da Amazônia, uma afroamazônida.
“O que é ser uma mulher negra na amazônia? É tudo isso aqui: clima, solo, chá, remédio. Tudo isso nos forma enquanto pessoa. E a gente não enxerga isso. Esse processo é um processo recente pra mim, porque foi necessário que alguém de fora apontasse a amazônia e eu visse isso daqui, porque até então nós éramos iguais para mim”, conta.
Ela diz que, muitas vezes, mesmo dentro dos movimento de mulheres negras, as afroamazônidas não se sentem convidadas a falar. “Como a gente não consegue não racializar nenhuma pauta, eu também não consigo não desterritorializar nenhuma pauta. A gente não quer se separar, mas os movimentos sociais têm que se ver nessas diferenças, que essas diferenças não são motivos de separação, são motivos da nossa potência e realizações”, explica.
‘A Amazônia foi entendida como um vazio demográfico’
Zélia explica que, no processo de racialização, o sul e o sudeste do país – onde se localiza o poder central do Brasil – entenderam a Amazônia como uma terra de vazios demográficos, o que não é verdade, há povos de diferentes ancestralidades nesse chão.
“Ela acaba servindo para que o estado central implante grandes projetos, mas que, para nós da região, são projetos que sempre nos deixam com grandes mazelas, desarticulação dos grupos populacionais e aumento da pobreza”, explica.
Exemplo disso é a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Localizada na Bacia do rio Xingu, próximo à Altamira, no Pará, a usina é um símbolo dos grandes empreendimentos que afetaram de forma negativa toda a população.
“Ninguém da população foi consultado, nem considerado. O poder central implantou Belo Monte, desarticulou a região de Altamira, e a pobreza ficou muito maior. A gente herda as grandes mazelas. É uma das regiões mais pobres do país. Muito dessa pobreza, são mazelas que vêm de grandes projetos, pelo poder central, que são juntados na região sem que a gente seja consultado”, diz Zélia.
Os desafios das mulheres afroamazônidas no poder
Vivi Reis é iliada ao Partido Socialismo e Liberdade. Atualmente é deputada federal pelo Pará.
©divulgação
Nascida e crescida na baixada da Pedreira, bairro do samba e do amor, na cidade de Belém (PA), Vivi Reis é a primeira mulher negra, bissexual e da periferia a se tornar deputada federal no Pará, pelo Partido Socialismo e Liberdade (Psol).
Vereadora mais votada de Belém nas Eleições de 2020, com 9.654 votos, Vivi era suplente de Edmilson Rodrigues, que se tornou prefeito em 2020, fazendo com que ela transitasse de vereadora para deputada.
Filha de mãe trabalhadora doméstica e pai autônomo, o espaço escolar e também o da igreja foram alguns dos primeiros envolvimentos políticos, o que, segundo ela, foi fundamental para construir sua trajetória na política institucional.
“A partir da realidade da periferia, e com a defesa desse perfil de atuação enquanto mulher e amazônida, entendendo que a Amazônia também é a periferia das cidades, que carecem de acesso, de políticas públicas e de garantia de direitos”.
‘Enxergam a Amazônia com a lupa colonial’
Complexa e cheia de camadas, a região amazônica precisa estar no centro dos debates nacionais e internacionais. Isso é o que diz Vivi quando pensa na diversidade local em seu mandato. Ela faz questão de relembrar que, embora o norte seja formado pelos rios, florestas e toda a sua biodiversidade, essa região também é composta por suas cidades, com as suas periferias e dinâmica própria.
“Nós, mulheres amazônidas, carregamos toda a nossa vivência, o conhecimento, nossas identidades e tudo que somos como uma pauta política, porque nós somos corpos políticos que se expressam através da fala, da forma como nos apresentamos, inclusive com uma identidade muito forte de vestimenta, e também da definição de prioridades políticas porque nós trazemos essas prioridades conosco.
Como deputada federal, Vivi tenta sempre trazer a realidade local para onde quer que esteja, seja em Brasília ou durante a COP-26 (Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima), que ocorreu em Glasgow, no Reino Unido, em 2021.
“Essas realidades elas não podem ser deixadas de lado, secundarizadas ou vistas com específicas, mas que são parte de um debate global”, diz.
“Entendo que as realidades locais não podem ser deixadas de lado, secundarizadas ou vistas como específicas, mas que são parte de um debate global. Parte de uma construção política nacional e internacional e que nós temos total capacidade de assumir o protagonismo de nossas pautas e de nos auto-organizarmos para dizer o que queremos”, aponta.
Para além dos desafios usuais de uma parlamentar mulher, negra e bissexual, Vivi, assim como outras mulheres ativistas da região amazônica ainda precisam enfrentar o desafio do olhar colonial que ainda o sul e sudeste do Brasil jogam para a região. É o que reflete a jornalista Flávia:
“Há um resquício da colonialidade. O que as pessoas veem daqui? A natureza exótica. Quando estão vindo para cá, acham que estão vindo para a floresta, para a selva amazônica. Isso é muito estranho pra gente, que nos vejam desse jeito. Ainda têm essa visão exotificada”.
