Virgindade, controle social para mulheres

Colunista Maria Chantal questiona associação da virgindade feminina à pureza; e aborda como o tema afeta a vida de mulheres

19|10|2023

- Alterado em 19|10|2023

Por Redação

É interessante como encontrar amigas de longa data tem a capacidade de nos fazer refletir sobre o tempo. Recentemente, encontrei uma amiga e com ela refleti sobre o perigo particular que as mulheres correm em suas primeiras relações, devido à falta de educação sexual, ao desejo e ao desconhecimento profundo de si mesmas.

Preocupa-me a inocência daqueles que estão começando. Preocupa-me aqueles que precisam confiar que aprenderão sobre sexo na televisão, nas histórias compartilhadas por amigas que têm “mais experiência”, na aula de biologia, ou que em seu município não haverá um projeto de lei que defenda a abstinência sexual como método contraceptivo entre jovens. Preocupa-me a inocência de meninas e mulheres que ainda não entenderam que a maioria de nós vive em sociedades conservadoras e como isso afeta seus corpos. Com base na justificativa da religião e do bem-estar social, está se impedindo o acesso delas ao prazer.

Um exemplo desse controle corporal através de uma narrativa é o conceito de virgindade, que é interpretado como “imaculado” e “puro”, tornando-se uma ferramenta para classificar as mulheres como respeitosas ou não. Por que o respeito às mulheres está relacionado à sua vida sexual? Veja o caso do concurso público da polícia da Bahia, que exigiu exames ginecológicos de virgindade, onde aquelas que seriam virgens estariam isentas de fazer esse tipo de exame, mas, como consequência, teriam que provar através de um laudo médico que são virgens.

Por que é tão desejável que as mulheres sejam virgens?

Uma possível resposta é que o conceito de virgindade se baseia na visão da mulher apresentada na Bíblia Sagrada, um livro religioso cristão e católico. Por exemplo, em Deuteronômio 22:13-17, é mencionada uma recomendação sobre como provar que uma mulher estava casando virgem, mostrando o lençol com sangue. Veremos a seguir que essa expectativa é prejudicial quando se trata de sexo consensual entre jovens e adultos.

Entende-se que virgens são aquelas que escolhem se manter castas, desconhecem o sexo e só darão vazão ao seu desejo após o casamento (Hebreus 13:4, 1 Coríntios 7:9, 1 Coríntios 6:18). Outro ponto crítico é que o conceito de virgindade é sexista e cis-heteronormativo, tendo mais impacto na vida das mulheres e acreditando que só existe um tipo específico de relação sexual. Os impactos dessa crença podem ser observados na forma como uma mulher que não se relaciona com um homem é tratada em unidades de saúde, como se não estivesse tendo relações sexuais. Isso é evidenciado por uma pesquisa realizada com 150 mulheres lésbicas, que tinha o objetivo de “identificar as dimensões da vulnerabilidade das mulheres que fazem sexo com mulheres associadas às infecções sexualmente transmissíveis” e demonstrou que a heteronormatividade é um dos motivos para que mulheres que se relacionam com mulheres estejam vulneráveis.

Essa é uma abordagem que coloca a vida da paciente em risco, uma vez que as infecções sexualmente transmissíveis podem ser transmitidas desde que haja exposição a fluidos corporais e genitais. Isso vai além da penetração pênis-vagina. Aproveito para lembrar que que sexo anal é sexo, sexo oral é sexo, a inserção de dedos ou brinquedos sexuais é sexo, e a lista continua.

Outro perigo relacionado ao conceito de virgindade é a ideia de que, para ser verdadeiramente virgem, além de não fazer sexo, a pessoa não deve saber ou ler sobre sexo, devido à regra de “pureza” (quanto mais longe do sexo, mais pura). Isso é um grande equívoco. Mesmo que você opte por se casar virgem, é crucial que você saiba o que é o sexo e conheça o seu próprio corpo, em vez de esperar que seu parceiro saiba por você. Além disso, a educação sexual vai além de aulas que ensinam sobre o sistema reprodutivo ou o uso de preservativos internos e externos. Envolve também o ensino do consentimento e a capacidade de identificar a violência sexual, conhecimentos que podem ser ferramentas no combate à cultura do estupro e fornecer indicadores reais sobre os índices de violência sexual. É importante ressaltar que o atual índice de 2 casos de estupro por minuto (dados do IPEA 2023) não é insignificante, mas o próprio Instituto afirma que isso representa apenas a identificação de menos de 5% dos casos relatados pelo sistema de saúde, tornando os dados importantes para a formulação de políticas públicas.

