O local do negro no Carnaval de São Paulo: carta ao mestre Cartola

A professora Joice Aziza analisa a falta de jurados negros no Carnaval de São Paulo. Para ela, o Carnaval que vem ganhando espaço é "abstrato” e pouco protagonizado pelos negros.

23|02|2023

- Alterado em 23|02|2023

Por Redação

Boa noite Mestre, quem escreve é aquela que em cantos desafinados no volante, te invoca em dias de calmaria. Revendo meu baú de recortes de clássicos jornais, me deparei com
uma entrevista sua sobre seu descontentamento com o rumo do Carnaval aqui no Brasil, foi daí que resolvi escrever-te esta carta. As impressões recentes que trago são do estado de São Paulo, que pela primeira vez pude acompanhar alguns desfiles, inclusive no próprio Anhembi, que por sinal foi minha vivência mais significativa em quatro décadas.

Mas não é esse tipo de análise que quero trazer aqui. Quero contar sobre o local do negro no Carnaval. Sem querer, durante a apuração das Escolas de São Paulo, me vi anotando e pesquisando sobre os jurados da LIGA SP de 2023.

Foram trinta e seis jurados, sendo quatro para cada quesito (harmonia, fantasia, mestre-sala e porta-bandeira, dentre outros…), detectei apenas quatro pessoas negras dentre os jurados.

Os jurados não negros em sua maioria são dançarinos(as) e artistas plásticos. Alguns são professores em universidades públicas, outros mantenedores de escolas de danças, todos os trinta e dois da arte em geral. Consegui visualizar as redes sociais dos que tinham a rede aberta, e não detectei nenhuma menção quanto ao gosto pelo samba, ou pelas artes afrobrasileiras, ou ainda se quer identifiquei postagens antirracistas ou fotos pessoais com “amigos” negros. Pode até ser que esteja militando em tudo, mas foi impossível descansar, ainda mais depois de ver um vídeo.

Durante o momento da concentração, prestes a abertura do portão para a Escola de Samba X-9 Paulistana desfilar, o presidente da escola, um senhor não negro, pede para que todos levantassem o punho cerrado para o alto e explica que tal gesto não significa nada, inviabilizando toda trajetória de resistência negra do Carnaval, demonstrando total ignorância diante da cultura que esse senhor estava à frente.

Olha Mestre, juro que tentei descansar, mas foi mais forte do que eu. Contei quantos presidentes negros a LIGA de SP tem, e também são poucos os negros liderando o Carnaval. Isso me remeteu uma palestra com o filósofo e atual Ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida em 2015 no Museu do Futebol, sobre racismo no futebol. Ele falava que o cenário futebolesco não admite ou pouco de abre espaço para goleiros ou técnicos negros. E seguiu contando um pouco sobre a história de seu pai, o Barbosinha, que foi goleiro do Corinthians no final da década de 60, e depois de perder o jogo contra o Palmeiras, sofreu críticas duras, Silvio ressalta então, que pessoas negras não são passíveis ao erro.

Veja só, nos lugares de lideranças em que a cultura e o protagonismo deveria ser majoritariamente negro, o protagonismo é outro. Analiso esse cenário com muita tristeza. Querem ganhar dinheiro com a nossa cultura, mas sem que estejamos ali, entende?

Ah, mas sabe onde majoritariamente se vê pessoas negras no Carnaval? Atrás dos carros alegóricos, na força braçal. Essa eu pude ver de pertinho, bem do chão da avenida, nem precisei dar um “Google”. Outro lugar de destaque negro eram dos que vinham depois das escolas, empunhando suas pás, vassouras e baldes para recolher serpentinas e confetes deixados por cada escola de samba que passava na avenida. Ali estavam os garis, em sua maioria, negros.

É esse o local do negro no Carnaval. A impressão que tenho é de continuidade do sistema escravocrata com uma nova roupagem. Usufruem da nossa cultura nos deixando à margem dela.

Mestre, parafraseando uma amiga, o que se segue nesses registros são inquietações “meramente descartáveis” que mais servem como desabafo, do que uma coluna de jornal ou um artigo científico. São apenas impressões de uma foliã que durante o Carnaval não pode descansar, simplesmente pelo fato de que o sistema racista não descansa e nem nos deixa descansar também. É militância hoje, amanhã e enquanto o racismo e o capitalismo coexistirem.

Então é isso Mestre, desde as suas impressões lá do final da década de 70, pouco se tem avançado no cenário Carnaval “raiz”, pois o Carnaval que vem ganhando espaço é “abstrato” e pouco protagonizado pelos negros.

Abraços, Mestre

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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