Por que as mulheres resistem à reeleição de Bolsonaro?

Conversamos com Mariana Amaral, pesquisadora do Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo, sobre autocracias e o voto das mulheres

Por Amanda Stabile

06|09|2022

Alterado em 06|09|2022

Você já ouviu falar em autocracia? Especialistas utilizam esse termo para se referir à decadência de diversos atributos democráticos em um governo. E, segundo organizações internacionais e de pesquisa empenhadas em monitorar a qualidade das liberdades civis e do Estado de Direito, o Brasil vive esse regime.

Para chegar a essa conclusão, os estudiosos consideraram as crises políticas e de legitimidade democrática enfrentadas pelo país nos últimos anos e que se intensificaram com a eleição do atual presidente, Jair Bolsonaro, em 2018.

“Ao mesmo tempo que é um momento desafiador em que muitos desses traços autocráticos do Bolsonaro podem ser aprofundados no caso de uma reeleição, vejo que temos muita força e muitos lugares para nos inspirar e conseguir transformar a realidade a partir de uma luta política”, aponta Mariana Celano de Souza Amaral, mestranda em Sociologia na Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora do Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT).

Para analisar as mudanças ocorridas em países que vivem em contextos autoritários semelhantes ao Brasil em três áreas específicas – educação, espaço cívico e segurança pública – o LAUT lançou, esse ano, o relatório O caminho da autocracia: caminhos para a erosão democrática.

Resistência feminina

Nesse contexto, quais riscos a reeleição de Bolsonaro representa para a democracia? De acordo com o relatório, a reeleição tem servido como marco fundamental no aprofundamento de processos autoritários por conferir legitimidade ao que se fez no primeiro mandato e uma autorização majoritária para a continuidade do projeto.

Porém, as mulheres brasileiras têm resistido frente a chance de um segundo mandato do atual presidente. Segundo pesquisa do Instituto Datafolha divulgada na última quinta-feira (1), apenas 29% das mulheres brasileiras têm intenção de votar em Bolsonaro nas eleições de outubro.

Juliana Aparecida Gimenes, de 35 anos, faz parte dos 71% que não pretendem dar uma segunda chance a ele. Apesar de dizer que não entende muito de política, as poucas coisas que acompanha em relação ao governo a deixam indignada. Ela avalia Bolsonaro como alguém “sem coração”.

Nas eleições de 2018, a auxiliar administrativa decidiu dar um voto de confiança ao atual presidente na esperança frustrada de uma mudança política. “O que a gente vem tendo no governo é a criação de muita expectativa, mas quando a pessoa assume, nada muda”, lamenta.

“Ele me decepcionou plenamente, eu não achei que seria um homem sem escrúpulo, sem coração, totalmente sem noção. Então, o que me fez mudar de ideia e querer que ele saia logo da presidência foi exatamente isso”, explica.

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Manifestação ‘Ele Não’, organizado por mulheres em 2018, contra a eleição de Jair Bolsonaro

©Flickr / Sâmia Bomfim

Reeleição, mulheres e a democracia

“As mulheres estão enfrentando um perigo muito grande com a possibilidade de reeleição do Bolsonaro. É um perigo para a nossa democracia enquanto sistema político e, ao mesmo tempo, representa um risco muito direto para vários direitos das mulheres que foram conquistados depois de muita luta”, alerta Mariana.

Para a especialista, a baixa intenção de votos da população feminina em Bolsonaro também está relacionada a suas posturas e falas misóginas e aos inúmeros ataques às mulheres jornalistas ao longo do governo, além da falta de endereçamento dos problemas enfrentados pelas mulheres brasileiras no dia a dia.

“Por exemplo, ele vetou toda a distribuição de absorventes gratuitos. Além disso, o governo Bolsonaro não aderiu a compromissos internacionais da ONU  [Organização das Nações Unidas] de proteção aos direitos reprodutivos das mulheres e assinou uma aliança com outros países anti-aborto”, apontou.

Outra questão levantada por Mariana é que, apesar do aumento da violência doméstica durante a pandemia, em 2020, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos executou apenas metade do orçamento dessa área. Além disso, as mulheres também foram e são muito afetadas pela desestruturação econômica e social porque são elas, principalmente as mulheres negras, que chefiam as famílias.


Pobreza, gênero e sexualidade nas autocracias

Um segundo indicador que tem impactado o cenário eleitoral e a corrida pela presidência é a renda da população. Uma pesquisa recente do Ipec (Inteligência em Pesquisa e Consultoria) aponta que o ex-presidente Lula lidera entre os mais pobres, que recebem de 1 a 2 salários mínimos.

Não é possível homogeneizar as motivações dessa população, considerando a diversidade de opiniões e subjetividades presente em cada grupo e classe social, mas algo que pode ter contribuído parcialmente para esse cenário é o modelo econômico liberal que o governo adotou desde o início. 

Com Paulo Guedes chefiando a pasta econômica, o país avançou com as privatizações, se aliou com atores do mercado financeiro e cortou áreas estatais vinculadas à ciência, à educação e ao meio ambiente.

“A gente identifica esse movimento como ‘construção de inimigo’. Isso, junto com os cortes nas políticas sociais, acaba afastando essa parcela do eleitorado do Bolsonaro. O que a gente consegue ver também pelas pesquisas do LAUT é como esse mecanismo opera. Esse projeto liberal de enxugamento dos gastos do Estado vem acompanhado de um discurso que coloca todos esses programas sociais e focos de ação como inimigos a serem combatidos e, no final das contas, acabam sendo cortados”, complementa Mariana. 

Algo que as autocracias têm em comum é a repressão de determinada parcela da população, como àquelas que defendem pautas relacionadas à gênero e à sexualidade. Nesses regimes, os direitos das mulheres e das pessoas LGBTQIA+, por exemplo, estão no centro da disputa que os líderes travam pela construção de um projeto político autoritário conservador, em oposição a um projeto político democrático plural.

Esses governantes utilizam tanto estratégias informais, como discursos e declarações, quanto formais, como a implementação de políticas discriminatórias para fomentar o que entendem como o modelo correto de família e atacar o pluralismo. Há, também, o desmonte de políticas de bem-estar social, como a retirada de direitos que foram conquistados historicamente por esses grupos.

Apesar desse cenário, Mariana cultiva a esperança de uma mudança política. “A gente tem exemplos muito interessantes de movimentos recentes e muito vitoriosos em avançar não só em relação aos direitos das mulheres, mas de vários outros grupos sociais”, conta. “Há muita potência para construir um projeto de país mais democrático de fato”, conclui.

Em 2018, o Nós mulheres da periferia ouviu mulheres presentes nas manifestações organizadas por mulheres contra a eleição de Jair Bolsonaro