‘A disputa eleitoral é injusta e violenta’
As eleições de 2020 marcaram a ampliação de candidaturas de mulheres negras em todo o Brasil. A hoje deputada federal relata que, assim como quando se candidatou em 2018, o principal desafio que atravessou sua campanha foi a violência política.
“A disputa eleitoral é muito injusta e violenta, atingindo de forma brutal os corpos de mulheres negras, LGBTQIA+, de pessoas que não são de famílias tradicionais da política”.
Michelle fez parte da 5ª candidatura mais votada de Manaus mas últimas eleições.
Para Michelle Andrews, que foi candidata em 2018 e também em 2020 pelo Pará, ainda há desafios dentro dos próprios partidos para que as mulheres negras cheguem ao poder. “Foi desafiador construir uma formação voltada pra isso. Desde a pessoa responsável pelas finanças de campanha até estratégias de contagem de votos”, relembra.
Mas nem só de pontos negativos se faz uma campanha. As redes que se criam durante uma campanha são construções importantes que vão além do período eleitoral e acompanha as mulheres negras na vida política, seja ela institucional ou não.
“Os vínculos, as conexões, as redes de apoio em que muitas pessoas, até quem eu nem conhecia, apoiaram a nossa candidatura, mostrando que confiam no nosso programa e que foram, de maneira independente, fazer campanha.
“Era maravilhoso quando as pessoas chegavam ao nosso comitê por conta própria e diziam que queriam me apoiar, ajudar a me eleger vereadora por confiar no programa político que a nossa candidatura, e agora nosso mandato, defende.
Dentre as potências, Michelle entende que, se um dia houve preconceitos com a candidatura de ativistas, isso vem pouco a pouco mudando de cara. “Os movimentos sociais têm abraçado mais candidaturas de esquerda, sem estigmatizar. Por um tempo essa ideia de que movimento social não poderia se misturar com política partidária estava mais projetada. Hoje vemos que a mentalidade está mudando”.
Hoje, as violências não se findaram na trajetória de Vivi. Pelo contrário, tornaram-se ainda mais intensas, uma vez que o espaço político institucional não está preparado para a diversidade que ela e suas iguais trazem, fazendo da realidade no poder legislativo algo que afeta essas mulheres em muitos níveis.
“Um local onde nós somos deslegitimadas, onde sofremos sempre tentativas de silenciamento e de exclusão”, conta a deputada, que já experienciou violências veladas ou explícitas, muitas vezes com ameaças diretas à integridade à sua vida e levando à uma sobrecarga emocional e exaustão física, comprometendo a saúde mental.
“Aqueles que dominam a política querem é que a gente desista. Mas estamos muito longe de desistir. Pelo contrário, a luta nos fortalece porque ela está presente em nossas vidas desde o momento em que nascemos na periferia”, reafirma.
Para que as mulheres negras exerçam seus vários potenciais, elas também precisam de espaço, diz Michelle. “Os partidos devem dar estrutura para que nós possamos desenvolver nossos trabalhos e nossas construções políticas. Não se limitar à cota eleitoral. Os olhares dessas mulheres têm muito a contribuir, pois geralmente vivem em situações precárias e sentiram na pele a falta de políticas públicas, e que por isso sabem o que é prioridade”.
Eleições 2022: perspectivas afroamazônidas
“Nós disputamos a política nos apresentando como uma alternativa à velha política. Uma alternativa de esquerda, feminista, ecossocialista, antirracista e em defesa dos direitos humanos”, é o que espera Vivi Reis para a política como um todo e para 2022.
Parte integrante da Coalizão Negra por Direitos, o Cedenpa segue a mesma linha da organização: ampliar a presença da população negra no poder institucional. “Estamos trabalhando nestas Eleições para eleger pessoas negras engajadas no Movimento Social, pessoas negras que entendam o racismo como centralidade de todas as desigualdades existentes no país, estruturando todas as desigualdades existentes”.
Ela relembra que o Pará ainda não conseguiu eleger uma mulher negra da região para o parlamento. “Esse ano, com certeza, pretendemos colocar. Hoje, temos a Vivi Reis, que era suplente de Edmilson Rodrigues. E a gente pretende colocar mulheres negras”.
Para Zélia, a presença de mulheres afroamazônicas pode servir enquanto um processo pedagógico para a política brasileira. “É um novo olhar que vai chegar lá. É pedagógico, inclusive, saber que na amazônia existem pessoas negras, que há uma amazônia negra”.
Para Vivi, toda a diversidade dos povos na Amazônia precisa ecoar nos espaços de poder. “Quando a gente ocupa esses espaços, trazemos uma nova perspectiva ao apresentar projetos que tenham relação com o que somos, de priorizar a indicação de recursos do orçamento público para áreas e setores onde estamos presentes e onde se prioriza os mais vulneráveis fazendo uma intervenção capaz de conectar os debates que acontecem em nível nacional e internacional com a vivência e com o acúmulo que nós temos, ou seja, a partir da perspectiva de uma mulher negra amazônida.”
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Esta reportagem integra o projeto “Recados sobre Nós”, realizado pelo Nós, mulheres da periferia em parceria com a Oxfam Brasil.
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