‘Saúde pública é um direito e não um favor’, diz Maria Inês Barbosa

Assistente social e pesquisadora falam sobre o papel das mulheres negras no passado e no presente da saúde pública brasileira

Por Redação

15|01|2022

Alterado em 27|01|2022

Por Beatriz de Oliveira e Semayat Oliveira

Chegando ao final de mais um ano marcado por uma crise sanitária, é fundamental avaliar quais são os pontos de atenção para a saúde pública no Brasil para os próximos anos.

O racismo tem efeitos evidentes na saúde da população negra. Quem faz essa afirmação é a assistente social e doutora em Saúde Pública Maria Inês Barbosa. Diante de fatores históricos e da atual condição do país, ela reforçou que é preciso considerar esse fator na formulação de políticas públicas. 

“Ser mulher, ser negro, ser indígena, ser pobre impacta nas suas condições de nascer, viver, adoecer e morrer”, destaca. Se referindo ao movimento de mulheres negras e ao movimento negro de forma geral, ela diz que foram as pessoas envolvidas na militância que desenvolveram estudos e estratégicas para a saúde da população negra. 

Um dos frutos dessa articulação é a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), instituída em 2009. Trata-se de um compromisso firmado pelo Ministério da Saúde no combate às desigualdades no Sistema Único de Saúde. A política faz parte do Estatuto Estadual da Igualdade Racial (LEI Nº 12.288/10) e,  mesmo com amparo legal, ainda não é cumprida como deveria. 

De acordo com dados publicados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), relacionado ao Perfil dos Municípios Brasileiros (MUNIC), de 2018, apenas 28% dos municípios brasileiros implementaram as medidas da PNSIPN no planejamento municipal de saúde.

Maria Inês nos convida a pensar na saúde para além da área biológica, mas também num contexto histórico, econômico e social. E chama atenção para a saúde como um direito de toda população e como um dever do Estado. É o que prevê o Sistema Único de Saúde (SUS), criado a partir da Constituição Federal de 1988, que oferece acesso integral, universal e gratuito a nível nacional. 

E para Fabiana Pinto, sanitarista, pesquisadora e integrante do projeto Mulheres Negras Decidem, o aumento da participação de mulheres negras na política tem sido fundamental para o aprimoramento de políticas públicas de saúde. 

Apesar do aumento de candidatas eleitas, ainda é baixa a proporção de mulheres nesse espaço. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicam que há 2% de mulheres negras no Congresso Nacional. Ainda assim, a presença desse grupo tem resultado em uma influência e ações importantes.

“Num contexto mais recente, temos alguns exemplos do impacto do avanço de mulheres negras comprometidas com políticas públicas universais, com uma visão de saúde ampliada. Os primeiros projetos de lei para criar uma fila única para os leitos de UTI no início da pandemia são de mulheres negras”, conta Fabiana. 

As  entrevistas  foram realizadas pelo Nós, mulheres da Periferia em parceria com a Fundação Rosa Luxemburgo, que recentemente publicou o livro 

‘A radical imaginação política das mulheres negras’, organizado pelo grupo Mulheres Negras Decidem e o Instituto Marielle Franco e publicado pela editora  Oralituras. 

Durante a conversa, ambas destacam a participação das mulheres negras no processo de construção de políticas públicas em saúde e alertam que há um apagamento desse grupo. “A história tradicional sobre a saúde pública no Brasil e a história da construção do SUS costuma privilegiar determinados atores”, aponta Fabiana. 

Confira a entrevista completa!

Nós, mulheres da periferia – Maria Inês, como você define saúde? O que significa ser um ser com saúde? 

Maria Inês Barbosa – Temos que pensar a saúde para além do biológico e também inserir esse pensar num contexto histórico, econômico e social. Se pensarmos enquanto ciência, tivemos e temos grandes avanços. Toda a compreensão do campo da saúde coletiva e dos determinantes sócio-culturais do processo saúde e doença é histórico. 

Falando do movimento de homens e mulheres negras, foi necessário considerar a existência de determinantes a partir de uma leitura que compreenda o patriarcado, a dominação econômica por classes e o racismo. A grande contribuição que trouxemos para esse campo de discussão foi chamar a atenção de que o racismo é um dos determinantes da saúde. Porque embora o campo da saúde coletiva seja bastante avançado, em especial na América Latina, o racismo não era considerado.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) define saúde como o mais completo bem estar físico, mental e social e não a ausência de doença. Mas isso tem uma história, com outras contextualizações e implicações na saúde. O conceito de saúde da 8ª Conferência Nacional de Saúde, tem o seu tempo e historicidade, afirmando que saúde é ter casa, educação, trabalho, transporte. É um grande avanço, que mais tarde será discutido no âmbito das Nações Unidas, quando se cria o conselho de determinantes sociais em saúde, mas o racismo não foi considerado.

