Por que a transfobia não pode ser tolerada?

A colunista Victória Dandara analisa as atitudes do deputado federal Nikolas Ferreira: "A transfobia não é só uma ameaça para nós, pessoas trans e travestis, mas sim para todo e qualquer cidadão e cidadã".

20|03|2023

- Alterado em 20|03|2023

Por Redação

Em 8 de março de 2023, um homem cisgênero, branco e de classe média coloca uma peruca loira e caçoa de travestis e transexuais, afirmando que poderia alegar “se sentir do gênero feminino” a seu bel prazer, e que as pessoas trans femininas estariam usurpando os espaços pertencentes a mulheres (cis). O episódio em questão já poderia, em si, ser enquadrado como crime de transfobia (reconhecido pelo STF – Supremo Tribunal Federal – e corroborado com a nova Lei de Injúria, a qual prevê a modalidade de discriminação recreativa, ou seja, independente da vontade do praticante de ser ou não ofensivo)

No entanto, o caso se torna ainda mais grave ao constatarmos que a performance de péssima qualidade é, na verdade, realizada na tribuna do plenário da Câmara Federal dos Deputados. Tal discurso, além de completamente caricato e descabido em qualquer contexto por parte de um parlamentar, representante do povo, torna-se ainda mais grave ao passo que destacamos o dia simbólico de sua realização: 8 de março, data internacional de celebração da luta de todas as mulheres.

Não venho aqui apenas defender a imediata cassação de Nikolas Ferreira, tampouco reafirmar como a transfobia é, e tem sido utilizada como estratégia barata de obtenção de visibilidade e audiência por parte da direita conservadora. O que desejo tratar nesse texto é o fato de que não podemos, em um país verdadeiramente democrático, sob hipótese alguma, tolerar a transfobia. É inadmissível que um parlamentar tenha o direito de expressar tamanha violência contra parte da população brasileira e seguir sendo um representante do povo. É inconcebível que feministas radicais assumidamente transfóbicas se sintam confortáveis em defender a exclusão de travestis e mulheres transexuais de legislações protetivas ao gênero feminino. Inclusive, é inaceitável que essas mesmas sujeitas sigam com espaços em partidos de esquerda sem qualquer repreensão institucional. Por fim, é impensável que um ativista e acadêmico gay, com importante representação em instituições que lutam por direitos de homossexuais, defenda publicamente discursos contra pessoas trans. 

O fato é que a transfobia não é compatível a qualquer valor democrático. Nem mesmo trato de um pensamento progressista ou de esquerda, mas sim unicamente da democracia, das regras do jogo político que permitem a todos, coletivamente, serem ouvidos e ouvidas e terem sua dignidade respeitada. Não podemos falar em participação e poder popular quando uma parte da população está tendo sua existência deslegitimada por posicionamentos de terceiros. Não existe democracia em um país onde travestis, ao ocuparem o plenário de Brasília, são obrigadas a ouvir chacota e ofensas em relação à sua identidade de gênero. Muito menos podemos falar em democracia quando uma vereadora eleita é obrigada a deixar o país frente a ameaças contra a sua vida, como o caso de Benny Briolly em Niterói-RJ. 

A transfobia não é só uma ameaça para nós, pessoas trans e travestis, mas sim para todo e qualquer cidadão e cidadã. Afinal, se é permitido termos uma “democracia” que tolera silenciamento e lesão à dignidade de uma comunidade inteira, o que impedirá vocês, que hoje apoiam esse discurso perverso ou, tão somente, se silenciam em casos de violência, de serem os próximos a sentirem na pele a exclusão? Em termos de democracia, o que vale para um, vale para todos. E quando se viola um, violados também somos todos.

Victória Dandara é travesti, cria da zona leste de São Paulo (SP), pesquisadora em direitos humanos, advogada transfeminista e filha de Oyá. Foi uma das primeiras travestis a se graduar em direito na USP e hoje luta não só pela inclusão da população trans e travesti, mas por uma emancipação coletiva a partir da periferia e da favela.

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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