Saiba qual foi o projeto de país do Movimento Negro na Constituinte

Natália Neris comenta importância de figuras para garantir direitos no documento que garante dignidade aos brasileiros

Por Jéssica Moreira

15|01|2022

Alterado em 27|01|2022

Você sabia que a Constituição Federal do Brasil completou 33 anos no último 5 de outubro? A Constituição é o documento mais importante do Brasil, considerada a lei máxima e obrigatória entre todos os cidadãos, serve como garantia dos seus direitos e deveres.

Muitas vezes nomeada como Constituição Cidadã, a carta magna de 1988 foi um dos primeiros processos em que a sociedade brasileira realmente participou. Isso se deu logo após a redemocratização e fim da Ditadura Civil-Militar no país.

Para os movimentos progressistas do período, não existia a menor condição de transitar para uma nova sociedade com um documento dos tempos ditatoriais. Esta é a primeira constituição do Brasil a reconhecer o racismo como crime, por exemplo.

Antes dela, as leis eram criadas sem ouvir a população. O processo constituinte que levou até a promulgação da Constituição de 1988 contou com uma participação massiva das pessoas. Durante 583 dias, pelo menos 10 mil pessoas passaram diariamente pelo parlamento. Estima-se que 9 milhões passaram pelo Congresso Nacional, sem contar as caravanas, cartas e demais sugestões que foram enviadas.

Para entender melhor a história da Constituição pelo olhar dos militantes negros e quão importante foi essa participação para a garantia de direitos básicos, o Nós, mulheres da periferia ouviu a pesquisadora Natália Neris, mestra em Direito pela FGV e doutoranda em Direitos Humanos. Em 2018, Natalia lançou o livro “A voz e a palavra do movimento negro na Constituinte de 1988”, pela editora Letramento. 

Segundo a pesquisadora, é nítido que os militantes negros tinham um projeto de país mais democrático para todos e todas. Fico pensando que havia um projeto de país desse movimento de um jeito muito profundo, e que foi pensado e idealizado por homens e mulheres negros nesses movimentos de base mesmo”.

Para Natália Neris, se a tarefa daquela geração foi desmontar a ideia de uma democracia racial, a atual geração tem como papel honrar a memória de quem lutou para ter os direitos garantidos. “A gente consegue ver com clareza que a tarefa da geração anterior à nossa era desmantelar o ideário de democracia racial, e falar claramente sobre desigualdades raciais”

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Natália Neris, mestra em Direito pela FGV e doutoranda em Direitos Humanos

©Arquivo Pessoal

Confira  a entrevista na íntegra:

NMP: Em linhas gerais, como foi a atuação do movimento negro na Assembleia Nacional Constituinte?

Natália Neris: Para começar esta conversa, precisamos dar um passinho para trás, para entender por que esse momento é importante e por que a elaboração de uma nova Constituição é importante para a história do Brasil.

Muitas vezes, ouvimos a expressão “Constituição Cidadã”. Há um motivo para ela ser chamada desta maneira. A Constituinte foi o primeiro evento do Estado brasileiro no qual a sociedade civil foi chamada a participar. Aliás, a sociedade civil lutou muito para que isso acontecesse de fato. Essa foi a primeira vez que isso aconteceu durante todo o nosso período republicano.Todas as políticas públicas, todas as leis, elas vinham de cima para baixo. Todos os acordos e constituições que tivemos foram assim.

Tivemos um período muito complicado da História, a Ditadura Civil-Militar, que começou em 1964. Quando esse regime começou a dar sinais [ de que estava acabando], e de que teríamos uma transição para a democracia, muitos atores da sociedade civil diziam: ‘não podemos transitar para um novo regime com uma constituição escrita no período da Ditadura e não reflete os anseios da população brasileira de fato’.

Era preciso sair desse regime e transitar por um regime democrático. Para que isso ocorresse, era preciso um texto novo, um acordo novo.

Quando eu ouvia na faculdade sobre sobre a Constituição Cidadã, sabia que havia tido  uma ampla participação da sociedade civil. Porém, me veio à mente: se teve sociedade civil, se teve movimentos organizados, tinha movimento negro e eu quero entender como esse movimento participou disso, como ele tentou interferir. Mas, na literatura, eu não encontrei muita coisa sobre isso.

