Joana e Pjhcre Akroá Gamella: duas imagens de uma vida de ameaças

No Brasil, enquanto a imagem de Joana luta para provar que é indígena, a de Pjhcre Akroá Gamella resiste às ameaças para salvar a pele do próprio território.

13|12|2021

- Alterado em 17|05|2024

Por Marcela Bonfim

“O índio só tem vida se tem terra”; essa é a imagem-vital de Joana ou Pjhcre Akroá Gamella, dois planos que apontam a terra, e a vida, como reflexos essenciais de sua própria natureza; tendo na terra, à sua condição de existência; ao passo que resistindo às (in)visíveis e violentas engrenagens de um capital orientado pela racialização de corpos, com a imagem fundamentando a categorização da desigualdade em que vivemos enquanto visualidade.

“A luta territorial é o renascimento de uma história que estava invisibilizada, mas que o fazendeiro faz questão de despertar, porque eles começaram botar o arame e começaram a desmatar nosso território outra vez”.

Como é viver dentro de uma imagem tida sujeita, suportando uma carga imaginária racial, e viciada em estigmas na desqualificação de sua identidade e cultura, pela cobiça de seu território? Como é perceber os próprios limites expostos e violentados, ao passo que invisibilizados diante da busca por direitos?

Refletir a imagem-vital de Joana, que por si já é uma formação coletiva, cheia de ângulos de vida como também das sombras da morte; é exatamente perceber o alcance do imaginário estrutural na orientação das experiências humanas como imagem; ainda mais quando acrescentamos o apagamento das inúmeras identidades, que como Joana ou Pjhcre, ainda sofrem com o extermínio de suas pluralidades, deslocando esta questão aos nossos planos mentais, de como nos colocarmos em frente do nosso nosso próprio espelho, e nos imaginarmos às sombras de uma imagem que padece de provas e ameaças?

Ao ampliar a discussão, enveredamos ao campo das relações, tendo como base primordial, o exercício das proximidades e seus efeitos na reconstrução de um direito orientado à pluralidade no sentido da imaginação, dando espaço a Ana Mendes, fotógrafa e antropóloga visual, com sua imagem-vital de Pjhcre Akroá Gamella, ou Joana; adentrando nas camadas interiores de uma luta pelo direito de existir, ao expor os próprios limites de suas sensações a partir de sua estreita relação com Pjhcre.

Confira abaixo o relato de Ana Mendes

As sombras de revólveres imaginários também disparam

Sentadas na cama do lugar onde eu estava escondida, Pjhcre Akroá Gamella me perguntou num só golpe “Tá com medo do que? Da tua sombra?” Não. Eu estava com medo de um carro, com placa não identificada, que fazia um mês estava parado em frente a minha casa com um homem dentro. Todos os dias ele chegava, mais ou menos no mesmo horário, e ficava lá, parado observando. Placa: Belo Horizonte. “A placa é fria, Ana”, me dizia um amigo jornalista que apurava a origem do automóvel todas as vezes em que um outro modelo de carro aparecia pra me vigiar.

Eu havia saído de casa e só voltava lá pra pegar roupas e alguns objetos. Minhas amigas empacotaram o restante das minhas coisas e depois de um pouco mais de um mês fui embora de São Luís (MA) onde morava há de quatro anos. Fui embora porque não sabia o que fazer. Tentei denunciar, ativar apoios, mas o carro continuava visitando a minha casa. E não tem psicológico que aguente isso.

Pjhcre nunca pode sair da sua casa nas incontáveis vezes em que foi intimidada. Certa vez, ela foi comprar xerém para as galinhas na área urbana de Viana e foi empurrada por um homem dentro de uma loja. “Eu caí em cima dos sacos de ração e ele foi embora”. Ela, que foi ajudada pelos funcionários do estabelecimento a se levantar, pagou o xerém e saiu. Mas quando chegou no mercado central, onde pegaria a pick up de volta para aldeia, lá estava o mesmo homem. “Ele entrou no mesmo carro que eu. Ficava me encarando e quando eu desci, em frente a minha casa, ele fez um gesto de revólver na minha direção.”

Quando eu saí de São Luis, a pressa e o medo não me impediram de me despedir das pessoas e lugares que eu gostava. Por isso, levei Pjhcre à praia pra ficarmos um momento juntas, à sós. Pegamos o ônibus Raposa São Francisco e fomos até o Mangue Seco. No meio da viagem, na Estrada da Raposa, entrou, pela porta de trás, um cara careca e de óculos escuro. Ele estava vestido de preto dos pés à cabeça. Tinha uns 50 anos. Sentou em um lugar onde pudéssemos vê-lo, segurou no cabo de ferro perpendicular ao chão e abriu os dois dedos indicadores em nossa direção e levantou o polegar. Outra vez, a arma. Lentamente com a cabeça ele acenava “sim”.

Pjhcre e eu descemos do ônibus e caminhamos caladas até a beira do mangue. Os caranguejos vermelhos que se escondiam rapidamente conforme a gente ia passando, nos fizeram sorrir. Pjhcre correu e pegou um deles na mão “perá, deixa eu tirar uma foto!”. A gente até estava feliz. Mas não me saía da cabeça o sorriso sarcástico no canto da boca daquele homem no ônibus. Fiquei me perguntando mentalmente se aquilo realmente tinha acontecido. E lembrei que Pjhcre também viveu esse conflito quando foi empurrada. Nenhuma ameaça por escrito, nenhuma ligação intimidatória. Nenhuma palavra. Foi então que entendi: revólveres imaginários também disparam. “Tá com medo do que? Da tua sombra?”.

*Para esta coluna adotamos tanto o nome branco de Joana, quanto o nome indígena de Pjhcre Akroá Gamella. 

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Marcela Bonfim É economista e vive em Rondônia. Adquiriu uma câmera fotográfica e no lugar das ideias deu espaço a imagens de uma Amazônia afastada das mentes do lado de fora. Escreve sobre imaginários, imagem, negritude.

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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