O único medo de Nury, uma mulher negra que cresceu em Montevidéu, no Uruguai

Afro-uruguaios são vidas-símbolo da resistência dos povos africanos escravizados que, na segunda metade do século XVIII, foram traficados e levados ao porto de Montevidéu

Por Semayat S. Oliveira

31|03|2017

Alterado em 31|03|2017

Numa calçada de uma rua não muito movimentada, pelo menos seis pessoas fizeram um semicírculo. Três homens tocavam três diferentes tambores, necessários para o Candombe acontecer: repique, piano e chico. Ainda na roda incompleta, um trio de mulheres dançava: uma senhora que mora nos arredores, uma jovem passista e uma turista entusiasmada. O movimento dos pés, braços e quadril lembra o samba, mas também parece salsa.
Isso é Uruguai, Montevidéu, especificamente no bairro Sur, centro antigo.
Do outro lado da rua, uma mulher estava sentada e observava tudo, serena: Nury Silva. Fui até ela e perguntei: “Você me daria uma entrevista?”. Com a pretensão de um sorriso nos lábios, que logo em seguida floresceu sem perder a desconfiança nos olhos, ela respondeu: “Sí. Vamos ‘adentro’, o som está alto aqui fora”.

Da porta da rua para dentro, havia um espaço central, um vão. Em volta estavam os apartamentos. O prédio era antigo, lembrava vagamente os conventillos ou casas coletivas, onde a população negra costumava viver, séculos atrás.
“Sou filha de brasileiros, meus pais vieram do Rio Grande do Sul”, principiou a conversa. “Minha mãe trabalhava em casa de família e meu pai era pescador. Vieram pra cá e sempre moraram aqui, neste bairro. Tiveram 12 filhos, quatro morreram. Hoje somos em oito irmãos e muitos sobrinhos”. Não tardou para que me respondesse se aquele era um bairro de população negra: “Sempre, mas agora não tanto. Pretos ficaram pouquinhos”.
Afro-uruguaios são vidas-símbolo da resistência dos povos africanos escravizados que, na segunda metade do século XVIII, foram traficados e levados ao porto de Montevidéu, via Rio del Plata. Parte prosseguia para Buenos Aires, Peru, Bolívia; outra ficava.

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Crédito: Semayat Oliveira


Segundo o estudo População afrodescendente no Uruguai a partir de uma perspectiva de gênero”, publicado em 2010, o Uruguai tem, em média, 315.198 pessoas que autodeclaram descendência afro. Do total, 161.046 são mulheres. A cidade com a maior concentração é exatamente Montevidéu, com 141.392 em números absolutos, sendo 74.653 mulheres.
Na época da ditadura cívico-militar uruguaia, entre 1973 e 1985, iniciada pelo então presidente Juan Maria Bordaberry, casas coletivas foram desapropriadas e as famílias expulsas para regiões periféricas de Montevidéu. Como consequência, grande parte da população negra não habita mais os territórios que ainda pulsam e carregam sua origem ancestral.
Um dos mais antigos e simbólicos foi o conventillo Ansina, construído em 1887.  Os moradores foram despejados entre 1978 e 1979. Outro ícone foi o conventillo Mediomundo, demolido em três de dezembro de 1978. Hoje, em memória a esta data, todo mês de dezembro se celebra o Dia Nacional do Candombe. Ambos localizados entre os bairros Sur e Palermo, nesses espaços nasceram as primeiras comparsas de candombe, no final do século XIX.
“Adoro o Candombe, adoro!”, disse Nury. “No Brasil, antigamente negros escravos se reuniam no Quilombo para festejar e cantavam o lamento, o samba, certo? O Candombe é o mesmo. É o lamento do negro, que também não é tão lamento. É o festejo, o que sentimos no sangue e na pele, é muito bonito. E no Brasil tem Escola de Samba, aqui se chama Comparsa”.
Ainda hoje, é nessa região que acontecem as llamadas (‘Chamadas’, em português) todo mês de fevereiro. O desfile das comparsas é o ápice do carnaval uruguaio, que dura em média 40 dias. E durante o ano todo, os domingos são religiosos para ouvir os tambores.
“Eu desfilei até meus 20 anos. Depois que eu engravidei da minha filha, não sai mais. Mas era outro carnaval, outro. Era mais alegre, desde os componentes até a companheira de dança. Agora é muita competição.Mas quero voltar. No próximo ano, penso em sair em um grupo de mulheres negras que tem aqui.” Em meio ao meu inevitável sorriso, em seguida quis saber como era ser uma mulher negra no Uruguai. “Igual no Brasil, no Peru, na Colômbia, na Venezuela. O racismo existe”, respondeu Nury.
Segundo a ONU, o país está entre os piores da América Latina em relação a indicadores de violência doméstica. De acordo com a pesquisa Avanços e Desafios para a Igualdade de gênero, em 2013, sete em cada dez mulheres declararam ter vivido alguma violência de gênero em algum momento da vida, afetando principalmente as mulheres afros.
De janeiro ao início de março de 2017, sete mulheres morreram nas mãos de cônjuges ou ex-companheiros. Em paralelo, grupos feministas exigem a aprovação do projeto de lei, em tramitação, que atualiza  o código penal Uruguaio com a tipificação de feminicídio.
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Crédito: Semayat Oliveira


