Sábado em uma casa na periferia é dia de faxina
Quando novinhas, eu e minha irmã aprendemos rápido: quarto, sala do fundo e banheiro para minha irmã; cozinha e sala da frente para mim.
Por Semayat S. Oliveira
08|03|2015
Alterado em 08|03|2015
“Filha, levanta. Vou trocar sua roupa de cama.” Era assim, de 15 em 15 dias e, se vacilar, a cada uma semana. Eu achava exagero minha mãe trocar tudo o tempo todo. Arrumar a casa era e é coisa de todo dia.
“Todo dia tem pó, todo dia tem que pelo menos passar uma vassoura”. Mamãe é filha de dona Belinha e com dona Belinha não tem conversa. “Ser pobre não é defeito coisa nenhuma. Qualquer barraco pode ser transformado em um ótimo lugar para se viver. É só cuidar. Defeito é ser porco”, essa é a frase da vovó.
Quando novinhas, eu e minha irmã aprendemos rápido: quarto, sala do fundo e banheiro para minha irmã; cozinha e sala da frente para mim. Depois, eu assumi mais cômodos e minha irmã lavava a roupa. Dividido e justo. Mas assumo que, como eu era mais nova, usava essa desculpa para não lavar a roupa. Escapei.
Imagem Ilustrativa – Cena do cotidiano na Favela do Maruim, em Natal/RN | Crédito: Fábio Pinheiro
Até hoje o lema em casa é arrumar a casa todos os dias. E todo mundo entra na brincadeira: mãe, pai, eu e irmã. Todo mundo. E aos sábados é o sagrado. Normalmente é no fim de semana que os azulejos, a água no chão e a sujeira mais pesada do box vai pro ralo. Antes, mais que agora – verdade -, mas quando saio de casa no sábado de manhã ou só volto no sábado a tarde, sinto que levei falta nessa disciplina de arrumação e de estar mais em casa.
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É um ritual. Pelo menos para mim, regado de muita música: estica as camas e dança um pouquinho. Varre e canta ao mesmo tempo. Passa o pano acompanhando as batidas do som. Tira o pó coreografado. “Meninaaaaaaa, to vendo sua sombra viu, para de dançar e termina logo essa casa, ai você dança o tempo que quiser.” A louça também tem um remelexo. Para um pouquinho, samba com a vassoura e volta pra louça. Só não pode quebrar, ai é tarefa adicional. “E não pode molhar a barriga, senão casa com bêbado.”
As filhas na limpeza. Minha mãe na cozinha. Meu pai lavando a roupa ou o quintal. E também é durante a faxina que a prosa desenvolve. Minha mãe conta de quando era mais nova, eu pergunto as coisas. Ela fala de antes, eu falo de agora. A irmã entra na conversa, a gente ri junto. Meu pai inventa de lavar o quintal da frente, a gente se olha e fica quieta. Ele faz o convite de limparmos a geladeira juntos, a gente limpa. Ele troca meu rap pelo reggae. Depois eu troco o reggae pelo samba.
Depois de tudo limpo, é como se o vento circulasse melhor e fosse possível sentir o cheiro das flores lá de fora bem pertinho. A mão fica com cloro um tempo, verdade, dá para lembrar do cheiro nas unhas. Mas dá orgulho de ter cuidado. “Tem que ser caprichosa, cuidar das nossas coisas, organizar, deixar limpinho. Não adianta sair daqui toda linda, perfumada e morar na bagunça. É aqui que a gente dorme, aqui que a gente come, a casa é o nosso espírito”. E falando em comida, a mesa fica posta logo depois desse trabalho todo.
Aprendi isso, de cuidar da casa e do espírito com minha mãe. Ela aprendeu com a mãe dela. E eu vou ensinar o menino ou a menina que um dia chegar para mim. Ensinar o ritual de cuidar de si.
Semayat Oliveira é jornalista e mora no Jardim Miriam, zona sul de São Paulo.