No Congo, o estupro de mulheres é prática de terrorismo histórica

Ao menos 80 funcionários de programas humanitários contra o ebola - um quarto deles empregados pela OMS - foram acusados de assédio, constrangimento e estupro contra mulheres em vulnerabilidade na República Democrática do Congo.

18|10|2021

- Alterado em 19|10|2021

Por Sâmia Teixeira

No início deste mês, um novo surto de ebola foi identificado na República Democrática do Congo. O que determinou novamente o estado de emergência sobre a doença foi a morte de uma criança de 3 anos em 6 de outubro, na cidade de Bení, no nordeste do país.

A República Democrática do Congo é um dos maiores países da África, com uma população de 65 milhões de pessoas. A situação preocupante da epidemia na região é antiga, com os primeiros registros de infecção datados em 1976.

Se tem algo que todos aprendemos com este mais de um ano e meio de pandemia é que, com as crises sanitárias, uma série de outros problemas sociais são agravados. E a crise atinge em cheio mulheres e crianças.

Em meio às campanhas de enfrentamento ao ebola, denúncias sérias vieram à tona no mês de setembro graças ao trabalho de investigação de jornalistas da The New Humanitarian e da Fundação Thomson Reuters.

A reportagem que essas organizações produziram revelou que ao menos 80 funcionários de programas humanitários contra o ebola – um quarto deles empregados pela OMS (Organização Mundial de Saúde) – , foram acusados de assédio, constrangimento e estupro contra mulheres em vulnerabilidade no país.

Os relatos são de casos que ocorreram no período de 2018 e 2020, contra trabalhadoras contratadas temporariamente para cargos como cozinheiras, faxineiras e assistentes humanitárias.

Elas contaram sob anonimato que foram assediadas em hotéis, escritórios e hospitais. Que muitos prometeram emprego em troca de sexo ou, quando já contratadas, foram ameaçadas de demissão caso não aceitassem o estupro.

Segundo a reportagem, pelo menos duas mulheres afirmaram que ficaram grávidas em decorrência dos abusos.

O caso envolveu não somente a OMS, mas também importantes organizações internacionais como o Médicos Sem Fronteiras, a Oxfam, a Unicef e outras ONGs de proteção a migrantes e refugiados.

Por isso, o caso ganhou alguma visibilidade na imprensa. Mas a realidade dessas mulheres em situação de vulnerabilidade pode ser ainda mais dura, uma vez que o estupro é e sempre foi utilizado como uma forma de coação, expressão de dominação, e sobretudo aplicado em contextos de crise e conflito social, político e econômico.

Youyou Muntu Mosi é militante congolesa engajada e defensora dos Direitos Humanos. Perguntei a ela se considerava que a atenção dada ao caso só ocorreu devido ao envolvimento de tais instituições. Ela disse que “sim, certamente”, mas que, “infelizmente, não se trata do primeiro episódio”.

“Qualquer ato de abuso sexual deve ser condenado, mas se torna ainda mais grave quando cometido por membros de uma organização humanitária como a OMS”, ressaltou.

Ao resgatar mais exemplos do passado, Mosi citou outro crime, desta vez cometido por agentes da Monusco (Missão das Nações Unidas para a Estabilização da República Democrática do Congo), em 2017.

À época, foram denunciadas cinco ocorrências de estupro. “O primeiro caso de abuso foi cometido por um observador militar A paternidade da criança que nasceu em decorrência do estupro chegou a ser reconhecida”.

Mosi detalhou que mais dois casos envolviam funcionários internacionais da missão da ONU, e os dois últimos diziam respeito a soldados sul-africanos em Goma, leste da República Democrática do Congo.

Segundo levantamento feito pela Associated Press, de duas mil queixas de abuso e exploração sexual feitas contra as chamadas forças de paz da ONU em todo o mundo nos últimos 12 anos, mais de 700 ocorreram no Congo.

A Monusco custa cerca de 1 bilhão de dólares por ano. Ainda assim, como visto, a missão não conseguiu evitar que 35% dos casos de abusos do tipo no mundo inteiro viessem dali mesmo.

Estupro: método de guerra

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Youyou Muntu Mosi é militante congolesa.

©divulgação

A ativista Mosi relatou que a maioria dos atos bárbaros ocorridos nos últimos anos na República Democrática do Congo diz respeito a atos de violência sexual. “O estupro tornou-se uma arma de guerra na República Democrática do Congo”, denunciou.

A militante conta ainda que as informações contidas em um mapeamento “descrevem violações graves de direitos humanos e do direito humanitário internacional cometidas na RDC entre 1993 e 2003”.