No campo profissional, indicadores destacam que 14,4% das mulheres com atividade remunerada trabalham como empregadas domésticas e duas em cada 10 mulheres negras ocupadas estão nessa posição. Em 2014, 21,1% das mulheres negras  são consideradas pobres, contra 8,5% de mulheres não negras.
Hoje Nury trabalha como empregada doméstica, assim como foi sua mãe. Quando lembra de sua mãe, diz de uma mulher que considerou muito forte, mas “sofrida”. Casou cedo, trabalhou duro e se tornou alcoolista, assim como o companheiro dela e, também, seu pai. Aos 15 anos, Nury saiu de casa por não suportar a violência do pai. Foi viver sozinha.

“Por muito tempo eu senti como se minha mãe tivesse me abandonado, eu me perguntava por que ela aguentou tanto. Na minha festa de 15 anos ela estava muito bêbada, internada e a ponto de morrer. Agora que eu sou mulher eu a entendo. Ela fazia isso pra esquecer das tristezas e dos ‘golpes’ que recebia.”

Ao sair do bairro Sur, Nury viveu em condição de rua e chegou a morar em duas das regiões que considera mais periféricas de Montevidéu, que cresceram no período da ditadura: Cerro Norte e o Cuarenta Semanas. Por um período, trabalhou como ‘garota de programa’. Quando me contou sobre isso, levantou os olhos e a cabeça e me disse: “Não me arrependo e não me envergonho, eu precisava dar de comer pra minha filha”.
E foi o que ela fez. Hoje, aos 38 anos, está feliz por ter conquistado sua casa própria, o lar para sustentar e educar seus dois filhos, uma menina e um menino. Também foi a filha que cuidou de seu pai e sua mãe até os últimos dias deles, ambos encerraram a vida ao lado dela. “Não foi fácil, não ‘senhor’. Agora tenho meus filhos, tenho meu lugar. Não tenho ‘grande coisa’ por não ser assim, de gostar de ter muita coisa material, como televisão grande. Eu tenho o que posso.”
Ela não pretende se casar, mas namora. Não gosta de se sentir controlada por homem algum e preserva sua autonomia. Gosta de falar sobre afeto. Questiona e observa que, por vezes, homens negros não ficam com mulheres negras. E conta que sente-se triste quando passa por uma pessoa negra na rua que não corresponde a um cumprimento seu.
A vontade de ver seus filhos na universidade é um dos seus maiores sonhos: “Quero dar esse apoio para os dois. Quero que virem doutores, mestres,  algo disso. Eu, quando era adolescente, fazia muito esporte. Fiz ginástica artística, assim como a Nadia Comăneci. Ainda gosto. Mas nunca tive o carinho e o suporte necessário para seguir essa carreira”.

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Uma das ruas do bairro Sur.


Decidi perguntar a Nury como ela se sentia até aquele momento, como uma mulher que já viveu e sobreviveu tanto e a tantas.
“Hoje eu sou uma mulher mais forte, mas tem feridas no meu corpo e em minha alma que essa vida não vai curar. Nunca”.  Eu permaneci em silêncio e ela também. Uma pausa, até prosseguir, minutos depois. “Eu vou contar. Eu era pequena, tinha 15 anos. Um homem…branco, que me viu crescer, eu tinha amizade com a filha dele, ele quis se aproveitar de mim.” Silêncio novamente. Decidi atravessar o silêncio de Nury para perguntá-la: “Ele te estuprou?”. Ela respondeu: “Sim”.
E continuou:

“Às vezes, disfarço para não lembrar. Mas é só disso que tenho medo na minha vida, de mais nada. Eu não tenho medo de andar na rua, de ter que brigar com alguém. Eu não tenho medo de trabalhar, eu não tenho medo de enfermidade. Só essa é a dor que eu sinto dentro da minha alma, do meu peito. Peço a todos os santos que isso nunca aconteça com minha filha nem com meu filho. Isso não sai da gente. Você trata de não pensar, mas quando chega a noite noite, isso volta.”.

Nury só havia revelado esse segredo para a então companheira desse homem: “Ela me chamou de puta negra”. Por muito tempo, ela pensou que a culpa era dela, mas hoje entende que não. “Eu era uma criança, uma menina…”.
Texto publicado originalmente na revista Fala Guerreira e publicado no Nós, mulheres da periferia em versão completa. 
Fontes:
Sistema de Información de Género de Inmujeres en base a ECH-INE 2008.
Texto: O Candombe afro-uruguaio: “Por quem os tambores chamam”, por Pedro Cardoso para o Portal Buala