Eu encontrei algumas coisas sobre participação das mulheres na Constituinte, como o “lobby do batom”. Ouvimos também falar sobre indígenas, quanto os indígenas lutaram e conseguiram conquistar até mesmo um capítulo e tantos outros grupos sociais. Houve também todos os grupos que participavam pela saúde, que conseguiram escrever o SUS (Sistema Único de Saúde).

Ficava pensando: se tem todos esses movimentos sociais, deve ter o movimento negro também. Foi aí que eu cheguei neste tema.

Este momento é muito importante para a nossa história. É a primeira vez que, no Congresso Nacional, 10 mil pessoas estavam ali todos os dias tentando entrar, tentando entregar as suas demandas para os deputados. Há registro de que nove milhões de pessoas passaram por Brasília, no Congresso Nacional, nesse um ano e pouco.

NMP: Como foi o processo do Movimento Negro para chegar até a construção da Constituinte?

Natália Neris: Houve uma construção histórica, que vem acontecendo ao longo de todo o período republicano. Nós sabemos que no movimento negro, há mobilização de pessoas negras lutando por direitos desde o período da escravidão.

A literatura costuma pensar o movimento negro em fases. No período republicano, a gente tem uma fase que o movimento negro é bastante integracionista, tentando entrar nesta sociedade de classe. Neste momento, a questão da educação é muito importante. Movimentos como a Frente Negra e a imprensa negra também são elementos muito relevantes nesse sentido.

O que a gente conhece como movimento negro contemporâneo começa a se organizar de diferentes formas, justamente no período da Ditadura Militar. É um movimento com características muito diferentes dos movimentos negros anteriores, porque ele tem uma faceta de reivindicação mesmo, de entender que o Estado é responsável pela situação da população negra, que as desigualdades não são por acaso, mas que são frutos da ausência de políticas públicas e ausência de lei.

Este movimento, assim como toda a sociedade brasileira, está muito efervescente no final da Ditadura Militar. Estes atores também se tornam muito ligados a organizações de esquerda, a organizações de mulheres, a organizações de luta por moradia, por saúde. Estão, naquele momento, espalhados em diferentes frentes, mas também tem um movimento cultural muito interessante, no final da década de 1970, a gente vê o renascimento cultural.

NMP: Poderia citar alguns exemplos?

Natália Neris: Todas aquelas práticas de afirmação de identidade, como os blocos afro, os bailes black, tudo isso vai formando um caldo cultural e político, até a própria imprensa negra que existia lá no comecinho do século ressurge nesse momento, surgindo jornais como o PCNS, o Nzinga, o Tição, entre vários outros.

Todas essas movimentações, culturais e políticas, iam acontecendo ao mesmo tempo, e junto aos partidos de esquerda na reabertura [política]. Quando acontece a volta do partidarismo, em 1979, esses atores percebem uma necessidade de unificação.

O ato que funda o que a gente conhece como Movimento Negro Unificado (MNU) contemporâneo acontece no ano de 1978, em plena Ditadura Militar, sofrendo todos os riscos nas escadarias do Teatro Municipal, em São Paulo, denunciando a violência policial e discriminação.

NMP: E quando é que o Movimento Negro entende que também precisava estar na disputa da Constituição?

Natália Neris: No começo dos anos 80, quando a sociedade civil e diferentes atores começam a pensar que a Constituição precisa ser participativa, precisa ter diversas ferramentas que  incidir no texto constitucional. O movimento negro também está nessas discussões, porque também está muito próximo de organizações de esquerda, de organizações que estão pensando nisso também.

No início dos anos de 1980, o Movimento Negro já tinha feito muitos encontros nacionais do norte ao nordeste, sul e sudeste. Já tinha organizado quais eram os seus desejos e demandas. Tanto que, em 1986, quando a gente já tem claro que iríamos ter uma nova Constituinte, o Movimento Negro começa a se reunir em fóruns diversos para pensar o que iriam levar [como demandas].

Em 1986 acontece o Encontro Negro e a Constituinte, com caravanas de movimentos de várias regiões do país e, desse encontro, já sai uma lista de demandas que seriam encaminhadas nos anos de 1987 e 1988. Esses anos marcam um momento bem reivindicativo do movimento negro. Um movimento que demanda do estado. Chegam já aquecidos na Constituinte e com muita coisa colocada na mesa e muitas organizações participando.