O relatório, que dedica particularmente capítulos sobre os crimes de violência sexual contra mulheres e meninas, aponta que dentre os 617 casos de violações muitos são os de violência sexual.

A estratégia violenta contra as mulheres adotada em tempos de conflitos é antiga. E por isso Comunidade e Lei Internacionais têm especificidades sobre o assunto.

O Artigo 27 da Convenção de Genebra Relativa à Proteção de Pessoas Civis em Tempo de Guerra, de 1949, já incluía defesa da mulher “contra qualquer ataque à sua honra, em particular envolvendo estupro, prostituição forçada ou qualquer forma de agressão indecente”. A disposição foi mantida em um protocolo adicional adotado em 1977.

Em 2008, o governo do Congo reconheceu viver uma crise de estupros em massa no país – desde o início das situações de conflito em 1998, e a ONU definiu o país como “a capital mundial do estupro”.

Condenação perpétua, para as mulheres

Assim como em qualquer outra sociedade machista, a mulher congolesa que sofre abuso sexual é violentada muitas vezes.

A mulher congolesa é discriminada socialmente por ter sido violada, sendo destratada inclusive pelos companheiros e às vezes não mais aceita até mesmo pela família.

Mosi relata que as mulheres nessa situação “estão mais sujeitas à precariedade, ao isolamento, ao desemprego e a certa estigmatização social, ligada precisamente às violências sexual, física e/ou psicológica sofridas”.

Da crise de 2017 relatada por Mosi, há ainda a denúncia de uma menina de 14 anos que ficou grávida em decorrência do estupro. Ela, que já era órfã por consequência de conflitos locais, foi violentada em um campo de refugiados, onde supostamente deveria estar protegida.

Nos vilarejos, crianças filhas de pais abusadores estrangeiros são excluídas socialmente.  Os filhos dos soldados das missões de paz são chamados de “muzungus”, que em suaíli significa pessoa branca.

Neste contexto de isolamento, as mães cuidam umas das outras, compartilhando responsabilidades e cuidados entre si e com as crianças. São, em maioria, condenadas a uma vida cheia de estigmas, pobreza e violência.

Corrupção e exploração

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Ponto Unicef durante atividades que marcam o Dia da ONU em Goma, RDC. © MONUSCO/Michael Ali

Imagem do documentário "Child of Congo: From War to Witches" © Peace Corps Friends of DR Congo / Flickr

Canal para água de irrigação no Congo. © GlobalHort Image Library

Acampamento Bongo Mugunga no Congo. © Enough Project / Fickr

Além dos abusos sexuais, a nação como um todo é violada e saqueada: essa imoralidade, ao mesmo tempo, movimenta dinheiro na região e destrói as vidas das mulheres.

Uma denúncia feita em 2015 revelou que um esquema de fraude e desvio de verbas para ajuda humanitária no Congo beneficiou empresários e agentes humanitários de organizações internacionais e locais.

Infelizmente, essa é uma prática histórica, em um país que já foi colônia do rei da Bélgica Leopoldo II, e que sofre as consequência da exploração, subordinação e limpeza étnica desde muito tempo.

Para falar sobre o período de colonização belga, um outro artigo inteiro seria pouco. Mas há podcasts e vídeos a respeito. Tem uma sugestão ao final do texto.

O tempo passou – o governo da Bélgica chegou a reconhecer os crimes contra humanidade na RDC – mas os abusos, contra a terra e as mulheres, parecem ser quase uma convenção.

Um exemplo atual da exploração colonial e capitalista, que vê o continente africano como uma terra sem povo, aberta para o lucro e espúrio, foi a remoção forçada de 10 mil famílias na cidade de Kasulo, sudeste do Congo para exploração de cobalto para a Apple, Tesla, Microsoft, Dell, Google e outras grandes empresas de tecnologia.

De acordo com informe do Banco Mundial, “se as atuais circunstâncias permanecerem as mesmas, a pobreza global se tornará cada vez mais africana, passando de 55% [dado de 2015] para 90% em 2030”.

Presas a esta realidade, as mulheres estarão cada vez mais vulneráveis e suscetíveis a sofrer ameaças e a ter seus corpos violados, para receber em troca algum dinheiro e nenhuma dignidade. Sobrevivendo dentro de um ciclo vicioso de abusos e violência.

A resistência é possível

A ativista Youyou Muntu Mosi detalhou não somente o histórico de alguns dos casos de abusos e de como o método de violência é utilizado em tempos de conflito, mas também falou sobre como iniciativas sérias e importantes impactam positivamente a vida dessas mulheres, que não são vítimas, são mulheres trabalhadoras, filhas, mães – como nós -, tentando sobreviver às consequências de um emaranhado histórico de exploração de terras, minérios e corpos na região.

