Quem vive tempo suficiente para se aposentar no Brasil?

Conversamos com a especialista Ana Paula Mauriel sobre o agravamento das desigualdades a partir da Reforma da Previdência e sobre os prejuízos para as mulheres. Confira!

Por Amanda Stabile

14|04|2024

Alterado em 15|04|2024

Em 13 de novembro de 2019, entrou em vigor no Brasil um novo Regime Geral de Previdência Social (RGPS), na data de publicação da Emenda Constitucional nº 103 no Diário Oficial da União. Conhecida como “Reforma da Previdência”, a medida apresenta inúmeras modificações nos critérios para aqueles que desejam se aposentar, como aumento na idade mínima necessária e tempo de contribuição com a previdência social.

“A principal mudança nas regras para aposentadoria é a extinção da possibilidade de aposentadoria exclusivamente por tempo de contribuição. Para conseguir a aposentadoria, o trabalhador ou trabalhadora deve, segundo as novas regras, combinar tempo de contribuição com uma idade mínima”, explica Ana Paula Mauriel, professora associada da Universidade Federal Fluminense (UFF) e coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa em Desenvolvimento Capitalista, Trabalho e Política Social (GPODE/UFF).

Uma das questões que embasou os debates em torno da Reforma foi o aumento da expectativa de vida da população: em 2019, a média da expectativa de vida era de 76,6 anos. Ainda, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as mulheres nascidas no Brasil no determinado ano tinham expectativa média de viver até 80,1 anos; já os homens, 73,1.

Com esses dados em mente, a reforma estabeleceu que os homens mantivessem a idade mínima de aposentadoria de 65 anos. Já as trabalhadoras urbanas viram a idade mínima subir de 60 para 62 anos, e as trabalhadoras rurais agora precisam trabalhar cinco anos a mais, até os 60, para se aposentarem. Atrelado a isso, homens e mulheres precisam ter pelo menos 20 e 15 anos de contribuição, respectivamente.

Mas quem são os brasileiros que vivem tempo suficiente para descansar em seus últimos anos tendo direito ao benefício da aposentadoria? E quem são os trabalhadores que têm a garantia de acesso, por décadas, a empregos que contribuam com o sistema previdenciário do país?

O Mapa da Desigualdade 2018, da Rede Nossa São Paulo, por exemplo, mostra que a expectativa média de vida na capital paulista era de 70 anos. Mas enquanto um morador do Jardim Paulista (zona nobre da cidade) vivia em média 81 anos, um morador da Cidade Tiradentes (extremo da Zona Leste) vivia 58. E em grande parte dos distritos mais afastados do centro a expectativa de vida variava entre 58 e 63 anos.

Isso porque dentre os fatores que contribuem para a longevidade estão a garantia de acesso à direitos básicos, como à saúde, alimentação e educação de qualidade, além de renda básica. Considerar os quesitos de raça e etnia também é essencial, considerando que pessoas negras (pretas e pardas) vivem menos e pior no Brasil, de acordo com o relatório “Envelhecimento e Desigualdades Raciais”, do Afro-Cebrap.

Não por acaso, essa é a maioria da população que compõem as favelas e periferias do país. Uma pesquisa promovida pelo Instituto Locomotiva em parceria com o Data Favela e a Central Única das Favelas (Cufa) mostrou que 67% das pessoas que habitam as favelas são negras, média acima da nacional, que é de 55%.

Mais prejuízos para os trabalhadores informais

Todo mundo que trabalha perdeu com a Reforma da Previdência. Só quem ganhou e continua ganhando são os ricos, muito ricos, donos do capital.

Ana Paula Mauriel

Ela também explica que o neoliberalismo, que é uma ideologia que favorece os ricos em detrimento dos trabalhadores, vem ganhando força nos últimos anos.

“Esse movimento foi intensificado durante o governo Temer e continuou com uma agenda neoliberal radicalizada. A informalidade no mercado de trabalho sempre foi uma realidade, mas processos como a Emenda Constitucional 95/2016 (conhecida como Teto de Gastos Públicos) e a Reforma Trabalhista de 2017 têm ampliado esse cenário, promovendo a uberização e pejotização do trabalho”, explica.

Segundo a especialista, as mudanças estão afetando especialmente as mulheres. Por exemplo, o novo tipo de trabalho chamado de intermitente (arranjo em que o funcionário não tem uma jornada fixa de horas ou dias de trabalho) está deixando muitas trabalhadoras sem emprego por dias ou semanas, sem receber salário nesse período. Isso significa que elas também não estão contribuindo para a previdência, o que as deixa sem proteção quando ficam mais velhas.

“A reforma da Previdência de 2019 veio agravar ainda mais esse cenário, dificultando a perspectiva de aposentadoria para os trabalhadores. As mulheres idosas são as mais afetadas, representando a maioria dos idosos desprotegidos acima dos 60 anos“, defende Ana Paula.

Esse contexto revela a necessidade urgente de políticas que reconheçam e enfrentem as desigualdades de gênero e classe no mercado de trabalho, garantindo uma proteção social adequada para todos os trabalhadores.

Novas regras, velhos dilemas

Desde 2019, o cálculo do benefício previdenciário também mudou, prejudicando ainda mais as mulheres. O valor a ser recebido mensalmente agora é baseado no total de contribuições feitas ao longo da vida, reduzindo a média do valor do benefício, que já era inferior ao dos homens devido a salários mais baixos ao longo da carreira.

“Para que as mulheres atinjam 100% da média das contribuições (o benefício máximo), devem contribuir por 30 anos. Mas também ocorreu prejuízo no cálculo da média de contribuição, pois antes da reforma, ele era baseado nas 80% maiores contribuições e hoje ele se dá com base no total das contribuições. Ora, de forma geral, os salários de início de carreira são muito mais baixos que os salários em final de carreira, levando a baixar a média do valor do benefício”, explica a especialista.