NMP: Tivemos 11 congressistas negros, entre eles Benedita da Silva, que é uma referência para as mulheres negras na política e movimento social. Qual é a importância dessas pessoas para falarmos de representatividade política negra ainda nos tempos de hoje? 


Natália Neris: Neste momento da História, temos a luta inclusive pra eleger candidatos negros. Muitos ativistas negros que conhecemos hoje tentaram se candidatar como candidatos constituintes, como Edson Cardoso, Abdias Nascimento e Lélia Gonzalez no começo dos anos de 1980. Há uma mobilização político-partidária forte. A maioria desses militantes não conseguiram se eleger, mas continuaram participando desse processo.

Os poucos candidatos negros que se elegeram, e alguns deles muito próximos do movimento sociais, levaram, essas demandas [do movimento negro] durante todo o processo. É um ano em que o movimento negro lutava para dizer a gente precisa de política pública. A gente precisa de leis específicas, porque estávamos há 100 anos de uma lei [ Lei Áurea] que não funcionou.

O movimento negro fazia muitos discursos durante a Constituinte, dizendo que a Constituição era o parágrafo segundo da Lei Áurea, porque a lei áurea aboliu a escravidão e deixou a população negra sem direitos.


NMP: Fala-se muito que a Constituição de 1988 foi a primeira a inscrever o racismo como crime, colocando essa questão como o grande avanço pautado pelo movimento negro. Mas quais foram as outras demandas que entraram na Constituição graças ao movimento que ninguém fala?

Natália Neris: A criminalização do racismo é algo muito importante, é a primeira coisa que vem à nossa cabeça quando a gente pensa no que que teve de avanço para a  população negra.

De fato, até contando um pouco da minha curiosidade em relação a esse período histórico, eu queria entender por que o movimento negro queria crime, sendo que a gente sabe muito bem que todas as respostas que o judiciário nos dá, não são tão efetivas.

Pra mim, fez muito sentido a demanda por criminalização depois que eu comecei a ler os documentos, ouvir os depoimentos dos ativistas, que era exatamente porque a gente vivia num país que negava a existência do racismo. O país era visto como o país das relações raciais harmônicas, da democracia racial. Diziam que o racismo era episódico. O racismo não era visto como um problema social de fato.

E quando o movimento negro fala ‘a gente quer crime inafiançável, imprescritível, o crime mais pesado que existe’ para o racismo, quando no maior texto você tem o racismo como crime, assumiu-se, nacionalmente, e internacionalmente, que você tem um problema, uma questão racial para resolver.

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Entre as exigências estava o fim das fundações de menores, de crianças, então chamadas de crianças infratoras

©Acervo Pessoal



NMP: Quais eram as demais demandas trazidas pelo Movimento Negro que não estão em evidência?

Natália Neris: O movimento negro não via a criminalização como única a única saída ou solução para os problemas que os negros enfrentavam. Havia a saída coercitiva, a saída da educação e a saída promocional, tinha essas três chaves.

No campo da educação, por exemplo, existia a luta pela reforma dos currículos escolares, para mudar e incluir a contribuição de negros e indígenas para a formação nacional, porque também era um jeito de vencer o discurso de democracia racial.

O movimento de educação também reivindicou políticas para garantir a isonomia. De  fato, já se falava no que hoje a gente pode chamar de ação afirmativa, mas era chamado de isonomia. Esse movimento demandava, por exemplo, o fim do vestibular, porque era uma forma muito injusta de avaliação para o ingresso no Ensino Superior, que é o lugar de possibilidades  e de uma melhor qualificação para o trabalho.

Em relação à segurança pública, o Movimento Negro demandava o fim das fundações de menores, de crianças, então chamadas de crianças infratoras. Já se via que essas crianças deveriam ser de responsabilidade da assistência social, e não da segurança pública. Havia uma demanda pelo fim das unidades da Febem (Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor), e Fundabem (Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor), que era o que existia na época.

Todas as demandas que eram dos movimentos de trabalhadores, como licença maternidade, regulamentação do trabalho doméstico, já apareciam dentro das demandas de mercado de trabalho, algo que as mulheres negras trouxeram, pois o o Movimento Feminista não trabalhava tanto nessa perspectiva, e a atuação de mulheres negras trouxe.

