O que a guerra na Ucrânia nos diz sobre racismo e xenofobia?

A jornalista Sâmia Teixeira analisa como nos deparamos com a desumanização de alguns grupos durante a guerra na Ucrânia. Por qual motivo esta guerra tem este tratamento de discurso e outros conflitos não? O que há por trás disso?

16|03|2022

- Alterado em 16|03|2022

Por Redação

Com a invasão russa à Ucrânia, vimos que escancaradamente as definições de solidariedade e humanidade foram atualizadas. Na verdade, o conflito não apresentou nenhuma novidade, mas, ainda assim, quando nos deparamos com a desumanização de determinados grupos e a humanização de outros de maneira desavergonhada. É difícil não se incomodar.

Começo logo dizendo que as vidas de refugiados ucranianos importam, sempre importam, sobretudo de mulheres, crianças e outros grupos mais vulneráveis. E que provavelmente terei de terminar este texto reiterando isso, mas não sem antes deixar, junto à reafirmação, uma pergunta também.

Tratamento racista e preconceituoso da mídia

Desde o início da fuga massiva de cidadãs e cidadãos ucranianos e, junto deles, de milhares de imigrantes e refugiados asiáticos, africanos, árabes, vimos inúmeros casos de abordagens racistas e xenófobas na imprensa.

Tranquilamente disseram que os ucranianos não são árabes ou africanos, mas sim civilizados, brancos, europeus, que poderiam facilmente ser alguém como nossos vizinhos. Vejam bem, disseram que eles, diferentemente de outros refugiados, são civilizados e semelhantes a eles (os europeus).

A mídia mostrou o heroísmo do povo preparando coquetéis molotov em praça pública. Olhem só que privilégio é esse, que não é concebido aos povos originários, aos palestinos ou aos quilombolas, por exemplo.

Toda luta do oprimido deveria ser tratada dessa mesma maneira, como resposta legítima por sobrevivência, mas fica esse questionamento. O que há por trás disso? Por qual motivo esta guerra tem este tratamento de discurso e outros conflitos não

A repercussão negativa desta cobertura fez inclusive com que palestinos e outros povos se manifestassem nas redes sociais com a publicação de fotos em que apareciam estudando, trabalhando, palestrando, realizando tarefas como qualquer outra pessoa, com a legenda “não civilizado, com o objetivo de expor essa visão orientalista e preconceituosa que racistas têm sobre os povos que, há tempos, enfrentam, em verdade, o resultado da barbárie colonialista provocada por esses mesmos brancos civilizados.

Um exemplo atual é o fato de que ao mesmo tempo em que ocorriam os ataques russos na Ucrânia, as Forças Armadas Sauditas e britânicas dos EUA e dos Emirados Árabes Unidos bombardearam o Aeroporto Internacional de Sanaa, no Iêmen.

Exemplo de reportagem racista e xenófoba

A fome assola milhões naquele país, enquanto fazendas são bombardeadas e nada se fala sobre zona de exclusão ou algo parecido que proteja civis desses ataques. De novo: o que há por trás disso?

Tratamento racista e preconceituoso de cidadãos e governos brancos

Na Ucrânia e fora dela, houve ainda quem criticasse imigrantes e refugiados que serviriam para buscar uma nova chance de vida em países estrangeiros, mas seriam incapazes de defender com armas o país que supostamente os acolheu, mas que na verdade os colocou como cidadãos de terceira classe nos momentos de maior tensão de fuga massiva, proibindo imigrantes não brancos de entrar nos trens ou de atravessar as fronteiras, com métodos de burocracia ou mesmo policialescos e violentos.

Pois, por tudo isso, eu entendo quem possa dizer que não briga numa guerra de brancos. Porque para esse tipo de gente que fala abertamente algo assim, o povo preto e outras minorias só servem mesmo como bucha de canhão.

Imigrantes negros sem assistência em locais públicos enfrentando o frio intenso. Mulheres, bebês.

Eu sei do óbvio. Os povos ucraniano, ou polonês, ou de qualquer parte da Europa e do leste europeu não são racistas ou xenófobos, pelo menos não na totalidade. Nazistas? Também não.