Então, o campo sobre a saúde da população negra fomos nós que criamos, nos voltando para a universidade, trazendo esse olhar, em especial nós, que estávamos na militância, seja na organização de mulheres, seja na organização do movimento negro de forma mais geral. Fomos nós que cunhamos isso.

Nós – Pensando na nossa atual condição, qual é a nossa dificuldade em compreender a saúde como um direito? 

Maria Inês Barbosa – Primeiro, vou falar sobre a importância da saúde pública: saúde é um direito universal, que não pode ser mercantilizado. É longa a trajetória da humanidade para considerar isso.  Pensar na saúde, no coletivo, em como o indivíduo adoece, vai além da biologia. Depende do corpo atingido e como esse sujeito é inserido na sociedade.

A saúde tem que ser efetivamente um direito, um dever do Estado, que foi o que conquistamos na Constituição, como parte de um longo processo de luta e resistência. Nós somos um dos poucos países do mundo que logrou este feito.

Sabemos que [essa conquista] fez parte de uma reforma que não revolucionou a sociedade em si, mas trouxe uma contribuição que vai de encontro à lógica capitalista. Ao estabelecer a saúde com direito de todos e dever do Estado, a lógica deveria ser outra, e daí a luta constante que nós temos com essa contradição.

Costumo dizer que ‘o outro lado não dorme’. Temos uma série de medidas que foram tomadas para solapar isso, para que não percebamos [a saúde] enquanto direito. Avançamos enquanto sistema único, mas preservamos a lógica anterior da saúde pública, que funciona por caixinhas e por programas. Mas é preciso desmontar essa forma de pensar para que as pessoas considerem que se trata de um direito e não um favor.

Ainda temos a perspectiva de uma política meritocrática. ‘Eu tenho porque trabalho registrado’, ‘tenho determinada função ou determinado padrão de assistência e serviços’. E os demais são alvo da caridade, da assistência. Uma das leituras que a gente faz é que são políticas residuais. Entenda-se residuais como resíduos mesmo. É um favor que o Estado presta. 

Se não avançarmos em direitos de cidadania por parte da população e pelos trabalhadores e trabalhadoras da saúde, eles também farão uma leitura de que estão te fazendo um favor. 

Nesse sentido, a pandemia traz para as pessoas, de forma mais ampla, qual é o papel de um sistema de saúde, que vai além da assistência. È perceber que o alimento que você come, por exemplo, também depende do SUS. É esse sistema que garante que este será um alimento saudável.

Nós – Fabiana, quando a gente fala na consolidação do SUS fala-se muito do movimento de sanitaristas, mas as mulheres negras foram fundamentais. Então, que história é essa que a gente ainda precisa acessar, de como mulheres periféricas e negras contribuíram para criação dessa política?

Fabiana Pinto – A história tradicional sobre a saúde pública no Brasil e a história da construção do SUS costuma privilegiar determinados atores. Entretanto, outros grupos também foram grandes responsáveis por avanços na década de 70, 80 e na consolidação da Constituição, mas são esquecidos como agentes políticos. O próprio Movimento Mulheres Negras Decidem retoma como as mulheres negras foram agentes políticos na construção das principais políticas públicas estruturantes do nosso país. 

Então, pode ser comum associar o movimento da reforma sanitária, um movimento que não passa por comunidades tradicionais, por movimentos sociais, por movimentos de base. Isso é ignorado propositalmente. No entanto, pensando nessa construção de orientação de políticas públicas nesse período, os acordos dos movimentos de profissionais que contribuíram para a criação de programas que, depois, se configuraram como políticas no nosso sistema, a cor dessas pessoas é a cor negra. 

Hoje, a Política Nacional de Atenção Básica, que teoricamente é a política estruturante, tem seus primórdios no programa de Saúde da Família. Se a gente for olhar para uma perspectiva mais longa, chegamos  no programa de Agente Comunitário de Saúde. E quem eram as pessoas que pensaram essas políticas e aprimorando ao longo da história? Essas pessoas éramos nós, eram os movimentos sociais, movimento de trabalhadores. A história exclui movimentos comunitários. Essas grandes lideranças não são vistas como figuras pensantes e pessoas que formularam também essas políticas. 

O movimento de mulheres negras atual têm um papel fundamental, que é trazer de volta esse lugar, que é negado quando analisamos esse processo de construção histórica, de quem conta a história da reforma sanitária, da consolidação do SUS, da constituição do SUS . 


Nós – Inês, como o movimento de mulheres negras e o movimento negro continuam atuando no direito à saúde? 

