Por uma ética de amor e cuidado na vida de travestis

Todas as travestis merecem amor. E merecem amar

05|12|2022

- Alterado em 05|12|2022

Por Redação

Poucas autoras me marcaram tão profundamente em leituras acadêmicas quanto bell hooks. A feminista negra estadunidense nasceu em 1952 na cidade de Hopkinsville, Kentucky, EUA. A escritora se graduou em letras pela prestigiosa universidade de Stanford, tendo alcançado altos títulos acadêmicos e postos de professora universitária em outras instituições de renome em seu país, como a Universidade de Yale, Universidade da Califórnia em Santa Cruz e outras. 

bell hooks assina sempre seu pseudônimo em letras minúsculas, como uma reivindicação para que seja ouvida e lida não somente a partir de suas experiências subjetivas individuais, mas também sob uma perspectiva coletiva, o que perpassa toda sua obra. Ao fazer a passagem em dezembro do ano passado, aos 69 anos de idade, a pensadora contemporânea nos deixa um extenso legado acadêmico, com análises que perpassam os temas de raça, classe, gênero, educação, combate a violências estruturais e, o que tratarei hoje, o amor

A autora nos aponta como na vida de mulheres negras tem se identificado a ausência parcial ou total de amor, por inúmeras razões históricas e socioculturais alicerçadas no machismo e no racismo sistêmicos. Ao mesmo tempo, bell nos lega sua obra que me atravessa profundamente: Tudo sobre o amor. Neste livro único e marcado por delicadeza e leveza, hooks nos guia no caminho do amar, entendendo o amor não somente como um sentimento, mas principalmente enquanto uma postura ativa, uma ética que deve reger nossas ações e visões de mundo. 

Mas minha coluna de hoje não é uma exaltação à bell hooks e sua obra fantástica (mas poderia facilmente ser). A questão que desejo abordar é como essa ética amorosa que bell nos mostra pode ser valiosa para as travestis brasileiras. De fato, nossa realidade acaba sendo marcada muitas vezes pelo desamor, a partir da violência e exclusão. Somos expulsas de casa muito cedo. Empurradas às pistas de prostituição, onde somos abusadas e violadas de diversas formas. Como olhar na cara de uma travesti tão agredida, tão brutalizada pela vida, e lhe falar de amor? 

Meu ponto é justamente resgatar o ensinamento de bell para defender que nós, travestis, devemos pautar e defender o amor em nossas vidas. A animalização de nossos corpos e nossa redução a objetos é ferramenta primordial da cisgeneridade e do cissexismo. Por isso, ao aprendermos a amar e aceitarmos o amor em nossas vidas, ao adotarmos uma ética amorosa em nossas ações no mundo, empreendermos em esforços contra-coloniais. hooks nos ensina como o amor tem  a potencialidade de nos curar das mais profundas feridas, e quem mais do que nós é exemplo de uma comunidade que merece ser curada e cuidada? 

Estamos em um momento muito propício e fértil a esta discussão. Hoje, ao fim de 2022, temos uma ocupação histórica na política institucional a nível federal. Percebemos também um crescimento da nossa presença nas universidades e em lugares que foram somente um sonho de nossas mais velhas. Sonho este que hoje tornamos realidade. Deste modo, ao nos vermos como parte de uma história marcada não só por luta, mas por afeto e amor, principalmente de nossas Traviarcas que arrombaram portas para que pudéssemos hoje alçar altos vôos, nos permitimos também baixar a guarda e permitir que esse amor entre em nossas vidas. Merecemos também a leveza. 

No encontro de celebração dos 30 anos de movimento de travestis no Brasil, organizado pela rede da ANTRA em Niterói em agosto deste ano, pude estar por dias com minhas mais velhas, com essas “Ancestravas” que marcaram nossa história coletiva. E entre nós, não somente discutimos política (o que fizemos muito), mas principalmente trocamos afetos, abraços, risadas. A verdade é que a ética amorosa faz parte da raiz de nossa organização política e por isso devemos defendê-la sempre em nossas vidas. 

Todas as travestis merecem amor. E merecem amar. É isso que desejo a vocês, minhas irmãs, para 2023 e para a vida. 

Victória Dandara é travesti, cria da zona leste de São Paulo (SP), pesquisadora em direitos humanos, advogada transfeminista e filha de Oyá. Foi uma das primeiras travestis a se graduar em direito na USP e hoje luta não só pela inclusão da população trans e travesti, mas por uma emancipação coletiva a partir da periferia e da favela.

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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