O que atrapalha o sono dos pobres?

Os ricos têm mais uma coisa que não temos: qualidade de sono. Nesse artigo, trago alguns estudos que mostram que esse é um problema estrutural que envolve renda, escolaridade e até o racismo ambiental

20|10|2023

- Alterado em 20|10|2023

Por Amanda Stabile

Dia desses eu estava orgulhosamente contando para alguns amigos sobre a técnica que desenvolvi nos tempos de faculdade para dormir em pé no ônibus. Ela consiste em segurar a mochila entre as pernas, agarrar uma das barras verticais de apoio com as duas mãos e apoiar a cabeça em um dos braços. Eu dormia que até sonhava.

Encontrei pessoas que compartilhavam o mesmo dom. Parece que dormir em qualquer lugar e posição é uma necessidade para aqueles que, durante a semana, passam praticamente mais tempo no transporte público do que deitados na própria cama. Não te assusta saber que, no Brasil, perdemos em média 21 dias por ano no trânsito?

Então para mim não foi surpresa descobrir que, além de dinheiro, uma coisa que os ricos têm, a despeito de nós, é a qualidade de sono. De acordo com pesquisa desenvolvida pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos, apenas 55% das pessoas que vivem abaixo do limiar da pobreza dormiam entre sete a oito horas por noite. Entre os que ganhavam 400% acima do limiar da pobreza, o número subia para 66,6%.

Já no Brasil, o Datafolha realizou uma pesquisa para descobrir o que atrapalha o sono dos brasileiros e constatou a mesma correlação. Dentre os apontamentos está que o descanso é melhor para quem tem curso superior e que a crise econômica, o aumento do desemprego e o medo de assalto estão na raiz da piora do sono.

O deslocamento entre casa e trabalho também foi apontado pelos especialistas ouvidos pela Folha como um dos culpados pela falta de qualidade do sono entre a população mais pobre. Aqueles com menor renda acordam mais cedo e dormem mais tarde. É uma dupla violação, considerando que a pior qualidade de sono reduz a eficiência no trabalho e na escola.

As mulheres, por sua vez, têm mais queixas em relação à questão do que os homens, especialmente após os 60 anos. Isso porque a qualidade do sono se deteriora de acordo com a idade. Enquanto as melhores avaliações se concentram na faixa dos 16 a 34 anos, sonos ruins ou péssimos são mais frequentes na população idosa.

O papel do racismo e da colonização na nossa qualidade de sono

Como se não bastasse, até o aquecimento global atrapalha o descanso dos pobres. Temperaturas extremas, altas ou baixas, prejudicam o sono e são as populações com menor renda que são afetadas de forma mais acentuada pelas mudanças climáticas. Com menos dinheiro e estrutura, a instalação de ar-condicionados e aquecedores é praticamente fora de cogitação.

Ou seja, esse é mais um efeito do que chamamos de racismo ambiental. Esse conceito, somado ao da justiça climática, aponta o perfil populacional dos mais prejudicados pela destruição do meio ambiente, que também passa pelo quesito raça e está estritamente ligado com o processo de colonização.

Os países colonizadores, que avançaram no processo de industrialização, são os que emitem intensa e maior parte de gases de efeito estufa. A riqueza desses países desenvolvidos, também chamados de Norte Global, foi conquistada às custas da crise climática.

Enquanto isso, os países pobres, que emitem menos poluição, sentem de maneira mais intensa os efeitos da crise e ainda têm de lidar com as inúmeras crises políticas, sanitárias e econômicas causadas pela colonização. De quebra, essas populações não conseguem nem ter um sono de qualidade.

Medicalização é a solução para um problema estrutural?

Algumas pesquisadoras avaliaram a associação das condições sociais e econômicas com a incidência dos problemas com o sono durante a pandemia de COVID-19. Dentre as conclusões, descobriram que a chance desses problemas foi maior no estrato de indivíduos com rendimento menor do que um salário mínimo.

Dentre as motivações estava a incerteza em relação a manutenção de seus empregos e a diminuição de renda. “As crises econômicas e o desemprego são fatores que afetam diretamente a saúde mental da população, o que pode incidir nos problemas do sono, principalmente no distúrbio de insônia”, apontaram as especialistas.

Desde a pandemia, o aumento do uso de medicações para dormir foi preocupante. Em 2020, a comercialização de psicofármacos (que modificam o Sistema Nervoso Central e são usados no tratamento de transtornos psíquicos) aumentou 17%. O uso de uma medicação específica chamou atenção, a do zolpidem, cujo consumo cresceu 113% entre 2019 e 2021.

Os dados são de um estudo publicado no Brazilian Journal of Implantology and Health Sciences. Mas um outro, mais abrangente, verificou que entre 2012 e 2021 a comercialização da medicação (vendida apenas com retenção da receita) em território nacional aumentou 676%.

A pesquisa não apresenta um recorte socioeconômico ou racial para analisar quem é a população que faz uso do remédio. Mas, considerando que geralmente é prescrito durante tratamentos psiquiátricos, e que a população mais pobre sequer tem acesso a tratamentos com psicólogos, talvez seja um problema que pouco nos atinge.

Dormir melhor é muito mais fácil quando não há preocupação se amanhã terá comida na mesa, se as poucas horas de sono serão interrompidas pela necessidade de percorrer longas distâncias para trabalhar/estudar ou se sua casa será afetada pelas enchentes que inundam os lares das populações mais vulnerabilizadas. Então, fica o questionamento: a medicalização seria uma solução efetiva para um problema que se mostra estrutural?

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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