Para aqueles que já contribuíam para o sistema previdenciário antes da reforma foram estabelecidas regras de transição. Uma delas determina uma idade mínima progressiva, que aumenta seis meses a cada ano até 2031, para atingir as especificações definidas pela nova legislação.

Desde janeiro de 2024, a idade é 58 anos e seis meses para mulheres e 63 anos e seis meses para homens. Atrelado a isso, o tempo de contribuição deve ser de ao menos 30 e 35 anos, respectivamente.

“Ao vincular tempo de contribuição e idade mínima, a Emenda à Constituição nº 103/2019 tem potencial para excluir um grande número de mulheres do direito à aposentadoria”, alerta Ana Paula.

Essas regras reforçam as tendências de estreitamento do acesso ao sistema previdenciário, desigualdade de acesso entre homens e mulheres e aumento da pobreza, principalmente entre as famílias chefiadas por mulheres.

Mais prejuízos para as mulheres

Outro aspecto impactante foi a modificação das regras para a pensão por morte. Como a maioria dos beneficiários são mulheres, essa mudança as afeta de forma significativa, especialmente aquelas com pensões de valor mais baixo.

Segundo relatório de 2019 do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), em 2017 84% dos recebedores de pensão por morte eram mulheres e 46,4% eram de pensões tinham valor baixo, de até um salário-mínimo, que vão ser cortados pela metade.

“Anteriormente, a pensão correspondia ao valor integral do benefício de aposentadoria do segurado que faleceu ou de seu salário de contribuição, no caso dele ter falecido sem se aposentar. Com as novas regras, o valor da pensão é de 50%, acrescido de 10% por dependente do valor da aposentadoria da pessoa falecida”, aponta Ana Paula.

Além disso, a reforma previdenciária desconsiderou as especificidades do trabalho realizado pelas mulheres, como o trabalho doméstico não remunerado e os empregos precários, que dificultam a acumulação de tempo de contribuição.

“A vinculação entre idade mínima e tempo de contribuição é nefasta para as mulheres. Na vigência do atual modelo, as mulheres já enfrentam dificuldades para acumular tempo de contribuição. A responsabilidade socialmente atribuída às mulheres quanto à execução das tarefas domésticas e ao cuidado de crianças, idosos, doentes no âmbito familiar, dificultam ou impedem as mulheres de construir uma trajetória profissional estável e a possibilidade de contribuição regular para a Previdência Social”, diz.

Essas mudanças refletem uma longa história de desigualdade de gênero no sistema previdenciário, que tende a excluir as mulheres do acesso à aposentadoria devido a condições desiguais no mercado de trabalho.

Mas antes mesmo da reforma de 2019, já existiam desigualdades de acesso à Previdência para as mulheres – tanto na quantidade de benefícios concedidos, com muito mais homens segurados que mulheres, como no valor dos benefícios, sempre superior no caso dos homens -, o que significa, portanto, que a reforma ocorreu no sentido de um agravamento dessa situação.

Em 2023, duas em cada três pessoas que se aposentaram por idade eram mulheres, enquanto duas em cada três que recebiam aposentadoria por tempo de contribuição eram homens, de acordo com levantamento feito pela Gênero e Número com base nos dados do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).

“A Previdência Social foi um mecanismo pensado, originalmente, para dar cobertura aos homens trabalhadores e ‘chefes de família’. O contexto histórico de sua origem nos mostra isso, ocasião em que a maioria trabalhadora era composta por homens nas fábricas e eram considerados os principais provedores de suas famílias. Mas muita coisa mudou desde então”, explica a especialista.

Com os movimentos de mulheres por várias pautas, principalmente a partir da segunda onda feminista, cujo foco lutas era a luta pela independência da mulher a partir do seu sustento pelo próprio trabalho. Hoje, o Brasil tem mais de 11 milhões de mães que criam os filhos sozinhas, segundo pesquisa da Fundação Getúlio Vargas, sem contar aquelas que são responsáveis pelo cuidado dos idosos ou de pessoas que por motivos diversos se tornem incapazes de prover o próprio sustento. Além da desigualdade salarial, muitos outros fatores colaboram para o aumento da pobreza entre essas famílias.

“Vários relatórios apontam que a situação da mulher no mercado de trabalho sempre foi mais precarizada, com muitas circunstâncias que impedem qualquer possibilidade de aposentadoria”, pontua.

Nesse sentido, a diferenciação na idade para a aposentadoria das mulheres em relação aos homens não é um privilégio, mas deve ser vista como uma forma de ação afirmativa para uma situação desigual.

Como mudar esse cenário?

Para Ana Paula Mauriel, a Previdência deve ser reafirmada como política de Seguridade Social, pois tem potencial equalizador das desigualdades regionais, para contribuir no enfrentamento da pobreza e para cumprir sua função principal (mas não exclusiva) que é a proteção ao trabalho e às condições de não trabalho.

“A previdência precisa de reformas com um sentido mais inclusivo, de ampliar sua base de contribuintes com regras de acesso mais flexíveis, considerando a realidade periférica da economia do nosso país, a pobreza estrutural, o alto nível de informalidade no mercado de trabalho, as desigualdades de gênero, raça e condições de trabalho”, aponta a especialista.

“Para isso, é necessário reverter algumas condições dessa última reforma e superar a fragmentação setorial entre as políticas de Assistência, Saúde e Previdência, garantindo a existência institucional da Seguridade, com gestão, orçamento e controle democrático de seus recursos”, conclui.