Mas quem vem das margens, de países periféricos, subdesenvolvidos, sabe qual é o tratamento recebido nesses países brancos e desenvolvidos. E é neste ponto que gostaria de chegar e aprofundar uma reflexão que é muito nossa.

Os “refugiados comuns”

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Fuga de civis na estação de trem de Lviv. © EU Civil Protection and Humanitarian Aid

Refugiados dominicanos capturados pela guarda costeira norte-americana. © Coast Guard News

Tendas de atendimento para refugiados vindos da Ucrânia. © EU Civil Protection and Humanitarian Aid

Antes da invasão russa e dos ataques contra a população ucraniana, o mundo já conhecia a emergência migratória e essas pessoas em trânsito, de perfil determinado na sociedade e nos imaginários.

Para a escritora e pesquisadora Harsha Walia, autora do livro “Border & Rule – Global Migration, Capitalism and the Rise of Racist Nationalism”, não existe esta “crise migratória”, e sim uma ordenação imperialista, carregada de violência racial, “ligada à ideia de quem pertence e de quem não pertence [ao território branco]. Cuja humanidade é questionada num momento de crise”, determinando, dessa maneira “quem é o bode expiatório num momento de crise”.

“A fronteira, no entanto, é menos sobre uma política de movimento em si e é melhor entendida como um método-chave de formação do Estado Imperial, de ordenação social hierárquica, controle trabalhista e nacionalismo xenófobo”, diz Walia.

“Esta economia racializada de desapropriação é descrita pelos estudiosos como ‘as genealogias múltiplas e entrelaçadas da propriedade racializada, sujeição e desapropriação através das quais o capitalismo e o colonialismo tomam forma historicamente’”.

Aos refugiados comuns, os não brancos, indígenas, a detenção pode significar a separação forçada de familiares e até mesmo a morte. Em 2019, ao menos 7 crianças morreram sob custódia nos Estados Unidos. Entre 2017 e 2019, 33 adultos morreram após detenção pela ICE (polícia de imigração estadunidense). Um número assombroso de quase 70 mil crianças migrantes foram encarceradas pelos EUA em 2019. O que seriam delas se fossem brancas, ucranianas?.

Nacionalismo e fronteiras

A TIME publicou uma reportagem que relata a saga de imigrantes não brancos em busca de refúgio nos países vizinhos, sobretudo na fronteira com a Polônia. Segundo consta na matéria, a ONG Humanity First Germany disse que membros de sua equipe foram atacados por um grupo de homens poloneses em frente à estação de trem de Przemysl. Esses homens teriam “instruído os refugiados a voltarem para seus países”.

Em uma entrevista recente que acompanhei para um trabalho para a Rede Sindical Internacional de Solidariedade e Lutas, o jornalista e sociólogo ucraniano Dennys Gorbach e o sociólogo e dirigente sindical polonês Ignacy Jóźwiak falaram um pouco a respeito da diferenciação de tratamento dada aos não brancos. Segundo informes que eles tiveram ou pelo que acompanharam pessoalmente, grupos de neo-nazis poloneses e hooligans poloneses de extrema-direita realizaram ataques e que não visavam ucranianos, mas pessoas não-brancas, africanos e asiáticos.

Ignacy ainda alertou que a situação já era crítica antes mesmo dos ataques russos. “Desde agosto e setembro requerentes de asilo da Síria, Iraque, Afeganistão, viajando pela Rússia e Belarus, tentam alcançar os países da União Europeia e a Polônia e Lituânia e esses países os impedem de atravessar a fronteira”.

Dennys ainda colocou a preocupação sobre um movimento gerado pela agressão russa, que é o sentimento nacionalista, visto aqui no Brasil também com a consolidação do bolsonarismo. Este movimento de direita coloca em risco mais elevado pessoas em situação de migração.

“Durante este processo a agenda nacionalista está ganhando a população, ganhando mais popularidade, e muitas pessoas que eram bastante moderadas, que não tinham nenhuma visão política, por exemplo, infelizmente, por causa da agressão, estão se tornando cada vez mais patrióticas ou nacionalistas”, relatou.

A vulnerabilidade das mulheres

Nós já sabemos que o estupro é usado como arma de guerra. Inclusive foi tema tratado em coluna anterior, sobre como esse método violentou, ao longo dos anos, as mulheres e crianças no Congo.