A virgindade é um conceito que afeta muito mais a vida de meninas, mulheres e pessoas com vulva, que têm sua vida sexual controlada para que permaneçam castas. Isso ocorre porque, em muitas culturas e crenças, o respeito e a virtude da mulher estão ligados à espera até o casamento. Até mesmo a anatomia vaginal é usada como uma ferramenta para verificar se uma pessoa é virgem, embora nem sempre seja tão óbvio, o que nos leva a falar sobre o hímen.

Hímen

De acordo com Abdelmonem Awad Hegazy, professor de anatomia e embriologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Zagazig, no Egito, “O hímen é uma membrana mucosa fina que fecha parcialmente o orifício vaginal. Sua forma varia muito e sua elasticidade aumenta após a puberdade, permitindo a penetração peniana sem ruptura e sangramento.” Em seu artigo escrito em conjunto com Mohammed O Al-Rukban, “Hímen: fatos e conceitos”, conclui-se que “o hímen não é um indicador preciso de virgindade. O conhecimento da anatomia do hímen e suas anormalidades é essencial para eliminar equívocos a seu respeito. O termo ‘virgindade’ é um conceito social e cultural, e não existe uma definição médica precisa para ele. A presença ou ausência do hímen não é um indicador confiável de se uma pessoa teve ou não relações sexuais”.

Dada a importância e a responsabilidade que essa parte tão pequena em alguns corpos carrega, é crucial compartilhar o que sabemos sobre o hímen até o momento:

Nem todo mundo nasce com um hímen.

Existem variações; nem todo hímen é igual. Existem hímens anulares, crescentes, septados, cribriformes e fimbriados.

O hímen que fecha completamente a entrada da vagina é raro (1 em cada 2.000 nascem com esse tipo de hímen). Ele é chamado de imperfurado e é importante diagnosticá-lo precocemente, pois pode causar retenção de fluidos uterinos e vaginais, dores menstruais e, em alguns casos, retenção de urina.

Após a puberdade (entre 8 e 13 anos), o hímen tende a se tornar mais elástico devido à influência de hormônios como o estrogênio, que começa a ser produzido em maior quantidade nessa idade.

O hímen não possui vasos sanguíneos, portanto, é improvável que o sangramento esperado ocorra devido à sua ruptura. O sangramento durante a penetração é mais provavelmente causado pela ruptura de vasos sanguíneos das paredes vaginais. A vagina reage ao nervosismo e à insegurança, de modo que quanto mais nervosa uma pessoa estiver, maior será a probabilidade de sua vagina se contrair, resultando em menor lubrificação e maior propensão ao sangramento durante a penetração. No entanto, é importante destacar que, no corpo, nem tudo é tão óbvio, e reflexos fisiológicos, contexto e anatomia devem ser considerados.

Não há consenso sobre a função biológica do hímen. Alguns afirmam que o hímen não tem função alguma, enquanto outros estudiosos argumentam que, nos primeiros anos de vida, sua função é proteger a entrada da vagina contra as fezes. No entanto, a unanimidade está na compreensão de sua importância social, que supera em muito a importância biológica.

O hímen pode ser rompido não apenas pela penetração peniana, mas também por meio de esportes intensos, inserção de objetos, uso de absorventes internos e procedimentos cirúrgicos.

A himenoplastia é a cirurgia de reconstrução do hímen, que, em alguns países, visa proteger a vida e a honra da mulher, que precisa provar sua virgindade com base na observação do hímen.

Organizações como a ONU Direitos Humanos, ONU Mulheres e a Organização Mundial da Saúde (OMS) pedem a proibição de testes de virgindade ou testes de “dois dedos” que avaliam se uma mulher é virgem com base na observação do hímen, o que a torna elegível ou não para um casamento futuro. Essas organizações consideram essa prática uma violação dos direitos humanos e uma forma de discriminação de gênero, que causa danos psicológicos e físicos às mulheres.

Minha dica final é que, individualmente, repensemos a ideia que temos sobre virgindade e como isso afetou nossas vidas. Seja devido à falta de acesso à educação sexual ou a um “terrorismo sexual” disfarçado de transmissão de conhecimento, reflita sobre quem realmente se beneficia da castidade.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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