A própria unificação do sistema de saúde era uma demanda do movimento negro também. Estatização do transporte público, como dinâmica de direito à cidade, a titulação de terras não era só para negros rurais, mas negros urbanos, entendendo, que todo o processo de desigualdades na ocupação da cidade também tinha uma questão racial.

Todas as demandas que são estruturais aparecem nas demandas do movimento. É muito injusto chamar o movimento negro de identitário, porque todas as demandas que esse movimento colocou mexiam na base de políticas sociais relevantes como Educação, Saúde, trabalho e moradia.

O movimento também olhava para questões de relações internacionais, que é uma demanda muito importante, como o rompimento de relações de comarcas com qualquer país que cometesse regime de segregação, que era ainda muito comum principalmente na África do Sul.

Eu fico pensando que havia um projeto de país, de um jeito muito profundo e que foi pensado ei idealizado por homens e mulheres negros nestes movimentos de base, muito diferentes de outras organizações que existiam nesse período.


NMP: Como foi a presença de negros e negras congressistas nesse processo?

Natália Neris: O Movimento Negro com todas as contradições que isso possa ter e com todos os debates internos que possa gerar, n percebeu que a política partidária iria ser muito importante para garantir direitos. Essas candidaturas todas que eu citei, de quadros importantes do movimento negro, dizem muito sobre isso. Há muitos discursos que mostram que, durante a Constituinte, negros apontavam que não estavam representados. ‘Não estamos aqui. Olha pra essa sala, olha pra essa comissão’. Quando Lélia Gonzales e Helena Teodoro participavam de audiência pública elas apontavam isso o tempo todo: ‘vocês falam de povo brasileiro, mas quem que é o povo brasileiro, nós não estamos aqui’.

Tem muitos estudos que refletem sobre a relação do movimento negro com partidos e quanto essa relação é tensa e complexa, Mas, naquele momento,  a gente não conseguiu eleger representantes. A maioria desses representantes se candidataram à época.

Um estudo da professora Thula Pires, intitulado a Criminalização do Racismo: entre política de reconhecimento e meio de legitimação do controle social dos não reconhecidos, publicado pela PUC-RJ, aponta que, dos mais de 500 congressistas, 11 eram negros. Mas, de fato, auto-declarados negros e engajados e comprometidos com a questão racial nós tínhamos quatro: Benedita da Silva, Paulo Paim, Edimilson Valentim e Carlos Alberto Caó.

E aí que está a importância deles. O texto constitucional começou do zero, nas subcomissões. Mas quando ele foi pra comissão de sistematização, a sociedade civil saiu de cena, porque não tem mais audiência pública, encaminhamento de sugestão e ficam só os parlamentares.

Assim, estes parlamentares foram fundamentais para garantir que algumas das demandas que chegaram no texto da subcomissão ou no texto da comissão, permanecessem ao longo do processo de sistematização. Esses quatro parlamentares foram fundamentais para que a criminalização do racismo se mantivesse no texto.

Temos um desafio muito grande, de ocupação principalmente do Congresso Nacional. Se você olhar para os últimos 30 anos, os maiores legisladores que pautaram a questão racial continuam sendo Benedita da Silva e Paulo Paim.

Eu estou fazendo um estudo agora no doutorado de analisar os projetos de lei pós-constituinte e é fácil dizer que eles são responsáveis por mais da metade do que foi proposto nos últimos trinta anos.

A importância da presença de parlamentares negros engajados é exatamente essa, de traduzir essas demandas para o processo legislativo, de fazer com que elas estejam presentes, porque a luta não acabou no processo constituinte .

Por mais contraditório, paradoxal, e a gente possa fazer muitas discussões sobre isso, o olhar para esses últimos 30 anos nos diz: sem a presença deles, muitos dos direitos que a gente conhece hoje e não é exagero dizer que provavelmente não estariam [no texto final da Constituinte]  ou não teriam sido garantidos ou positivados neste período.

É triste perceber que eles estão há trinta , trinta e cinco anos, com uma luta que é bastante, não posso dizer solitária, porque outros parlamentares foram eleitos nesse período, mas com quórum bastante reduzido.