E quando digo que devo frisar do início ao fim deste texto que, sim, a vida de cada refugiada e refugiado ucraniano importa, me refiro principalmente às mulheres.

Na rede social Reddit, já constavam buscas por vídeos de mulheres ucranianas estupradas. Em um dos principais sites pornôs, o PornHub, o termo “ucranianas” e “meninas [!!!] ucranianas” estava entre as principais tendências de busca.

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“Ucranianas” e “meninas [!!!] ucranianas” entre as principais tendências de busca.

©reprodução

Uma amostra dessa violência misógina absurda é o caso da ida do deputado estadual por SP, Arthur do Val, o Mamãe Falei, para a Ucrânia. Este canalha teve a capacidade imoral de, numa situação de vulnerabilidade e crise humanitária, tecer comentários machistas e nojentos sobre as mulheres ucranianas em busca de refúgio na Polônia.

Esse é o povo branco civilizado. Nessas situações, as mulheres – e meninas – podem não estar no mesmo nível de fragilidade, conforme a cor da pele ou origem, porque algumas sempre sofrerão mais, mas todas, absolutamente todas, estão suscetíveis a este tipo de violência nos mais variados graus.

Contra a barbárie e a invisibilidade dos povos não brancos na luta de classes

Se estamos nós, minorias, às margens, que tomemos daqui mesmo a tarefa de romper as fronteiras, porque um mundo que nos possibilita viver com dignidade não é este hierárquico, xenófobo, racista, misógino e capitalista, estruturado com divisas que criam “o outro”, o diferente, o potencial inimigo, quando nós todos somos a massa, a força motriz, a classe que trabalha, sofre e migra.

E por fim eu me pergunto se, depois deste fluxo migratório forçado pelas agressões russas, algumas coisinhas irão mudar? 

  • Os movimentos de esquerda, o que farão para fortalecer povos invisibilizados, que vivem sob intensa agressão militar, tanto ou mais que a Ucrânia neste momento da história?
  • Os brancos europeus saberão acolher os refugiados mais ordinários? Serão eles vistos como civilizados? Confiáveis como possíveis vizinhos? Serão bem recebidos aqueles de cor escura, de origem africana, árabe, asiática? Ou serão detidos, explorados, estuprados, expulsos e jogados ao mar?

Por agora eu tenho parte das respostas, mas prefiro deixar em aberto, acompanhar, tentar entender melhor e me agarrar a qualquer sinal de esperança por uma mudança. E neste processo, manter firme o olhar aos mais oprimidos e marginalizados. 

Porque mesmo compreendendo a importância do que significaria uma derrota do imperialismo russo pelas mãos das massas, ainda assim me sinto mergulhada nessa angústia pelas escolhas dos esforços ou pela seletividade nos combates.

É possível pensar este conflito do ponto de vista da base, sem diminuir a necessidade de apoio e solidariedade com o povo ucraniano, com olhar classista e internacionalista, e sem desconsiderar movimentos anarquistas, de esquerda e revolucionários que atuam naquele país sob importante perseguição de grupos supremacistas.

Digo que é possível e necessário, para que povos que sofrem com a ocupação permanente, como o palestino, por exemplo, recebam igual atenção e apoio dos movimentos ao redor do mundo.

Imagine só se o mundo inteiro se empenhasse em apoiar os povos do Haiti, México, Sudão, Congo, Iêmen, Burkina Faso, Mali, Filipinas, Angola, Palestina, Afeganistão, Síria, os Saaraui, Rohingya, Sikh.

Minha solidariedade, portanto, vai para a classe que resiste na Ucrânia, os que lutam por liberdades na Rússia, e com toda força aos não brancos, que em fugas transnacionais revelam a ferida aberta da exploração e dominação colonialista que sofreram por toda a vida em seus países de origem. 


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Sâmia Teixeira Sâmia Gabriela Teixeira é mãe de gêmeas e jornalista. Foi assessora da União Nacional Islâmica, onde criou o jornal Iqra. Atualmente integra a comunicação da CSP-Conlutas, escreve sobre movimentos sociais e mundo sindical internacional.

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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