Um exemplo bem relevante envolve um ganhador do Prêmio Nobel da Paz, o Dr. Denis Mukwege. Ela contou que “a Fundação Mukwege e a Fundação Panzi – ambas filiadas ao Prêmio Nobel da Paz, Dr. Denis Mukwege – há muitos anos não só tratam as vítimas de violência sexual, mas também as ajudam a se reintegrar na sociedade, enquanto defendem seus direitos, exigindo o reconhecimento dos preconceitos que sofreram”.

“Nas zonas de conflito, as batalhas são travadas nos corpos das mulheres. Quando se desencadeia uma guerra, não há fé nem lei. Quem sofre são as mulheres e as crianças”

Mosi explicou também que essas organizações trabalham pelo que denominou “justiça internacional e transitória”, algo que para nós entendemos como reparação histórica para uma transição, e assim demandar “acesso ao Fundo Global criado para sobreviventes de violência sexual em tempos de conflito”.

“Nas zonas de conflito, as batalhas são travadas nos corpos das mulheres. Quando se desencadeia uma guerra, não há fé nem lei. Quem sofre são as mulheres e as crianças”, disse Mukwege em entrevista concedida em 2010 numa conferência internacional realizada no Brasil.

Mais que justiça, o fim do genocídio

Como em qualquer outro país de passado injusto, violento e silenciado, o resultado dessas agressões aos povos vulneráveis e às minorias persiste e assombra. São cicatrizes percebidas no solo de uma nação, na pele dos indivíduos e nas bases da sociedade.

No Brasil, as marcas da escravidão são evidentes. Escancaram a falsa democracia racial. A ditadura deixou pelo caminho rastros de sangue, já secos, com poeira acumulada em anos de acobertamento e negação.

E aqui abro um parênteses: numa semana em que a justiça militar condenou membros do exército pelo assassinato do músico Evaldo Rosa e do catador de latinhas Luciano Macedo, vítimas fatais do chamado “caso dos 80 tiros” (em verdade foram ao menos 257 disparos de fuzil contra civis), pra mim fica a sensação de que obter justiça é só a primeira demanda.

Alivia? Em partes. Deve ser considerado pela importância histórica? Certamente.

Aliás, ainda aguardamos justiça para tantos outros casos. As crianças João Pedro, Ágatha, Kauã. A grávida de quatro meses, Kathlen Romeu, a mãe que defende o filho, Marisa de Carvalho, a trabalhadora arrastada pela viatura, Claudia da Silva, a parlamentar e ativista Marielle Franco. Inúmeros.

Mas creio que não nos completa. O que se quer com relação a casos tão violentos assim, em qualquer parte do mundo, não é apenas justiça, mas também o cessar. O fim do genocídio e da limpeza étnica motivada por racismo, machismo, ódio e ganância.

Como dizia Che Guevara, um revolucionário que inclusive viu no Congo possibilidades de revolução, “não há fronteiras numa luta de morte”.

Considero que esse senso de integração serve como inspiração, porque se a história sombria contra os povos pode nos perseguir, lendas e exemplos de combatividade também se tornam espectros que abalam os de cima, nessa estrutura de exploração como um todo.

Fica então o nosso dever de dar as mãos às irmãs congolesas, de lamber feridas, erguer os punhos e segurar nossa dignidade entre os dentes por uma nova realidade. Nesse meio tempo, deixemos nosso recado: não terão nosso silêncio.

Conteúdos para se aprofundar no tema

  • O podcast “ABC da Geopolítica” tem um episódio [Congo, o coração da África] que trata especificamente sobre a colonização belga no Congo, as guerras civis e a chamada “maldição dos recursos naturais”.
  • O documentário de 2007 “The Greatest Silence: Rape in Congo” (O grande silêncio: estupro no Congo), com direção de Lisa F. Jackson, norte-americana também vítima de estupro, traz relatos fortes de violência sexual contra as mulheres no Congo.
    The Greatest Silence: Rape in the Congo

Sâmia Teixeira é jornalista e mãe de gêmeas. Escreve sobre movimentos sociais e o mundo sindical internacional. Edita o Nidal al Omal, programa para o mundo árabe sobre as notícias das trabalhadoras e trabalhadores na América Latina.

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Sâmia Teixeira é mãe de gêmeas e jornalista. Foi assessora da União Nacional Islâmica, onde criou o jornal Iqra. Atualmente integra a comunicação da Rede Sindical Internacional de Solidariedade e Lutas, escreve sobre movimentos sociais e mundo sindical internacional.

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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