Por que nós, mulheres, somos culpadas até pela nossa morte?

Julieta Hernández foi assassinada por ser mulher, não por estar viajando o país sozinha. Enquanto choramos por sua morte, quem mais tomará alguma atitude para que continuemos vivas?

22|01|2024

- Alterado em 23|01|2024

Por Amanda Stabile

Você deve ter ouvido que, nos últimos dias de 2023, mais uma mulher foi vítima de feminicídio com requintes de crueldade no Brasil. Julieta Hernández, de 38 anos, atravessava o estado do Amazonas de bicicleta para chegar à Venezuela, seu país natal, e comemorar as festividades de fim de ano com a família, quando foi estuprada, queimada e assassinada.

Os criminosos, Thiago Agles da Silva e Deliomara dos Anjos Santos, eram moradores da casa que abrigou Julieta em sua passagem por Presidente Figueiredo (AM). A cicloviajante foi morta por Deliomara que teve uma crise de ciúmes ao presenciar o marido estuprando a vítima.

“Mas será que Julieta nunca ouviu o quão perigoso é que mulheres viajem sozinhas?”. “Se ela tivesse no próprio país, dentro de casa ou na igreja, isso não teria acontecido”. Talvez você tenha se deparado com questionamentos e comentários desse tipo sobre o caso nas redes sociais. Se não, que sorte a sua!

Infelizmente, grande parte dos brasileiros ainda acredita que as mulheres têm culpa pelo estupro que sofrem. A pesquisa “Tolerância social à violência contra as mulheres”, divulgada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2014, apontou que 58,5% dos entrevistados concordavam totalmente com a afirmação de que “se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros”.

Convivemos com a culpa

Mais triste do que saber o que pensam sobre a violência que sofremos é o fato de que nós também nos culpamos muito, como apontou uma pesquisa realizada pela revista Stylist, do Reino Unido, em 2010. O estudo descobriu que 96% das mulheres entrevistadas se sentiam culpadas por algo pelo menos uma vez ao dia e 50% mais de quatro vezes diariamente.

Em artigo sobre as razões do sentimento de culpa em mulheres vítimas de violência, as pesquisadoras Jocelaine Espindola da Silva Arruda e Nanci Stancki da Luz explicam que os nossos julgamentos são influenciados por disposições socialmente constituídas que estruturam e incorporam valores nas nossas percepções.

Isso significa que ideias amplamente propagadas histórica e socialmente imprimem suas marcas na forma como pensamos sobre o mundo. A questão é que essas ideologias são estabelecidas pelas classes dominantes – masculinas, brancas e economicamente privilegiadas. Elas pregam a dominação do homem sobre a mulher, do negro pelo branco, do pobre pelo rico, e assim por diante.

“Esta forma de dominação que alcança tanto o corpo como a mente, associada ao medo, à baixa autoestima, à vergonha, ao vínculo afetivo ainda existente, à esperança na modificação do companheiro, à pressão social e familiar para a manutenção da instituição familiar, à dificuldade de sustento da própria mulher e de sua prole, e ainda o sentimento de culpa pela atuação ‘imperfeita’ na relação – o que então serviria como causa do ato violento do homem – dificultam o rompimento com a situação de violência vivenciada”, apontam as pesquisadoras.

O sentimento de culpa também contribui para que as mulheres não denunciem as violências que sofrem. A 10ª edição da Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher, divulgada no final de 2023, revelou que 25,4 milhões de brasileiras já foram vítimas de violência doméstica ou familiar em algum momento da vida, mas nem todas denunciam.

Um estudo recente realizado por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais, da University of Washington (EUA) e da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) estimou que 98,5% dos casos de violência psicológica contra mulheres é subnotificado no país, assim como 75,9% de violência física e 89,4% de violência sexual.

Desde que Pindorama é Brasil

Pensando na estruturação da sociedade brasileira, colonizada por europeus brancos e cristãos, não é surpreendente que a culpa feminina seja algo tão naturalizado. A religião é um dos vetores de formação do pensamento social e cultural e, com o processo de catequização e escravização, os povos originários e escravizados foram obrigados a abrir mão de suas crenças pelas do colonizador.

O texto sagrado do cristianismo, a Bíblia, aborda a culpa da mulher logo em seu primeiro livro. Em Gênesis, Eva, a primeira mulher criada por Deus, é responsabilizada por fazer seu companheiro Adão desobedecer a Deus – como se ele não tivesse poder de escolha próprio – e comer do fruto proibido.

Por isso, Eva foi punida pelo criador: “E à mulher disse: Multiplicarei grandemente a tua dor, e a tua concepção; com dor darás à luz filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará” (Gênesis 3:16).

Hoje, no Brasil, de acordo com pesquisa do Instituto Ipsos, 70% da população se identifica cristã. Ou seja, pelo menos sete a cada 10 pessoas acreditam que a culpa de termos sido expulsos do Jardim do Éden, o paraíso na Terra, e termos de trabalhar arduamente e parir com dor é de uma mulher.

Culpa materna

A mesma pesquisa da revista Style também revelou que 75% das entrevistadas sofriam mais com a culpa após se tornarem mães. Sem surpresas, não é mesmo? Às mulheres sempre foi relegado o trabalho com a casa e os cuidados das pessoas, especialmente das crianças.

No Brasil, em 2019, elas dedicavam quase o dobro de horas semanais a esses afazeres do que os homens, de acordo com o levantamento “Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil”, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Então por que não culpá-las quando algo relacionado a isso não sai como o planejado?

Quem nunca ouviu ou reproduziu a pergunta “cadê a mãe dessa criança” quando viu algum pequeno fazendo bagunça? A culpa materna já está tão presente no nosso imaginário social que é até passada adiante por meio de ditados populares. “Quando nasce um filho, nasce uma culpa” e “quem pariu Mateus que o embale” são alguns exemplos.

Porém, aquelas que não podem ou não querem ser mães também não são absolvidas da culpa. As que desejam abortar devem fazer de forma insalubre e escondida, caso não queiram perder a liberdade e o respeito público. E aquelas que mantêm a gestação após um estupro e decidem parir e entregar o bebê para a adoção são um prato cheio para os julgamentos. Ninguém escapa.

Quem se beneficia da nossa culpa?

Após toda essa reflexão é importante entender: quem se beneficia quando estrutural e culturalmente o alvo da culpa é colocado nas costas das mulheres? Aqueles que são absolvidos!

Enquanto as vítimas forem responsabilizadas pelo próprio estupro, agressão e feminicídio, não incomodaremos o Estado e os tomadores de decisão para garantir nossas vidas e segurança. Tampouco os autores das violências terão de ser punidos.

Enquanto culparmos as mulheres por engravidarem e as responsabilizarmos por garantir todo o necessário para criar crianças que se desenvolvam plenamente, os homens, o Estado e a sociedade não terão de se preocupar em cumprir os seus deveres constitucionais:

“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (Artigo 227 da Constituição Federal de 1988).

Por tudo isso, é essencial reafirmar: Julieta Hernández foi estuprada, queimada e assassinada por ser mulher, não por estar viajando o país sozinha. E, enquanto choramos por sua morte, além de nos culparem por querermos ser tão livres quanto temos direito, quem mais tomará alguma atitude para que continuemos vivas?


Conteúdo publicado originalmente no Expresso na Perifa – Estadão

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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