Nzinga Informativo: o 1º jornal do feminismo negro no Brasil
Fundado por Lélia Gonzalez e outras ativistas, o Nzinga Informativo existiu em prol dos direitos das mulheres negras e da justiça social
Por Beatriz de Oliveira
27|09|2023
Alterado em 23|11|2023
“Aqui estamos com o resultado concreto do sonho que sempre tivemos – o de divulgar as questões específicas da mulher negra”.
Assim começa a apresentação do Nzinga Informativo, primeiro veículo do feminismo negro no Brasil que se tem conhecimento. Com quatro páginas, a primeira edição do jornal é o “resultado concreto do sonho” das mulheres que formavam o coletivo também de nome Nzinga. Resgatar e registrar as histórias de mulheres negras era a missão do informativo que circulou na década de 1980.
Recorte da capa da primeira edição do Nzinga Informativo
©Acervo Viviane Gonçalves
O jornal teve apenas cinco edições, publicadas com periodicidade irregular entre 1985 e 1989. Cada uma das linhas impressas foram escritas em prol dos direitos das mulheres e da comunidade negra como um todo. Falava-se de política, agendas culturais, história e educação.
Nzinga Informativo
Para contar a história do jornal, é necessário resgatar a trajetória do Nzinga – Coletivo de Mulheres Negra, fundado em 1983 por Lélia Gonzalez e outras ativistas negras, a sede ficava na Associação do Morro dos Cabritos, zona oeste do Rio de Janeiro (RJ). O nome do grupo é uma homenagem à rainha angolana Nzinga (1582–1663), que liderou o povo durante 35 anos em guerra contra o colonialismo português.
Na primeira edição do jornal, há a história da formação do coletivo. No primeiro encontro, “éramos em oito mulheres: do movimento de favelas, do moviento negro e do movimento de bairros”, diz um trecho. O texto segue contando sobre os vários encontros e manifestações em que o coletivo atuou. “Lá fora, estivemos representadas no 2º Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe”, contam em outro trecho.
A criação do coletivo e do jornal se dá num contexto de forte mobilização política no país, que vivia a redemocratização. Ocorria também a ampliação do movimento feminista. “Nos anos 70, chega uma imprensa feminista muito forte no sentido de também ser uma luta pela democracia”, explica Viviane Gonçalves, pesquisadora da imprensa feminista e autora do livro “Feminismos na Imprensa Alternativa Brasileira”.
Entre os jornais feministas daquele período, havia o Nós Mulheres e o Mulherio, em que Lélia Gonzalez era colunista. “Ela [Lélia Gonzalez] é muito significativa naquele momento, vai transitar por todos os lugares. Ao mesmo tempo que era acadêmica, era ativista e marcava essa posição ao ser uma fundadoras do Movimento Negro Unificado, mas também em ser uma das fundadoras do Nzinga – Coletivo de Mulheres Negras”, pontua Viviane.
O coletivo Nzinga fundou o seu periódico a partir do financiamento de uma instituição estadunidense, com a aprovação do projeto “História contemporânea das lutas das mulheres negras”. Escolheram as cores amarelo e roxo para colorir o logo, fazendo referência à religiosidade afro-brasileira e ao movimento feminista. O pássaro, que também compõe o logo, simboliza a ancestralidade feminina na tradição nagô.
Logo do Nzinga Informativo
©Acervo Viviane Gonçalves
Página por página
O Nzinga Informativo se propôs a abrir um diálogo com os leitores e alcançar homens e mulheres, negros e brancos, com as discussões que travavam. Viviane Gonçalves conta que o periodico era distribuido em encontros do movimento negro pelo país, e também tinha abrangencia internacional, a partir das viagens que Lélia Gonzalez realizava.
Todas as edições do periódico traziam agendas políticas e culturais, a partir da editoria intitulada “Aconteceu…Acontecendo”. Eram divulgados eventos como lançamentos de livros, encontros de organizações do movimento negro, bailes black e festas.
Havia também a seção “Lendo e aprendendo”, em que as editoras recomendavam textos para estimular a formação política. Racismo, feminismo, educação, saúde da mulher e aborto estavam entre as tematicas sugeridas.
Já na editoria “Mulheres negras e guerreiras”, as leitoras eram apresentadas à nomes de mulheres importantes na história do povo negro. A política Benedita da Silva tem sua trajetória registrada na quarta edição.
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As páginas do Nzinga Informativo também estampam explicações sobre a Constituinte – convocada em 1985 e que resultou na Constituição que temos hoje. Havia textos sobre o que é uma constituição e a importância de se ter mulheres negras nessa construção.
Outro tema, na segunda edição, foi o Apartheid que vigorava na África do Sul. As editoras se posicionam contra o regime e explicam que as mulheres são sempre as maiores vítimas em momentos de crise.
A quinta e última edição do periódico é simbólica, “porque traz depoimentos de várias mulheres que participaram do 1º Encontro Nacional de Mulheres Negras, em 1988, em Valença (RJ)”, pontua Viviane.
Nzinga abriu caminho para o Nós
A pesquisadora Viviane Gonçalves aponta que o Nzinga e outros jornais da imprensa negra daquele período fomentaram o caminho para os veículos independentes que existem hoje, focados em raça, gênero e/ou território. Para ela, a principal contribuição do Nzinga é o pioneirismo em colocar mulheres negras como protagonistas.
Em seu artigo “Mulheres negras e imprensa feminista: vozes, interseccionalidade e cidadania”, Viviane compara a atuação do Nzinga Informativo e do Nós, mulheres da periferia. Apesar dos anos que separam a atuação dos veículos, ambos compartilham “a força da marcação de territorialidade, da interseccionalidade, no sentido de não falar de um padrão de mulher, mas de várias perspectivas”, diz.
Obrigada mulheres do Nzinga, pela coragem de serem pioneiras e abrirem caminho para que o Nós, mulheres da periferia exista hoje.