Práticas ancestrais para viver além da vida física

Viver para sempre também é fazer a nossa parte para garantir que a vida permaneça indo além da morte física

05|02|2024

- Alterado em 05|02|2024

Por Redação

‘Todos nós podemos ser imortais, contanto que cumpramos com competência e alegria a função que nos foi destinada.’

Esta é uma das frases de Mãe Stella de Oxóssi (1925-2018) que mais me emociona. Em um país que ainda mantém em curso um projeto hegemônico e colonial que há séculos gera diversos apagamentos de saberes e tradições, a frase dita pela Iyalorixá nos faz refletir sobre a imortalidade, não somente do corpo, mas também a partir da eternidade presente no encantamento.

O reconhecimento que é dado em vida a muitas personalidades ainda é raro quando se trata de pessoas negras, pardas, indígenas, periféricas ou não acadêmicas. Por isso, celebrar e agradecer pelo que aprendemos com essas pessoas é solenizá-las enquanto estão vivas, como patrimônio imortal e imaterial.

Assim como Mãe Stella, Iyálorixá, escritora e pesquisadora, o pensador, escritor e líder quilombola Nego Bispo, que perdemos no último dia 03 de dezembro de 2023, também nos ensinou sobre a vida além da morte do vigor físico. A primeira vez que tive o privilégio de ver e ouvir Bispo foi em 2016, no Projeto Afro Transcendence, realizado no Red Bull Station. Além de nosso sobrenome em comum, me interessou a fala do mestre quilombola e sua capacidade de refletir as construções humanas junto às conexões naturais em uma cosmovisão onde a natureza e o homem não estão separados, mas coexistem; mais que isso, são um só.

No trecho do poema feito por Nego Bispo ao povo da Maré, no Rio de Janeiro, há uma grande lição sobre o viver e sua perpetuidade, encantamento e pensamento coletivo: ‘Nós somos o começo, o meio e o começo. Existiremos sempre, sorrindo nas tristezas para festejar a vinda das alegrias.’ E é o pensamento coletivo vivo e circular que faz com que essa celebração dos vivos aconteça, a partir da preservação das memórias e da criação de novos métodos que fazem com que possamos existir sempre, dentro e fora um do outro.

Na periferia de São Paulo (SP), a gravadora e produtora Nebulosa selo, que nasceu com a parceria de Levi Keniata e Wellison Freire, mas que, de modo coletivo, une diversos artistas de regiões periféricas e para além de um selo musical, cria a partir da periferia a continuidade da musicalidade afro-brasileira, em ritmos como samba, funk, samba-rock e rap, trazendo também referências estéticas presentes nas fotografias, produções visuais, shows e outros projetos em que se destaca. A evocação da autoestima através das diversas manifestações artísticas e visuais, a pesquisa musical e a apresentação de referências para os novos públicos garantem a manutenção das práticas ancestrais, o que, nas palavras de Nego Bispo e Mãe Stella, asseguram as eternidades de quem se encanta não somente após adentrar o reino dos mortos.

E falando sobre pensadores e personalidades que cuidam da manutenção das tecnologias ancestrais, destaco aqui Marabu, MC, professor e pesquisador da Zona Sul de São Paulo, que lançou no final de 2023 sua primeira mixtape Dimaloka Vol1: Denso, junto à Nebulosa Selo, em um projeto financiado pelo programa de valorização a iniciativas culturais da Prefeitura de São Paulo (VAI). Dimaloka é a parte mais recente da criação do artista que iniciou oficialmente sua produção em 2018, quando o MC lançou seu primeiro single: Negócios, e deixou evidente que sua produção parte de um lugar onde não importam as adversidades sociais impostas, o tempo vai seguir seu rumo pelos progressos, onde olhar para isso é se colocar em um lugar onde o fluxo vital não deve parar em função individual, mas se expandir por razões maiores e coletivas.

Bailes funks, festas de rua, barracões de escolas de samba, terreiros, lançamentos, shows, produções artísticas diversas, afirmações territoriais como as de Mãe Stella, Nego Bispo e da Nebulosa Selo são partes essenciais das diversas manutenções vitais; viver para sempre também é fazer a nossa parte para garantir que a vida permaneça indo além da morte física. Como diz a letra da música O tigre e o dragão do Mc, na voz de Amanda Figueiredo: ‘Nois é disposição, amor e fúria, Até depois do fim’.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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