Há uma grande importância os parlamentares negros, mas também de uma litigância, de um advocacy antirracista, porque isso também não se observa com uma frequência, ou uma intensidade tão grande quanto os outros movimentos sociais fazem.

Outros movimentos sociais costumam acompanhar projetos de lei e fazer algum tipo de pressão nos parlamentares. Não só nos parlamentares negros. O Movimento de Mulheres faz isso o tempo todo, trabalhadores fazem isso. Esse trabalho de advocacy e litigância e de lobby, a gente também vem observando o Movimento Negro fazer com mais força principalmente nos últimos dois, três anos. Um exemplo importante disso é a Coalizão Negra por Direitos.

NMP: Para você, que estuda este processo, quais retrocessos podemos ver hoje depois de mais de 30 anos?

Natália Neris: O primeiro ponto é que a gente inseriu muitas coisas importantes no texto constitucional. Foi uma batalha muito dura, muito difícil de vencer naquele momento, num país que negava a existência de qualquer desigualdade.

Todos os dispositivos que entraram referente à isonomia, igualdade, igualdade nas relações de trabalho, e mesmo as questões de educação e de cultura, geraram, uma base importante para que o movimento negro nos anos subsequentes, demandassem políticas públicas, e os legisladores comprometidos com esse tema pudessem elaborar leis com base na Constituição.

As cotas se baseiam nesse princípio da isonomia, a Lei de Ensino da História da África (10.639) se baseia no artigo da educação, então, todos esses dispositivos traçaram linhas importantes.

NMP: Quais foram os maiores desafios para a Carta Magna sair do papel?

Natália Neris:
Durante os anos de 1990, os anos 2000 e  2010, tivemos muitos desafios em relação à implementação de fato. Não foram anos fáceis. A gente conquistou dispositivos ou direitos, mas alguns dos direitos a gente tem muita dificuldade de ver acontecendo.

O que estamos observando nos últimos anos não é só uma discussão sobre como implementar ou como que a gente desenha, mas sim como estão destruindo as políticas. [Eles acreditam] que não deve existir políticas nesse sentido.

O que já temos precisamos revisar, como Lei de Cotas. Estamos voltando para umas discussões que a gente já tinha superado, como as questões ligadas à não titulação de terras quilombolas.

O que observamos hoje é mais do que a tentativa de revogar as leis e alguns direitos conquistados. É preciso voltar com um discurso que a geração anterior à nossa já tinha colocado: não há democracia racial, não temos igualdade, as igualdades [no Brasil] têm cor.

NMP: O que fazer para nossa geração honrar o trabalho feito por nossos e nossas mais velhas do Movimento Negro?

Natália Neris: Esta é uma pergunta difícil que eu já fiz para as mais velhas e para os mais velhos. Cada geração tem uma tarefa histórica. A gente consegue ver com clareza que a tarefa da geração anterior à nossa era desmantelar o ideário de democracia racial e falar claramente sobre desigualdades raciais.

Eu acho que nós somos uma geração que deve ser bem grata à geração anterior. Nós somos fruto dessa luta política, das ações afirmativas, da experiência dos coletivos de mulheres. Estamos colhendo frutos. Mas começamos a colher esses frutos no momento em que, tudo que estava se assentado e mais ou menos acordado em relação ao entendimento sobre questões raciais, começa a ser revisado.

Acho que temos uma tarefa enorme e difícil, que é manter o legado. Lembrar que essa história por direitos existe, visibilizar e dar nome a cada um desses ativistas. Foram 21 ativistas que participaram de audiências públicas e que falaram sobre a questão racial.  até injusto porque ele só consegue ver quem está nos documentos, quem assinou, quem estava nas atas.

Mas há tanto trabalho subterrâneo para que essas pessoas estivessem no congresso em 1987, 1988.Então, eu acho que nossa primeira tarefa é mesmo reverenciar e lembrar dessas pessoas e trazer todas elas, cada detalhe, o máximo que a gente conseguir achar.

Temos uma dívida e um trabalho muito grande, de manter o que foi construído na memória e lutar pelo que virá para que não se perca tudo isso. É uma tarefa dura, muito difícil, mas acho que estamos aqui.


Reportagem publicada originalmente no portal Expresso Na Perifa – Estadão.