Maria Inês Barbosa – Acho importante chamar atenção para todo o nosso processo de conhecimento em termos de saúde. Tem-se uma sabedoria e um conhecimento que preservaram e cuidaram da vida. Tem um componente da espiritualidade, da forma de ser, estar e pensar no mundo que se contrapõe a essa formulação no campo da Ciências da Saúde, que é racional. É importante reconhecer que também somos portadores de conhecimento nesse campo, principalmente quando falamos em romper com a colonialidade do poder. E trazendo um pouco do conceito da interculturalidade, que é uma junção de diversas formas de ver, é justamente como isso se caracteriza enquanto conhecimento da humanidade. Mas para reconhecer o saber do outro, que são saberes milenares, diferente da formulação dessa racionalidade de matriz europeia, judaica, cristã, é preciso romper com  o sexismo, racismo e a dominação de classes. 

Nós sempre fizemos parte desses agentes de transformação. A própria história de construção do SUS começa nas comunidades. Essa concepção de saúde ampliada está presente nos movimentos. Você tem que ter conhecimento desse processo histórico, conhecimento é poder. Se não conheço minha história, não sou sujeito dessa história. Como diz um provérbio de origem africana: “Até que os leões tenham seus próprios historiadores, a história da caça sempre glorificará o caçador”.  Uma das nossas conquistas é a questão da identidade, do reconhecimento, da autoafirmação.

Se hoje, estatisticamente, a população negra é a maioria da população brasileira, há quarenta anos não éramos. Quando o movimento negro lutou para ter dados desagregados no campo da saúde, é porque ser mulher, ser negro, ser indígena, ser pobre, impacta nas condições de nascer, viver, adoecer e morrer. 

E sobre a relação com as outras políticas, quando analisamos  o que foi a conquista de Lei 10639/2003 [estabelece a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira], que altera a LDB [Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional], e da Lei 11.645/2008 [estabelece a obrigatoriedade do ensino de história e cultura indígena], é para que conheçamos o que somos e as contribuições diversas dos grupos populacionais. Não é à toa e não é aleatório que essas leis não avancem, porque traz uma outra concepção dessa  contribuição histórica e das pessoas se reconhecerem como capazes. 


Nós – Fabiana,  como esse novo cenário de maior presença de mulheres negras na política contribui para a fiscalização das políticas públicas e até mesmo fazer com que isso avance mais? 

Fabiana Pinto – Num contexto mais recente, temos alguns exemplos do impacto do avanço de mulheres negras comprometidas com políticas públicas universais, com uma visão de saúde ampliada. Os primeiros projetos de lei para criar uma fila única para os leitos de UTI no início da pandemia são de mulheres negras. 

O avanço dessas mulheres negras do campo progressista, que tem um compromisso com a vida, foi muito importante para a garantia de direitos. Hoje, nesse debate sobre a vacinação, sobre quem deveria ser um grupo prioritário, também. Por que hoje, novembro de 2021, a população negra ainda é a menor parcela vacinada? 

Eu enxergo que as mulheres tiveram um papel fundamental nesse aprimoramento de políticas públicas de saúde. Garantir que tenham pessoas eleitas nesses cargos, nesses espaços de tomada de decisão para lutar pelos nossos direitos e garantir a manutenção também é algo fundamental.


Nós – Maria Inês, você colocou que, com a pandemia, a importância do SUS ficou mais evidente. E a gente viu nas redes sociais as pessoas defendendo o SUS. Esse amor pelo SUS vai permanecer? O que precisamos estabelecer daqui em diante como um manifesto de defesa a esse sistema?  

Maria Inês Barbosa – Primeiro, entendendo que estamos em uma disputa pelo poder. Cabe a nós estarmos à frente desses processos. Temos muitas lições a aprender e muitos desafios têm surgido. Avançamos no sentido de que o racismo está presente  no discurso [atual], mas ele não tem sido desconstruído na sua forma de reprodução. Trata-se de uma luta política pelo poder por um outro projeto. 

Somos a maioria da população. E a partir do momento que tivemos dados desagregados [por cor, na maioria das pesquisas], verificamos que a população negra vota do centro para a esquerda. Só que não temos isso como uma força política. Se você vai para dentro dos partidos, ainda não disputamos espaços de poder. Quando se constitui um governo, precisamos ter papéis correspondentes à nossa força política. 

Isso é um dos desafios para a implementação da saúde da população negra enquanto uma política que aprofunda o que é o Sistema Único de Saúde. Mas ressalto que, quando falamos em saúde da população negra, falamos do racismo como determinante em saúde e não que nó vamos ter um SUS [apenas] para pessoas pretas. 

Mas o resumo é que temos que estar nesses espaços. E não é estar por estar. É um compromisso, uma responsabilidade de transformar. A representação é importante, mas muito maior  é o compromisso com o nosso povo.


Reportagem publicada originalmente no portal Expresso Na Perifa – Estadão.